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Artigo publicado na edição nº 1 de abril de 2005.
Moradia Popular Na Cidade De São Paulo
(1930-1940) – Projetos e Ambições

Simone Lucena Cordeiro

Andando pela cidade de São Paulo, em vários de seus espaços torna-se perceptível que parte significativa da população vivencia hoje uma situação de falta ou de péssimas condições de moradia. Apesar dos discursos e “iniciativas” do poder público relativos à chamada “problemática da habitação”, os problemas da moradia popular são visíveis e inquietantes. Várias ações realizadas nessa direção permaneceram quase sempre ocasionais e não respeitaram as experiências socioculturalmente vivenciadas pelas diferentes parcelas da população paulistana. Algumas soluções apresentadas foram insuficientes, ou ainda, bastante questionáveis do ponto de vista da salubridade e melhoria da convivência social. O projeto CINGAPURA, as COHABS, a CDHU, os albergues e até os barracos são exemplos de tentativas frustradas de solução para esse problema.[*1]

Em nossos dias, as pessoas constroem diferentes formas de habitar na cidade, o que nem sempre é aceito pelas autoridades e pelos interesses imobiliários particulares, gerando constantes conflitos. São mutirões independentes, favelas, cortiços e ocupações de prédios, terrenos e construções precárias ou provisórias nos mais diversos espaços públicos (viadutos, praças, ruas, etc.) e privados, que resultam, por vezes, na ação de desocupação, feita pela polícia.[*2]

Assim, a cidade de São Paulo forma um quadro social e cultural diversificado no qual há diferentes maneiras de conceber a moradia, bem como a “política habitacional” municipal. Vários trabalhos inspiram nossos questionamentos. Por exemplo, Bernard Lepetit propõe uma “hermenêutica urbana” ao acentuar que “as casas e os espaços de trabalho, os edifícios públicos e a rede viária, as maneiras de viver e de morar, a organização técnica da produção e da troca, as formas de divertimentos e a geografia dos espaços de lazer sempre provêm, em sua maior parte, do passado e resultam, em sua evolução, de ritmos diferentes”. Em outras palavras, “os elementos de uma cidade, em sua contemporaneidade, têm idades diferentes”.[*3]

A leitura da historiografia e das fontes – anais, revistas, jornais, memórias, fotografias, processos administrativos, etc. – acerca da moradia popular em São Paulo assinala diferentes momentos relevantes para o estudo da construção da chamada “política habitacional”. No entanto, destacou-se o período compreendido entre 1930-1940, caracterizado por discussões, projetos e iniciativas sobre a habitação social e outras dimensões urbanísticas na cidade. Período também correspondente às gestões municipais de Anhaia Mello (1930-1931) e Francisco Prestes Maia. (1938-1945), que, segundo a bibliografia e a leitura da documentação sobre o tema, marcou a história da habitação social em São Paulo e cujos sinais, ainda hoje, podem ser percebidos.

Ganharam expressão os debates presentes no I Congresso de Habitação, promovido pelo Instituto de Engenharia de São Paulo em maio de 1931, com vinte e uma teses e quatro conferências apresentadas, sendo seis trabalhos sobre habitação. Destacaram-se também os textos publicados dez anos depois nos anais da Jornada de Habitação Econômica, evento promovido pelo Idort (Instituto de Organização Racional do Trabalho de São Paulo) em 1941, que contou com a participação de 35 técnicos (engenheiros, arquitetos, médicos, juristas e sociólogos) e personalidades do meio político e empresarial.

Durante o período dos dois eventos, sobressaíram ainda as análises e investigações publicadas nas Revistas do Arquivo Municipal de São Paulo (como as de Donald Pierson, um dos professores convidados para criar a Escola Livre de Sociologia e Política e membro da Escola de Chicago, instituição baseada na ecologia urbana) e nos Boletins de Engenharia, Arquitetura e da Polytecnica (como os do ex-prefeito, professor e engenheiro-arquiteto Luiz Ignácio de Anhaia Mello).

