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Artigo publicado na edição nº 7 de dezembro de 2005.
Canal 100 e a Construção do Imaginário

Paulo Roberto de Azevedo Maia

Quem tem mais de 30 anos sabe que ir ao cinema, nas décadas de 1960, 1970 e início de 1980, não significava apenas assistir um filme. Era a oportunidade de ver, em cinemascope (imagem panorâmica desenvolvida em 1953), além das notícias da semana, o futebol brasileiro.

A tela grande enchia os olhos e encantava gerações, unindo duas paixões: o cinema e o futebol. Essa experiência foi possível graças ao periódico cinematográfico mais importante da época e, hoje, são nítidas as marcas na memória daqueles que o viram. O segredo era a técnica aliada a uma linguagem poética, expressiva, combinando som e imagem de forma nunca antes vista no Brasil. Estamos falando do cinejornal Canal 100.

A experiência de levar a notícia para as telas aconteceu de forma rotineira, em 1909, em Paris. O Pathé Journal foi o primeiro periódico. Antes, dele apenas documentários com temas isolados podiam ser vistos no cinema. O primeiro jornal cinematográfico surge, no Brasil, em 1912, e é a versão brasileira do Pathé Journal. Até 1935, o país contava com nada menos que cinqüenta cinejornais.[*1] Porém, temos que admitir que a maioria dos cinejornais não apresentava nenhum requinte estilístico, por serem, na sua grande maioria, fonte de recursos para pretensos cineastas – na realidade, empresários de cinema, que pouco estavam preocupados com a elaboração dos cinejornais, mas com a obtenção do maior lucro possível. Os “cavadores”, produtores malditos do cinema do início do século, foram os grandes viabilizadores do cinema brasileiro desse período. Eles eram encarados como arrivistas dispostos a tudo, ou seja: “De modo geral esses cinegrafistas eram mal vistos; eles tinham é que descolar a grana, qualquer trambique valia”.[*2]

Durante o Estado Novo, esses informativos ganham mais força com a obrigatoriedade de sua exibição, quando surge um periódico oficial, o Cinejornal Brasileiro, que se tornou o grande instrumento de culto à imagem do então presidente Getúlio Vargas.

Os cinejornais se dedicavam ao registro de dois temas, particularmente, o “ritual do poder” e o “berço esplêndido”. O primeiro é uma referência às filmagens dos eventos políticos, das paradas militares e das inaugurações; e o segundo é a glorificação da imagem do Brasil maravilha, contemplando as belezas naturais e cultuando o ufanismo.[*3]

No final da década de 1950, durante o governo JK, surgiram vários cinejornais com o objetivo de cobrir a construção de Brasília, sendo o Canal 100 um deles. No entanto, a maior parte desses periódicos desapareceu.

Essa experiência cinematográfica só foi possível graças à figura do seu produtor e proprietário Carlos Niemayer. Típico “carioca da gema”, “Carlinhos”, como era conhecido, virou figura lendária na Zona Sul ao fundar o clube dos Cafajestes, grupo de amigos boêmios responsáveis, em grande parte, pelo agito da região. Apesar de conhecido por ser o rei da noite, Niemayer teve a grande virada de sua vida ao sair da força aérea brasileira para se dedicar à carreira de piloto privado, onde tomou contato com Jean Mazon, famoso cineasta, criador de numerosos documentários sobre o Brasil.[*4]

Na Europa, quando era fotógrafo, ganhou prestígio ao realizar ensaios fotográficos com figuras ilustres da política, como Benito Mussolini e Adolf Hitler. Vale lembrar que esse francês veio para o Brasil na década de 1930, por intermédio de Alberto Cavalcanti, documentarista brasileiro de destaque dentro da escola inglesa de documentários (Grupo de cineastas responsáveis pela principal produção de cinema documentário na Europa da década de 1930; dentre os principais documentaristas estão John Grierson, Robert Flaherty e Alberto Cavalcanti).

No Brasil, Mazon trabalhou no DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) e, mais tarde, na revista O Cruzeiro. Depois de conhecer a rotina da imprensa brasileira, passa a produzir seus próprios documentários, levando imagens das mais variadas regiões do país às telas. O foco central dessas produções era o Brasil e sua beleza, seu caráter alegre e festivo; era a expressão do ufanismo em um discurso de valorização do sentimento de otimismo.

A ligação de Carlos Niemayer e Jean Mazon foi significativa. As viagens pelo Brasil, o contato com a realidade interiorana, a exuberância da natureza e, principalmente, conhecer uma forma de produzir cinema, levaram o piloto a abandonar sua carreira nos ares pela incerteza de ser um cineasta em um país subdesenvolvido. Depois de fazer alguns documentários com Jean Mazon, a compra do espólio da empresa Líder Cinematográfica foi o próximo passo rumo a uma modalidade de cinema (o cinejornal) que, já na década de 1950, não vivia seus melhores dias, afinal, a televisão ainda começava a se tornar popular.

