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Artigo publicado na edição nº 4 de agosto de 2005.
A criação da Escola de Ferroviários da Companhia Sorocabana

Pesquisa de Iniciação Científica financiada pelo CNPq em 2004. Orientação: Prof. Dr. Bruno Bontempi Jr e Profa. Dra. Mirian Jorge Warde.

Bianca Barbagallo Zucchi

A historiografia brasileira é rica em obras acerca do desenvolvimento do Estado de São Paulo – baseado na economia cafeeira – a partir de meados do século XIX. Substituindo a mão-de-obra escrava pelo trabalho assalariado, o cultivo do café tornou-se foco principal da economia brasileira por décadas. A economia cafeeira possibilitou a acumulação do capital essencial para a configuração de um novo estágio do capitalismo no Brasil. Dentre tais transformações, esses grandes latifundiários financiaram a criação da rede ferroviária do Estado de São Paulo, já que o produto precisava ser levado até o porto de Santos, de onde era exportado para a Europa e para os Estados Unidos.

A estrada de ferro Sorocabana foi criada em 1870, incorporando a ferrovia Ituana vinte anos depois. No início do século XX, a Companhia sofreu uma séria crise financeira e, sendo encampada pelo Governo Federal, passou a ser, em 1919, definitivamente de responsabilidade do mesmo. Nesse momento, foi estabelecido um plano de remodelação geral da ferrovia, com o objetivo de recuperar e modernizá-la. Os principais pontos desse programa diziam respeito à compra de máquinas e equipamentos, à ampliação de linhas, à construção de novas oficinas de manutenção e de estações, entre elas, a Nova Estação Inicial de São Paulo (chamada posteriormente de Estação Júlio Prestes). Porém, sua realização mais importante foi a construção do trecho Mairinque-Santos.

Com o fim deste empreendimento, na década de 1940, a ferrovia Sorocabana se configurou como a maior do Estado em termos de extensão, alcançando 2.074 quilômetros de linhas férreas. No entanto, observou-se, a partir dessa década, o declínio em todo o sistema ferroviário que, por diversas questões estruturais e de planejamento, vinha sendo rapidamente substituído pelas rodovias.

A criação da Escola de Ferroviários da Sorocabana, que ocorreu em 1931 junto à Escola Profissional de Sorocaba, está indiscutivelmente atrelada a dois personagens: Roberto Mange, educador, e Gaspar Ricardo Junior, diretor da Estrada de Ferro Sorocabana. Ambos membros fundadores do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT). Desde o início, tal escola foi pensada nos moldes de racionalização que vinham sendo discutidos e implementados por diversos intelectuais e empresários no Brasil já na década de 1920. Um dos principais objetivos dessas pessoas era transformar o local de trabalho e o trabalhador, tornando-os mais produtivos segundo uma organização racional do espaço e das tarefas executadas.

O discurso a favor da racionalização baseava-se principalmente no fordismo, que, por sua vez, incorporou a linha de montagem introduzida pelo taylorismo, priorizando a segmentação das tarefas e o aumento da velocidade em que eram executadas. No entanto, o modelo fordista se preocupava de forma mais ampla com o trabalhador, extrapolando os muros das fábricas. Dessa forma, a indústria deveria desenvolver um setor de serviços sociais, agregando instituições paralelas que se preocupassem com o lazer e a instrução do trabalhador.

Os pensadores dedicados aos ideais de racionalização no Brasil se apoderaram tanto dos princípios ligados ao maior rendimento do trabalho nas fábricas, quanto à necessidade da criação de serviços extra fábrica dos quais disporiam os trabalhadores. Assim, podemos concluir:

O termo racionalização deve ser entendido como abrangendo uma grande variedade de estratégias para a reorganização do trabalho, e mesmo da vida cotidiana, de acordo com princípios que seus defensores consideraram “científicos”. (...) Esse métodos deveriam resultar, segundo se esperava, numa maior eficiência e produtividade, que redundariam em benefícios para patrões, empregados e consumidores.[*1]

O que podemos observar é que, a partir de uma reconfiguração interna no trabalho das fábricas, pretendia-se, num âmbito mais amplo, racionalizar toda a sociedade que assistia à consolidação do processo de industrialização do país.