Soma-se a essa documentação, conforme levantamento realizado nos dados populacionais sobre São Paulo, apresentados a seguir, o rápido e constante crescimento demográfico paulistano no período. Apreende-se, pelos números expostos no gráfico a seguir, um ritmo de evolução acelerada da população de São Paulo no período, aumentando constantemente a cada década e atingindo, entre as décadas de 1930, 1940 e 1950, seus maiores percentuais. (veja imagem 2)

Por meio do gráfico, percebe-se que já às vésperas do I Congresso de Habitação, a população paulistana crescia de maneira expressiva, mais do que dobrando no período entre 1930 e 1950. De 579.033 habitantes em 1920, a população aumentou em 308.777 pessoas em 1930, atingindo o número de 887.810. Da mesma maneira, na Jornada de Habitação Econômica de 1941, a população alcançou a marca de 1.326.261 moradores, com uma evolução de 438.451 pessoas em relação ao ano de 1930. Em 1950, o número de residentes cresce novamente para 2.198.096 habitantes, com um índice de 871.835 pessoas, em comparação aos números de 1940.

Ainda pelos indicadores demográficos do período é possível verificar uma clara tendência ao crescimento populacional de algumas das localidades mais distantes da área central, tais como: Capela do Socorro, Casa Verde, Ipiranga, Lapa, Nossa Senhora do Ó, Osasco, Penha de França, Pirituba, Santana, Santo Amaro, Saúde, Tatuapé, Tucuruvi, Vila Maria, Vila Matilde, Vila Prudente, Distrito de Guaianazes, Distrito de Itaquera e Distrito de São Miguel Paulista. Contudo, segundo os números, os bairros ainda com maior adensamento até a década de 1940 eram aqueles tipicamente habitados por operários, onde estavam os pavilhões industriais, e/ou aqueles mais próximos da região central da cidade: Alto da Mooca, Barra Funda, Bela Vista, Belenzinho, Brás, Cambuci, Consolação, Liberdade, Mooca, Pari, Perdizes, Santa Cecília, Santa Ifigênia, Tatuapé, Tucuruvi.

Nesse quadro de crescimento populacional, os relatórios e relatos sobre a habitação popular informam que, entre as moradias populares típicas dos espaços mais centrais e dos bairros industrializados na época, ganhavam destaque as “vilas operárias”.[*4] Esses “conjuntos residenciais horizontais”.[*5] constituíram-se como uma das principais formas de moradia popular para a população de menor recurso, prevista mesmo nos modelos urbanístico expresso no próprio Código de Obras Arthur Saboya em suas diretrizes sobre “abertura de passagens para a construção de casas populares”.[*6] A arquiteta Marta Dora Grostein explica que, apesar do “Código” regulamentar as passagens utilizando o termo “casas populares”, o modelo de casas populares era o das “vilas operárias” ou “residências horizontais”, como o apresentado na foto a seguir. A imagem retrata a “Vila Cia. Vidraria Santa Marina”, aproximadamente entre as décadas 1930-1940. (veja imagem 1)

Vendo essa imagem da “Vila Cia. Vidraria Santa Marina” somada à próxima foto, da “Vila da Fábrica Maria Zélia” e aos trechos que seguem do Código de Obras Arthur Saboya, de 1929 (Lei n.º 3.427 – revisado e consolidado pelo Ato n.º 663, de 10 de agosto de 1934), percebe-se que as dimensões e a quantidade desse tipo de moradia, apesar de abrigar vários trabalhadores, não solucionava o provável déficit habitacional paulistano que crescia, conforme os dados do gráfico demográfico anterior. Segundo a caracterização feita pelo Código Arthur Saboya, teríamos as seguintes dimensões para as habitações das parcelas populares da população:

casa operária – [construção] que contiver, no máximo, três peças, entre aposentos e salas, além da cozinha e privada (...).

habitações populares – toda aquela que dispõe, no mínimo, de um aposento, de uma cozinha e de compartimento para latrina e banheiro e, no máximo, de duas salas, três aposentos, cozinha, copa, despensa e de compartimento para latrina e banheiro, sem contar a garagem e quarto de criadas (...).[*7] (veja imagem 3)

De acordo com as dimensões arquitetônicas apresentadas pelo Código Arthur Saboya visíveis nas fotos, é possível aventar que a quantidade desse tipo de habitação social, proporcionalmente, era limitada em relação ao crescimento populacional vivenciado pela cidade. Além disso, conforme expressava o próprio nome das vilas, estas eram construções dirigidas às famílias dos trabalhadores de algumas das fábricas e empresas paulistanas, deixando à margem boa parte das camadas populares da população.

