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Artigo publicado na edição nº 6 de outubro de 2005.
Contribuição metodológica para a pesquisa historiográfica com os testamentos

Maria Lucília Viveiros Araújo

Nosso artigo tem por objetivo apresentar os métodos e os procedimentos relacionados ao uso dos testamentos como documentação serial de forma a subsidiar o aprofundamento dos estudos da família.

Os testamentos vêm sendo utilizados como fontes para o conhecimento do passado há muitos anos no Brasil. No entanto, somente nas últimas décadas essa documentação incorporou novos procedimentos possibilitados, ao mesmo tempo, pela generalização da informática, pela influência dos estudos quantitativos da demografia histórica e a redescoberta da morte como tema da Nova História.[*1]

Explanaremos sobre os antigos princípios das Ordenações do Reino e o atual Código Civil Brasileiro, que orientam os direitos e deveres da família brasileira. Comentaremos também a complexidade dos antigos testamentos, composto por diferentes itens da sociedade, especialmente os aspectos religiosos, a vida familiar, a vida material, sugerindo procedimentos para a coleta e a síntese dos dados. Por fim, identificaremos os recentes questionamentos da História da Família e transcreveremos a bibliografia mais recente.

A regulamentação dos testamentos

As escrituras testamentárias tiveram início na França nos finais do século XII, seguindo a tradição jurídica romana, de forma que o ato de testar havia-se generalizado naquela região nos séculos XIV e XV.

Os testamentos portugueses modernos visavam à preparação do funeral e à salvação da alma principalmente. No século XVIII, a estrutura dos testamentos atingiu sua máxima complexidade. Surgiu, então, uma série de confrarias especializadas no cerimonial da morte e na salvação da alma.

No século XIX, os testamentos foram perdendo sua finalidade espiritual, de forma que as versões mais recentes abordam exclusivamente os bens materiais.

As Ordenações Filipinas de 1603 orientaram a vida familiar e os direitos de sucessão desde a formação da América Portuguesa. Essa legislação manteve-se no Brasil, com algumas alterações, até 1916, quando foi aprovado o primeiro Código Civil Brasileiro. O direito da família sofreu nova alteração em 2002.

Segundo as antigas leis do reino, todo homem com 14 anos e mulher com 12 anos podiam deliberar livremente sobre a distribuição dos seus bens. No entanto, os testadores com herdeiros forçados ascendentes (pais, avós) e descendentes (filhos, netos) podiam legar apenas um terço de seus bens (terça).

Os cônjuges herdavam de acordo com o contrato de casamento adotado. Geralmente casava-se pelo regime de comunhão de bens chamado “carta de ametade”, de forma que o cônjuge sobrevivente ficava com a meia do espólio. Os filhos recebiam a outra metade ou legítima, descontadas as disposições dos testamentos.

12:27 18/10/05Os filhos naturais, caso fossem reconhecidos por escritura pública, podiam herdar.

Essa lei garantia a justa partilha dos bens entre os herdeiros dos plebeus, porém, permitia o direito de primogenitura nas casas nobres, isto é, a desigualdade de condições entre irmãos herdeiros.

O novo Código Civil Brasileiro basicamente modificou a situação do cônjuge, dos filhos adotivos, do companheiro e do filho fora do casamento, tornando-os herdeiros necessários. Além disso, passou a permitir que a metade dos bens seja legada pelo testador com herdeiros necessários.

Enfim, para o estudo dessa documentação, faz-se necessário conhecer essa legislação.

As partes do testamento

Os antigos testamentos eram documentos muito complexos. Eles informavam sobre a vida familiar do testador, suas preferências espirituais, os receios e segredos da hora da morte e, algumas vezes, apresentavam um balanço dos bens materiais para direcionar a partilha.

Eles continham uma apresentação ou prólogo, o preâmbulo, as disposições espirituais, a distribuição do legado e as assinaturas das testemunhas. Os documentos paulistas freqüentemente indicavam três ou quatro nomes para testamenteiros.

O prólogo incluía a saudação (sinal da cruz) e a identificação do testador (nome, estado conjugal e residência), seguido do preâmbulo religioso, com a encomendação, a invocação, as considerações sobre o estado de saúde, sobre a vida e a morte e, finalmente, a razão do testamento.

Logo após, determinavam-se as disposições espirituais ou bem da alma com a escolha da mortalha e do lugar da sepultura, indicação do acompanhamento ou constituição do cortejo fúnebre, número dos ofícios e missas com as respectivas intenções, custo de cada uma das cerimônias, legados de caridade e legados religiosos.

Terminada a parte religiosa, iniciavam-se as disposições materiais ou herança, com a enumeração dos herdeiros e legatários, a atribuição da terça, a repartição da herança, o pagamento e a cobrança de dívidas, a reserva de usufruto, a estipulação de encargos e pensões e a nomeação do testamenteiro.

Para finalizar indicavam-se as testemunhas, o escrivão, o lugar da redação e a data.

Síntese dos dados

Quanto maior a quantidade de informações coletadas, a síntese para a redação da dissertação poderá ficar mais difícil. Em vista disso, sugerimos o uso de um banco de dados e alguns procedimentos para o trabalho historiográfico.

A apresentação do corpo documental deve estar preferencialmente no primeiro capítulo do trabalho, contendo o número dos testamentos consultados, o recorte temporal selecionado e a região geográfica compreendida.

Conforme a quantidade de documentos disponíveis, pode-se optar pela pesquisa de parte da documentação disponível, isto é, uma pesquisa por amostragem.

Os trabalhos com bases quantitativas sempre apresentam um resumo do corpo documental, contendo o número e/ou porcentagem de homens e mulheres testadores, estado conjugal ou civil, naturalidade, cor e idade, quando houver, tipo de testamento e seus respectivos arquivos.