Roberto Mange teve um papel preponderante no debate sobre a racionalização e na implementação dos métodos desenvolvidos no universo escolar, especialmente com relação ao ensino profissionalizante. Em 1923, iniciou sua campanha para modificar o treinamento técnico-profissional no Brasil. Até aquele momento, o ensino profissionalizante tinha um caráter assistencialista e era dirigido principalmente aos órfãos, desvalidos e aos jovens e crianças à beira da marginalidade. As escolas que ofereciam essa modalidade escolar muitas vezes estavam ligadas a instituições religiosas e ofereciam cursos para carpinteiros, sapateiros, pedreiros e outros trabalhos manuais de pouco prestígio.

Mange era um crítico severo da forma como os trabalhadores aprendiam seus ofícios: de maneira tradicional e prática. Aos aprendizes não era dedicado nenhum tipo de educação específica ou gradual e, quando atingiam uma certa idade, tornavam-se definitivamente profissionais. O ofício era aprendido no ato de observar e imitar os outros, impedindo o aprendizado de novas técnicas e seu aperfeiçoamento, além de não haver nenhum tipo de seleção segundo aptidões pessoais. O educador tinha um discurso que refutava esse tipo de conhecimento, ao seu modo de ver, improvisado.

A finalidade maior de Mange era criar um novo tipo de trabalhador, que se ajustasse às novas demandas da indústria e fizesse parte de uma nova cultura do trabalho. O operário deveria aceitar suas tarefas e realizá-las de forma correta, dentro da hierarquia da linha de produção. Para tanto, eram necessárias mudanças na educação desse operário e mesmo a introdução de um ensino moralizante ministrado junto ao ensino técnico.

A primeira experiência do educador no Brasil foi no Liceu de Artes e Ofícios, que havia, desde o início do século XX, voltado suas atenções ao ensino industrial, uma vez que, até aquele momento, havia se dedicado preponderantemente ao ensino de artes. Mange aplica alguns princípios racionalizantes, como transferir o local de aprendizado para uma instituição escolar, onde as aulas eram ministradas por especialistas. A modificação mais importante proposta por Mange foi a aplicação das “séries metódicas”, onde o aprendiz iniciava seus estudos executando tarefas mais simples, que iam tornando-se mais complexas e difíceis, conforme fosse avançando em sua habilidades e conhecimentos. As atividades práticas aconteciam concomitantemente ao aprendizado teórico, afastando-se, dessa maneira, do empirismo tão criticado, presente no modelo tradicional. Além disso, aconteciam testes psicotécnicos, onde os aprendizes eram avaliados quanto a uma predisposição ao tipo de trabalho que desempenhariam. Era esse modelo o pioneiro com relação aos métodos racionalizantes aplicados à educação no Brasil.

Em 1924, é criada, no Liceu de Artes e Ofícios, a Escola Profissional Mecânica, chefiada por Mange, para onde quatro empresas ferroviárias (dentre elas a Companhia Sorocabana), a partir de um acordo, enviavam dois aprendizes para freqüentar o curso. É baseada nessa experiência que o ensino profissional para ferroviários se mostra produtivo e viável para as companhias ferroviárias de São Paulo.

As diferentes propostas na formação de ferroviários

Este artigo teve como ponto de partida o dossiê da Secretaria de Viação e Obras Públicas, da Divisão da Inspetoria de Estradas de Ferro, intitulado “Sugestão sobre a criação nas grandes estradas de ferro de um systema de educação profissional do pessoal, nos moldes do que está praticando a Companhia de Orleans”.[*2] Por meio dessa documentação, é possível obter um retrato do debate acerca da criação da Escola de Ferroviários baseado na burocracia oficial e acompanhar as etapas de sua criação. A partir da análise dos três currículos que compõem a documentação, é possível apreendermos de que maneira os ideais racionalizantes vinham sendo implementados no Brasil.

O que chamaremos de currículo da Companhia de Orleans foi uma série de princípios extraídos da reportagem de onde o engenheiro ajudante da Secretaria de Viação e Obras Públicas aparentemente se inspirou para propor uma escola para ferroviários utilizando os mesmos moldes no Brasil. A reportagem enfatiza que os dois maiores objetivos da Companhia, com tal iniciativa, eram alcançar um rendimento máximo entre os operários da ferrovia e sistematizar o que se denominou um verdadeiro ensino técnico.