Na realização do I Congresso de Habitação (1931) essa solução habitacional popular, aparentemente, já demonstrava seus limites. A situação durante a Jornada de Habitação Econômica e nos anos posteriores tendeu a agravar-se ainda mais. É conveniente ressaltar novamente que, de 1930 a 1940, a população cresceu em cerca de 438.451 pessoas e que de 1940 a 1950 o crescimento foi de 871.835 habitantes.

Para muitos paulistanos o caminho foi morar em outro tipo de habitação também comum e, pelos relatórios apresentados a seguir, freqüente entre as preocupações daqueles que pesquisavam e atuavam na cidade: os cortiços. Em sua intervenção durante a Jornada de Habitação Econômica (1941), Jacy Coutinho Vianna, ao citar o Código de Obras da Prefeitura Municipal (1934) para definir o termo cortiço, demonstra que essa forma de moradia coletiva era um tipo de habitação cuja presença também marcava a própria legislação urbanística do município. Segundo Vianna:

De acordo com o Código de Obras da Prefeitura Municipal, é o conjunto de 2 ou mais habitações que se comunicam com as vias públicas por uma ou mais entradas comuns, para servir de residência a mais de uma família. Adotam-se também variações (...).[*8]

As três imagens na seqüência, em combinação com a descrição de Jacy Coutinho Vianna, dimensionam esse tipo de habitação. Pela quantidade de crianças vistas nas fotos e a constância em que são citados, os chamados cortiços deveriam constituir uma das formas de habitação freqüentes de parcelas significativas da população paulistana, pelo menos nos arredores das áreas centrais. (veja imagem 4)

Nessa imagem e nas próximas, as precárias condições físicas ficam evidentes. No entanto, pensamos que a escolha por fotografar esses prédios - algo “raro em se tratando de moradia popular”, como assinalou Horace Davis, autor de um dos relatórios sobre esse tipo de habitação em 1935, discutido logo a seguir - pode ter resultado da necessidade de apontar esse tipo de moradia como social e urbanisticamente degradante, o que justificaria as intervenções.

Outra dimensão importante sobre as fotos relativas às habitações consideradas irregulares é quanto à qualidade das imagens. Em especial, as tomadas com maior distância possuem baixa definição, como a anterior, diminuindo a possibilidade de visualizar detalhes. (veja imagem 5)

Img Cortiço na Rua Conselheiro Ramalho

Contudo, a presença desse tipo de moradia já não era nova na cidade, conforme o Relatório de 1893:

O poder municipal principalmente deve, no caso [ilegível], para salvar a cidade ameaçada em sua prosperidade e futuro, adotar as medidas mais enérgicas com vistas a coibir o abuso que se generaliza na parte mais nova e mais densamente povoada da região urbana. Os cortiços ou estalagens, as casas de dormida, os prédios transformados em hospedarias, as vendas ou trocas, quase todas com aposentos no fundo para aluguel, os hotéis de 3a e 4a ordem, transformados em cortiços, eis o que se vê a miúdo no bairro onde a epidemia mais alastrou e onde tudo nos faz crer que a tendência para tal abuso aumenta em vez de diminuir (...). O poder municipal, auxiliado pelo governo do Estado, cumpre intervir energicamente para fazer cessar esse abuso.[*9] (veja imagem 6)

A planta ao lado, do mesmo Relatório de 1893, possibilita apreendermos que uma das formas de cortiço também foi a de um conjunto de habitações horizontais. Na planta, a denominação oferecida é “Tipo de Cortiço Usando Casinhas”.

Após quarenta e dois anos do Relatório de 1893 e quatro anos depois do I Congresso de Habitação de 1931, em 1935, a Escola de Sociologia e Política publica na Revista do Arquivo Municipal outro relatório, denominado “Padrão de Vida dos Operários da Cidade de São Paulo”. Contando com a colaboração do Instituto de Educação da Universidade de São Paulo e do Instituto de Higiene, a pesquisa abordou temas como alimentação, vestuário, orçamento familiar e habitação.