Os dados da pesquisa devem ser tabulados e apresentados preferencialmente em tabelas ou gráficos.

Arquivos

Essa documentação pode ser localizada em diferentes arquivos. Eram transcritos nos inventários post-mortem. Entretanto, nem todo testamento era seguido de inventário, essa documentação pode estar nos cartórios ou reproduzida nos livros dos cartórios.

Os antigos testamentos de São Paulo estão arquivados no Arquivo do Estado de São Paulo, mas os testamentos do século XIX e XX continuam arquivados no Arquivo do Judiciário do Estado de São Paulo. A documentação referente à comarca de Campinas está sob guarda do Centro de Memória da UNICAMP.

Até o século XIX, a Igreja considerou-se guardiã dos testamentos, em vista disso, muitos deles foram trasladados no livro de registro de óbitos. A documentação eclesiástica manteve-se nos arquivos das diversas Cúrias do Brasil.

Historiografia

Os inventários e os testamentos vêm sendo pesquisados há muito tempo para a reconstituição da memória histórica. Por exemplo, o trabalho pioneiro de Alcântara Machado sobre a sociedade paulista seiscentista (1943). Porém, essa documentação somente recebeu metodologia específica após o desenvolvimento dos estudos das séries documentais e da demografia histórica especialmente na França.

No Brasil, o método quantitativo da demografia histórica foi utilizado primeiramente na historiografia paulista por Maria Luiza Marcílio (1974).

Após os anos 1980, vários historiadores publicaram importantes teses utilizando as informações dos antigos testamentos. A seguir, apresentaremos algumas obras que possuem ampla bibliografia sobre a família brasileira.

Reexaminando o conceito de família patriarcal extensa, temos as teses de Eni de Mesquita Samara (1980, Doutorado e 2003, Livre-Docência) repensando o papel da família e da mulher em São Paulo seiscentista. A organização da família colonial paulista e o papel dos casamentos foram os temas da tese de Alzira Lobo de Arruda Campos (1986). Maria Beatriz Nizza da Silva discutiu o sistema de casamentos (1989) e a questão dos bens vinculados no Brasil setecentista (1990).

Relacionando as estratégias das famílias na concentração ou na distribuição da riqueza, temos as teses de Kátia de Queirós Mattoso (1988) sobre a família baiana do Oitocentos; de Ida Lewkowicz (1989), sobre a sociedade mineira do século XVIII e XIX; de Sheila de Castro Faria (1998), um estudo da família colonial do norte fluminense; e de Maria Lucília Viveiros Araújo (2003), sobre a riqueza dos paulistanos da primeira metade do Oitocentos.

Discutindo especificamente a terça e o dote como estratégias de favorecimento de parte dos filhos, temos Alida Metcalf (1992) que abordou a família colonial de Santana do Parnaíba, da Capitania de São Paulo. Muriel Nazzari (2001) discorreu sobre a transformação do dote em São Paulo. Carlos de Almeida Prado Bacellar (1987) fala da investigação sobre os filhos que migraram para o Oeste Paulista. Dora Isabel Paiva da Costa (1992) tratou do crescimento das legítimas dos filhos (parte da herança) em Campinas, Estado de São Paulo, oitocentista.

Considerações finais

Os testamentos serviram como documento da última vontade do cristão desde a Idade Média, entretanto, no século XIX, eles foram perdendo o caráter místico, tornando-se somente uma indicação pessoal para a distribuição de parte dos bens.

Esses documentos eram redigidos de forma a contemplar primeiramente os pedidos espirituais e, a seguir, os pedidos temporais. Como eles abordavam diferentes aspectos da sociedade, os historiadores têm preferido analisá-los por partes.

Nosso artigo apresentou preferencialmente as teses que utilizaram os métodos quantitativos. Essas teses criaram novos paradigmas para a história brasileira, e possibilitaram o diálogo das questões nacionais com a problemática internacional.

Anexos

Tabela das disposições testamentárias de São Paulo, 1800-1850

Gráfico da distribuição dos legados em São Paulo, 1800-1850
Fonte: 68 testamentos dos inventários do Arquivo do Judiciário do Estado de São Paulo.

Modelo de parte da ficha eletrônica de testamento

Bibliografia

ARAÚJO, Maria Lucília Viveiros. Os caminhos da riqueza dos paulistanos na primeira metade do Oitocentos. São Paulo, 2003. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
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BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra – Família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista, 1765-1855. São Paulo, 1987. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
CAMPOS, Alzira Lobo de Arruda. O casamento e a família em São Paulo colonial: caminhos e descaminhos. São Paulo, 1986. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
COSTA, Dora Isabel Paiva da. Herança e ciclo de vida: um estudo sobre família e população em Campinas, São Paulo 1765-1850. Rio de Janeiro, 1992. Tese (Doutorado em História) – Faculdade de Ciências Humanas, Lingüística, Letras e Artes da Universidade Federal Fluminense.
DAUMARD, Adeline. História Social do Brasil: teoria e metodologia. Curitiba: UFP, 1984.
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento [tese de 1994]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
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MACHADO, José de Alcântara. Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Martins, 1943.
MARCÍLIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo: povoamento e população, 1750 – 1850. Trad. da autora da tese de 1968. São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1974.
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Maria Lucília Viveiros Araújo é mestra em Arte (História da Arte) e doutora em História Econômica pela Universidade de São Paulo. Foi professora e coordenadora do ensino fundamental e médio. É pesquisadora do NEHD – Núcleo de Estudos de História Demográfica e do CEO – Centro de Estudos do Oitocentos. Publicou diversos artigos em revistas especializadas e em anais de congressos acadêmicos. Ver os resumos em:http://www.brnuede.com/pesquisadores/lucilia/index.htm
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