O curso para aprendizes admitia jovens de 14 a 17 anos mediante assinatura de contrato de três anos com seus pais. Além disso, os ingressantes deveriam se comprometer a permanecer na ferrovia por pelo menos cinco anos após a conclusão dos estudos. O ensino era teórico e prático, desenvolvido a partir de exercícios racionais e progressivos. As matérias ministradas eram: História, Geografia, Moral, Higiene, Física e Mecânica, Geometria, Aritmética, Desenho e Tecnologia. Todos os alunos matriculados recebiam uma remuneração fixa, conforme a idade e a qualidade de seu desempenho, auxílio-residência e gratificações. A escola dispunha de quadras de esporte e colônia de férias, dando ênfase à importância da saúde física dos aprendizes. Os exames práticos eram ministrados em vagões de demonstração criados especialmente com essa finalidade. Os exames ocorriam mensalmente.

A partir do currículo elaborado pela Companhia de Orleans, podemos observar que houve uma mudança significativa no eixo que norteava o ensino técnico-profissional. Para obter mais produtividade, não bastava treinar o operário para que este aprendesse somente o ofício que iria desempenhar, ou fazer com que ele se adaptasse às máquinas que devia operar. Essa idéia de treinamento se encontrava em franca decadência naquele momento. Ao ministrar curso de História, Geografia, Moral e Higiene além de matérias técnicas, o que se pretendia era a criação ou a remodelação de uma nova classe operária. Com conhecimentos mais abrangentes e mais adaptados ao novo ritmo dos trabalhos fabris, pretendia-se que os trabalhadores produzissem mais e melhor, adquirindo novas habilidades. Há, explicitamente, nesse currículo, uma preocupação mais ampla com o trabalhador, que vai além da sua relação com o trabalho. O novo trabalhador deveria estar de acordo com regras morais e higiênicas. Havia a preocupação com a saúde do operário e o incentivo para que este praticasse esportes, como parte de sua formação.

Já no currículo formulado pela Companhia Paulista com o auxílio de Roberto Mange, denominado “Plano de organisação para Escola de Aprendizes Mecanicos na Companhia Paulista de Estradas de Ferro de Jundiahy”, temos um maior detalhamento das atividades e disciplinas propostas, bem como dos fins pretendidos com estas. O curso tinha a duração de quatro anos e era composto de disciplinas práticas e teóricas. Inicialmente, a escola oferecia um curso para mecânicos, compreendendo os ofícios de mecânico-ajustador, serralheiro e montador. Posteriormente, pretendia-se incluir outras especializações como torneiros, caldereiros, fundidores, modeladores-mecânicos e eletrotécnicos.

Os requisitos para preencher as vagas eram: ser maior de 14 anos; não possuir doença contagiosa; prestar exame de admissão em Língua Portuguesa, Geografia e História do Brasil, Aritmética e Geometria Prática; passando também por exames psicotécnicos, onde eram avaliadas aptidões naturais para a carreira.

O currículo apresenta majoritariamente matérias técnicas e as horas dedicadas às matérias mais gerais, como por exemplo, “Noções de História da Civilização no Brasil”, “Geografia Política e Comercial do Brasil”, “Educação Cívica e Moral do Aprendiz no seu Ofício Perante a Sociedade” e “Noções de Higiene do Ofício” eram restritas. Era dada maior ênfase aos trabalhos práticos, sendo primordial a relação entre o ensino teórico e as atividades nas oficinas, que deveriam sempre permanecer conjugados. Nos dois primeiros anos, os alunos freqüentavam, concomitantemente as aulas teóricas, a Oficina de Aprendizagem e, nos dois últimos anos, freqüentavam a Oficina Geral. Suas atividades deveriam obedecer sempre ao princípio dos trabalhos metódicos e progressivos.

O que podemos observar no currículo da Escola para Ferroviários produzido pela Companhia Paulista, é a adoção integral dos ideais defendidos por Mange e outros pensadores adeptos da racionalização. Os alunos deviam comprovar saberes básicos sobre matérias escolares, mas o curso é baseado em matérias técnicas, o que tornava esse currículo menos abrangente e mais direcionado que o da escola francesa. No entanto, eram ministradas disciplinas moralizantes e ligadas a temas como segurança do trabalho e higiene. A questão da sucessão metódica é uma constante, e havia um grande cuidado na descrição das atividades a serem desenvolvidas pelos alunos nas oficinas, assegurando, dessa forma, uma progressão gradual das atividades propostas. Havia, também, a adoção dos testes psicotécnicos, onde “habilidades naturais” seriam averiguadas, sendo este outro princípio defendido pelo IDORT.