Sem esclarecer a localização dos bairros onde a investigação ocorreu, a pesquisa abordou 221 famílias. Na parte referente à habitação, o estudo, relatado por Horace Davis, apresentou a seguinte situação:

Em nenhuma parte sentimos mais da falta de fotografias ou de dados estatísticos que ao discutir as condições de habitação. Ao imaginar os nossos termos “casa” e “habitação”, não deve o leitor trazer à mente as residências espaçosas de Higienópolis ou Vila Mariana, mas as construções de teto baixo, pequenas e modestas, muitas vezes longe das vistas da rua, no meio dos extensos quarteirões que abrigam a classe proletária de São Paulo.[*10]

No mesmo relatório, que vale ser lido observando-se as fotografias expostas, ao assinalar que 91 das famílias pesquisadas moravam em casas individuais, fica indicado que a maioria (130 famílias) dos entrevistados vivia em habitações coletivas descritas da seguinte maneira:

As habitações coletivas dividem-se em três grupos principais: 10 – o porão; 20 – a vila, que pode ser definida como um conjunto de várias habitações contínuas, que dão para um mesmo beco; 30 – o cortiço, assim denominado, para indicar que as famílias vivem em uma habitação ou moradia coletiva, muitas vezes de mais de um andar. As habitações individuais e as vilas têm em geral cozinha e instalações sanitárias independentes, ao passo que tanto o cortiço como o porão possuem instalações higiênicas em comum e quando têm cozinha, é também em comum.[*11]

A próxima foto, acompanhada do Relatório de 1935, dimensiona bem as variações das habitações coletivas descritas e consideradas irregulares pelos Códigos de Obras e Posturas da cidade. A imagem visualiza o complexo de cortiços composto pelo Navio Parado, Vaticano, Geladeira e Pombal, localizado entre as ruas Japurá, Santo Amaro e Jacareí, na região do Bexiga.

Esses cortiços são representantes do tipo de moradia popular desejada e indesejada. No lugar deles (como tipo de moradia indesejada), nos anos 1940, será construída uma outra edificação pelo Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários (IAPI), denominada Edifício Japurá – exemplo das soluções para a habitação popular aplicadas em São Paulo após os eventos de 1931 e 1941 (tipo de moradia desejada). O Edifício Japurá, que substituiu o cortiço, foi projetado por Eduardo Kneese de Mello e é considerado uma das construções pioneiras “na aplicação do conceito de ‘unité d’habitation’ de Le Corbusier no Brasil”.[*12] (veja imagem 7)

Passados seis anos do Relatório de 1935 e durante a própria Jornada de Habitação Econômica, em 1941, o professor e sociólogo Donald Pierson, também da Escola de Sociologia e Política, relata seu estudo comparando 100 moradias dos bairros considerados de “nível superior - ricos” (25 em Higienópolis, 50 no Jardim América e 25 no Pacaembu) com 100 habitações dos bairros vistos como de “nível inferior - pobres” (50 na Mooca, 25 no Bexiga e 25 no Canindé). Segundo os dados apresentados por Pierson, também publicados nos Anais da Jornada de Habitação Econômica de 1941 e expostos na Revista do Arquivo Municipal, do número total de 100 moradias consideradas pobres, 91 eram alugadas, 07 próprias e 02 emprestadas. Ainda de acordo com o relatório, a média de cômodos era de 2,5 por moradia.[*13]

Na seqüência, após três anos do relato de Pierson e da Jornada de Habitação Econômica de 1941, no ano de 1944, outro relatório revela a situação da habitação de parte da população paulistana. Realizado pelo Serviço de Saúde no Distrito de Santa Ifigênia e do mesmo modo que os outros relatórios, publicado pela Revista do Arquivo Municipal, o estudo focalizou 116 cortiços, somando 706 quartos. As conclusões foram as seguintes:

a área de cada quarto era inferior a 10 m2; 654 quartos não tinham janelas; cada quarto abrigava em média quatro a dez pessoas; em 225 moradias havia apenas seis leitos; em outras 370 dessas moradias as cozinhas localizavam-se nos dormitórios. Nestes 116 cortiços havia 2.129 pessoas dividindo “fraternalmente” nove banheiros, o que perfazia uma média de 236,5 pessoas para cada banheiro.[*14]

Por meio desses quatro relatórios e das imagens entende-se que, antes, durante e depois dos eventos sobre a habitação em São Paulo, uma grande parte da população paulistana das áreas analisadas pelos estudos do período - núcleo central da cidade, adjacências e os bairros descritos como operários - ainda morava em condições consideradas “irregulares” e/ou “impróprias” pelos próprios pesquisadores. Caio Prado Jr., no livro Evolução Política do Brasil (primeira edição, de 1933) analisa esse quadro assinalando uma situação de “paradoxos” entre uma cidade considerada “grande e moderna” e as “precárias” condições urbanísticas e de vida de parcelas significativas de sua população, particularmente na área central.[*15]

O poder público e os envolvidos no I Congresso de Habitação (1931) e na Jornada de Habitação Econômica (1941), pelos projetos apresentados e discutidos em nosso trabalho, priorizavam suas ações nessas áreas onde estavam localizadas as habitações descritas pelos relatórios como “irregulares”. Ou seja, os projetos e iniciativas “racionais, científicos e modernizadores”, palavras típicas do período, priorizavam os bairros mais centrais, próximos às indústrias e os de moradia operária, demonstrando o objetivo de estabelecer nessa parte da cidade um controle sobre seu desenvolvimento urbanístico e populacional em nome do embelezamento, da modernização e da racionalização do espaço.

“Esquema de São Paulo”. In: MAIA, Plano de Avenidas. 1930, p. 52.

Por meio dos estudos apresentados, os organizadores dos eventos e das pesquisas sobre moradia tendiam a perceber a cidade e a concebê-la numa visão “limpa” de suas singularidades e sua história. Cidade “moderna e racional”, se reduzia, assim, a uma cidade harmoniosa, quantitativamente, nas plantas e cifras.

Lendo os artigos das Revistas do Arquivo Municipal, dos Boletins de Engenharia, do Plano de Avenidas e dos Anais dos dois eventos do período, as localidades mais distantes (Penha de França, São Miguel Paulista, Itaquera, Guaianazes, Santo Amaro, Parelheiros, Jaraguá, Santana, Nossa Senhora do Ó, entre outras) ainda não faziam parte da lista de preocupações prioritárias e das pesquisas daqueles que investigavam e atuavam sobre a situação da moradia no município, apesar do crescimento populacional dessas localidades na época em estudo, conforme expressam os dados populacionais levantados.

Isso demonstra também que, no período dos dois encontros, o poder público não priorizava os subúrbios e a periferia da cidade, deixando as áreas mais distantes entregues ao loteamento clandestino ou irregular. A título de exemplo, durante os sete anos da gestão de Prestes Maia (1938-1945) as obras públicas foram prioritariamente nas áreas centrais e arredores. Além de concluir as obras do prefeito anterior (Fábio Prado), colocou em prática, mas parcialmente, o Plano de Avenidas; terminou o Viaduto do Chá; a Avenida Nove de Julho, com seus viadutos e túneis; o Estádio do Pacaembu; prolongou a Avenida São João; transformou em avenidas as ruas Ipiranga e São Luís; abriu as avenidas Duque de Caxias, Anhangabaú (atual Prestes Maia), Liberdade, Vieira de Carvalho, Senador Queirós e o primeiro trecho da Itororó; construiu os viadutos Jacareí, Dona Paulina, Nove de Julho e a Ponte Grande (atual das Bandeiras) sobre o Rio Tietê.

A imagem a seguir, retirada do Plano de Avenidas de Prestes Maia,[*16] demonstra bem o lugar prioritário dos projetos e ambições do período em estudo.

Conhecida como “esquema teórico de São Paulo”, a figura demonstra a proposta da “estrutura viária radial-perimetral” para a cidade, num formato que tem a área central e suas adjacências como eixo. O desenho possibilita também apreender, em suas extremidades, os limites das intervenções do período.

Apesar da prioridade oferecida às áreas mais centrais e industrializadas, caracterizamos a São Paulo do período como possuidora de núcleos populacionais múltiplos, alguns de origens mais recentes e outros tão antigos como o pólo central da cidade (sede político-administrativa e jurídica do município). O bairro de São Miguel Paulista, por exemplo, surgiu a partir do aldeamento de mesmo nome, tendo como referência uma capela, construída em 1622.