Finalmente, temos o currículo implementado pela Companhia Sorocabana, denominado “Regulamento do curso de ferroviários da Escola Profissional de Sorocaba e da Estrada de Ferro Sorocabana”. Os requisitos para o ingresso no curso eram idênticos aos da Companhia Paulista. O ensino teórico era ministrado na Escola Profissional de Sorocaba, e as aulas práticas, nas oficinas instaladas na Estrada de Ferro Sorocabana. Os aprendizes eram remunerados, como nas escolas anteriormente citadas. As especializações oferecidas eram: torneiros-frezadores, ajustadores, caldeireiros-ferreiros e eletricistas. O ensino seria baseado nas séries metódicas, incluindo um estágio na área de especialização no quarto e último ano de curso. Era enfatizada a estreita ligação que devia haver entre os cursos teóricos e os trabalhos práticos.O programa e os cursos deveriam estar de inteiro acordo com as necessidades da Estrada de Ferro, sendo que os cursos e currículos seriam alterados para melhor se adaptarem às demandas da Companhia.

Havia diferenças significativas entre o currículo proposto pela Companhia Paulista e o implementado pela Companhia Sorocabana, apesar de o segundo recorrer muitas vezes ao primeiro, chegando mesmo a copiar algumas propostas. O primeiro diferencial eram as aulas de Português, ministradas em todos os anos. Essa disciplina incluía assuntos de História, Geografia e Educação Cívica. Havia também aulas específicas de Higiene e Acidentes; Orçamentos; Organização Ferroviária e exercícios físicos. Observamos, novamente, assim como na Companhia de Orleans, uma preocupação em formação mais ampla e menos pragmática. Nenhum dos currículos analisados tinha a preocupação em introduzir os alunos à realidade da Companhia em que pretendessem ingressar, nem oferecia disciplinas dedicadas especificamente ao desenvolvimento de orçamentos ligados a trabalhos técnicos.

No entanto, o maior diferencial do plano de aulas da Companhia Sorocabana estava relacionado às aulas técnicas. Nesse sentido, a Companhia propunha que os alunos freqüentassem, desde o primeiro ano, além das Oficinas de Aprendizagem, a Oficina Geral. Os alunos trabalhariam na Oficina Geral como ajudantes, executando tarefas correspondentes ao seu nível de desenvolvimento. A partir do terceiro ano, os alunos fariam estágios em diferentes funções, vindo a se especializar em uma delas no quarto ano, quando cada especialização possuía um plano de aulas diferenciado. Mais uma vez é possível identificarmos a preocupação com a aplicação das séries metódicas. Cada exercício era detalhadamente descrito e a progressão gradual era uma constante em todas as atividades propostas.

Com a análise dos currículos, pudemos acompanhar diferentes formas de como foram pensados e/ou aplicados os ideais racionalizantes no ensino profissional. Dessa maneira, temos a constatação de que o empresariado brasileiro – não somente a parcela ligada às ferrovias –, vinham buscando novas formas de organizar a produção. Para tanto, havia a necessidade de um novo trabalhador, mais ágil, mais preciso em suas ações e mais consciente de seu papel na linha de produção. O resultado dessa remodelação das indústrias seria sentido em toda a sociedade, sendo essa nova indústria foco irradiador de mudanças sociais.

Para a nova sociedade brasileira, que se reconfigurava naquele momento, não bastava que o trabalhador executasse melhor a sua tarefa e de forma mais produtiva; era preciso um novo homem. Nesse sentido, as escolas profissionais tiveram o papel de treinar o operário como técnico e como ator social, cuidando de seus valores morais por meio de um conhecimento mais abrangente do mundo. A maior eficiência dentro das fábricas seria fruto da educação profissional não estrita, mas racionalizada.

Bibliografia

MATOS, Odilon Nogueira de. Café e Ferrovias: A evolução ferroviária de São Paulo e o desenvolvimento da cultura cafeeira. São Paulo: Arquivo do Estado, 1981. (Coleção Monografias 3)
WARDE, Mirian Jorge; BONTEMPI JR., Bruno. Internacionalização-Nacionalização de padrões pedagógicos e escolares no ensino secundário e profissional (Brasil, meados do século XIX ao pré-Segunda Guerra Mundial). Acesso em 27/11/2003. Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/ehps/secretaria/internacionalizacaoIframe.html
WEINSTEIN, Barbara. (Re)formação da classe trabalhadora no Brasil, 1920 -1964.
São Paulo: Cortez, 2000.
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Formada em História pela PUC-SP e mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados Educação: História, Política, Sociedade da PUC-SP.
WEINSTEIN, Barbara. (Re)formação da classe trabalhadora no Brasil, 1920 -1964. São Paulo: Cortez, 2000.
Localização no AESP: CO-9449, Fundo FEPASA.