Porém, para os administradores públicos, pesquisadores e grupos vinculados aos institutos, o adensamento das áreas próximas ao centro, dos bairros industriais e das habitações operárias era o objeto principal das preocupações. Isso decorria das prováveis repercussões socioespaciais do crescimento demográfico e das necessidades racionais e científicas da ordem do trabalho que se procurava consolidar na ordem urbana da cidade, que se desejava moderna, pelo menos nessas áreas. Com base nos discursos, nos projetos e nas iniciativas, era também essa região o espaço de atuação da moradia popular, bem como o local onde moravam as pessoas que seriam os objetivos da legislação. As habitações indesejadas (cortiços, porões, etc.) eram combatidas sem apresentar uma solução alternativa para seus moradores, em grande parte considerados “desqualificados” para habitarem as vilas operárias.

Essa posição oferece pistas sobre os limites dos discursos, dos projetos e das iniciativas, bem como sobre as concepções de cidade e de cidadão presentes entre os participantes dos eventos, os estudiosos e administradores de São Paulo no período. Do mesmo modo, a continuidade dos cortiços durante todo o período, como demonstram os relatórios, realça a existência das diferentes formas de habitar a cidade a partir dos expedientes de vidas constituídos cotidianamente por parcelas das camadas populares paulistana. Como discute Michel de Certeau, “a linguagem do poder ‘se urbaniza’, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico”.[*17] Pensamos, como Certeau, no caso da habitação social em São Paulo, que parte significativa da população construiu formas de morar diversas das propostas pelo governo, por construtoras privadas e por institutos. Formas de morar que, por vezes, foram classificadas como “clandestinas ou irregulares”, distantes dos chamados benefícios (ou equipamentos) urbanos e com “padrões suburbanos e/ou periféricos de urbanização”.[*18]

A própria terminologia, por vezes empregada atualmente pelo poder público e por parte da imprensa para classificar as habitações fora dos padrões considerados técnicos, estéticos e juridicamente legais (ou sob o controle da lei), conforme é possível compreender na documentação que estudamos, não é nova. Essa terminologia, aliás, é discutida aqui em seus vínculos com projetos de intervenção social e espacial.

Acreditamos, inclusive, que esses termos precisam passar pelo seguinte questionamento: a habitação é “irregular”, “ilegal”, “clandestina”, para quem? Não desejamos com isso negar as precariedades de infra-estrutura (falta de rede de esgoto, água encanada, luz, pavimentação, saneamento, segurança, saúde, educação) de uma grande parcela da população, mas ressaltar a relação entre a maneira como era descrita a moradia de parte das camadas populares paulistanas com o tipo de cidade e cidadão desejado pelos que estiveram à frente da prefeitura municipal e discutiram habitação no período.[*19]

Segundo o engenheiro e prefeito Prestes Maia (1938-1945), a cidade vivenciava “um momento decisivo da nossa existência urbana”,[*20] precisando de intervenções para adaptá-la, de modo a torná-la moderna e racional, no sentido estético de embelezamento proposto no Plano de Avenidas e exposto nos desenhos como o seguinte. (veja imagem 8)

A imagem possibilita a percepção da maneira pela qual Prestes Maia procurava combinar estética com a racionalização dos espaços no sentido de consolidar a modernização da cidade em seu Plano de Avenidas. As discussões sobre a moradia popular, reveladoras de projetos e ambições, estavam inclusas nesse quadro.

Outra informação importante na gravura é a verticalização de algumas das edificações. Durante os eventos, foram apresentadas propostas para a construção da moradia popular no sentido vertical. Assim, tanto Maia como os eventos já assinalavam para aquela que, na nossa compreensão, foi a solução adotada para resolver a produção da moradia popular, pelo menos para parte da população: a construção de conjuntos habitacionais verticalizados para os “trabalhadores supostamente qualificados” e que possuíssem renda.

Nessa perspectiva, ganhou importância em nosso estudo um outro conjunto documental – os processos administrativos municipais – pertencente ao acervo do Arquivo Geral de Processos do Município de São Paulo. Esses documentos resultaram das solicitações para a construção de moradias e conjuntos residenciais realizadas a partir da década de 1940 pelas seguintes instituições: Instituto de Previdência do Estado de São Paulo; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Comerciários; Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas; Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Bancários; Caixa de Aposentadoria e Pensões dos Ferroviários e Empregados em Serviços Públicos.

A princípio, o intuito sociocultural e econômico dos projetos e das iniciativas sobre as habitações populares está expresso nos próprios nomes dos Institutos e Caixas de Aposentadorias e Pensões (dos Bancários, Industriários, Comerciários, Empregados em Serviços Públicos, Ferroviários, Empregados em Transportes e Cargas). De acordo com a documentação, nas iniciativas privadas e governamentais, o objetivo era continuar a tentativa de proporcionar moradia para os paulistanos que seriam os “trabalhadores supostamente qualificados”.

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Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Segundo dados apresentados pelo jornal Folha de São Paulo, 5,5 milhões de paulistanos vivem em habitações consideradas “irregulares”. De acordo com o mesmo jornal, irregular é a habitação vista como “ilegal”. Enquadram-se nessa categoria: “loteamentos clandestinos (17% do território da cidade, com 3 milhões de pessoas), favelas (1,9 milhão de pessoas, segundo a Fipe – Secretaria Municipal da Habitação em 1994) e cortiços (600 mil pessoas, segundo o CDHU)”. Deste total, 2,8 milhões “não possui infra-estrutura urbana adequada” (Folha de São Paulo, 04/06/2000 e 06/06/2000. Disponível em: http://www.folha.uol.com.br/fsp/). Ao mesmo tempo, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, há, em São Paulo, 300 mil imóveis desocupados (O Estado de São Paulo, 23/07/2003. Disponível em: http://www.estado.estadao.com.br/).
No dia 23/07/2003, cerca de 3.100 “sem-tetos”, organizados pelo MSTC (Movimento Sem-Teto do Centro), ocuparam quatro prédios particulares na área central da cidade de São Paulo. Em 19/07/2003, cerca de 300 famílias, organizadas pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto), ocuparam, em São Bernardo do Campo, um terreno da Volkswagen. Depois de quatro dias, já somavam cerca de 7 mil pessoas. Em Guarulhos, há dois anos, 1.800 famílias organizam a ocupação denominada Anita Garibaldi, também organizada pelo MTST.
LEPETIT, Berard. Por uma Nova História Urbana. São Paulo: EDUSP, pp. 137-138.
Os relatórios estudados foram: Relatório da Comissão de Exame e Inspeção de Santa Ephigenia, 1893; Relatório sobre o Padrão de Vida dos Operários da Cidade de São Paulo (DAVIS, Horace. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, 1935, n.º 13); Relatório sobre Habitações de São Paulo: Estudo Comparativo (PIERSON, Donald. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, 1941-1942) e Relatório sobre Lares e casas (CASTRO, M. Antonia de. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, 1944).
GROSTEIN, Marta Dora. A cidade clandestina; os ritos e os mitos. O papel da irregularidade na estruturação do espaço no município de São Paulo, 1900-1987. São Paulo, 1987. Tese (Doutorado em Arquitetura) – FAU-USP.
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Id., ibid.
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PIERSON, Donald. Revista do Arquivo Municipal. São Paulo: Departamento de Cultura da Prefeitura Municipal de São Paulo, 1941-1942, pp. 241-254.
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BONDUKI, Nabil G. Origens da habitação social no Brasil – Arquitetura Moderna, Lei do Inquilinato e Difusão da Casa Própria. São Paulo: Estação Liberdade/FAPESP, 1998, 2ª ed.; GROSTEIN, Marta Dora. A cidade clandestina; os ritos e os mitos. O papel da irregularidade na estruturação do espaço no município de São Paulo, 1900-1987. São Paulo, 1987. Tese (Doutorado em Arquitetura) – FAU-USP; ROLNIK, Raquel. A Cidade e a Lei – Legislação, Política Urbana e Territórios na Cidade de São Paulo. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 1997.
Como discute Raquel Rolnik, após chegar ao dado de que em 1990 70% da cidade estava numa situação “irregular”. Segundo a autora, “uma lei que tem uma história, são cem anos de regulação, e uma cidade 70% irregular tem algum problema, alguma questão, na lei ou na cidade, ou na relação entre esses dois (...) essas duas coisas”. Ainda mais se for levado em conta que tais atributos considerados negativos referem-se aos territórios populares: “a maior parte da cidade e a quase totalidade da cidade dos pobres” (ROLNIK, Lei e Política: A construção dos territórios urbanos. In: Espaço e Cultura – Projeto História – 18 – Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e Departamento de História da PUC-SP. São Paulo: EDUC/FAPESP, mai./1999, p. 138).
MAIA, Francisco Prestes. Estudo de um Plano de Avenidas para a cidade de São Paulo. São Paulo: Cia. Melhoramentos, 1930, p. 7.