Um dos fatores fundamentais para a permanência do Canal 100 no ar durante tanto tempo (1959-1986) foi a sua forte relação com os governos militares no pós-64. Durante o período da ditadura, os patrocinadores que garantiram a vida do cinejornal de Niemayer foram o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Ora, o que dizer de um periódico patrocinado pelo regime militar? A primeira reação é acreditar na existência de uma relação de patrocínio com vistas à propaganda política. Embora exista dentro de um governo autoritário o desejo de legitimação de seus atos arbitrários, e o fato de os filmes veiculados pelas produções Niemayer terem um forte teor ufanista no pós-64, condizente com o regime, o mesmo não é verdade para o período anterior. Isso se torna mais evidente quando verificamos a presença de filmes encomendados tanto por grupos de esquerda quanto de direita.

A realização do documentário Os Sem Terra, que abordava a questão da reforma agrária, a pedido do então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, acontecia ao mesmo tempo em que eram produzidos filmes de conteúdo conservador, como A Boa Empresa, discurso favorável à boa imagem do patrão, com claro interesse de ocultar os conflitos nas relações de trabalho, e Asas da Democracia,[*5] uma apologia à Força Aérea Brasileira (ambos encomendados pelo IPES – Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, organização de empresários do Rio de Janeiro e de São Paulo, fundada em 1961, que desenvolveu intensa propaganda anticomunista através de cursos, conferências públicas e artigos publicados em jornais, fez dura oposição ao governo Goulart e foi um dos grandes incentivadores do golpe militar de 1964). Esses filmes foram produzidos entre 1962 e 1964, tinham o intuito de cultuar os valores capitalistas, católicos e militares e contavam com a direção de Carlos Niemayer, além da tradicional narração de Cid Moreira, que se tornaria clássica nas edições do Canal 100.[*6]

A abordagem cinematográfica do Canal 100 foi, de forma não oficial, condizente com a proposta de leitura do Brasil feita pelo projeto de propaganda política do regime militar que procurou se distanciar dos tipos clássicos de propaganda. O tom oficial foi abandonado, a atuação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, órgão do governo Vargas durante o Estado Novo, responsável pelo controle, censura e produção cultural no Brasil), ainda mantinha marcas no imaginário popular e o governo sabia da repulsa da população por esse tipo de estratégia oficial de propaganda. Foi necessário encontrar formas diferenciadas de divulgação do seu ideário, amparada em temáticas não oficiais, ou seja, valorizar o clima de otimismo e alegria do período.[*7] Assim, foi criado, em 1968, no governo do presidente Costa e Silva, a AERP – Assessoria Especial de Relações Públicas –, órgão ligado à própria Presidência da República e responsável pela propaganda do regime militar. Sua estratégia de propaganda foi elaborar um discurso indireto. Filmes curtos para televisão exaltando a união familiar (A Boa família), o sucesso do milagre econômico ou as campanhas cívicas com o famoso cata-vento verde amarelo, estavam paralelos aos filmes veiculados pelo Canal 100, que passou a ser uma revista de variedades, tendo como maior preocupação o entretenimento e a valorização da idéia de um país idílico.

A reação positiva dos espectadores às imagens do Canal 100 era facilitada pela noção de realidade dada pelo conteúdo jornalístico. As imagens da semana, apresentadas como em uma revista de variedades, fez com que o Canal 100 se tornasse o grande inovador do cinejornalismo brasileiro. A inovação na forma foi significativa, pois, pela primeira vez, um cinejornal deixava a postura séria e tradicional, sacralizada pelo Estado Novo, e propunha uma roupagem nova, introduzindo uma série de tópicos variados, com uma imagem jovial e leve. Apesar de registrar cenas das grandes manifestações do movimento estudantil, como a passeata dos Cem mil, as telas dos cinemas mostravam algo diferente, lá estavam as realizações governamentais, as imagens do Rio de Janeiro, a praia, as belas mulheres e, como não poderia faltar, o futebol.

O futebol foi o tema privilegiado no Canal 100. Depois de passar pelo noticiário, o futebol finalizava cada edição, trazendo imagens surpreendentes, diferentes daquelas da televisão. O Maracanã lotado em dia de Fla-Flu ou o último jogo da seleção brasileira eram de encher dos olhos dos espectadores. Um exemplo foi a última partida do técnico João Saldanha no comando da seleção brasileira em 1970. No Maracanã quase no escuro, foi possível salvar a partida e ver Pelé fazer um gol memorável, graças às lentes de Niemayer. Os recursos eram dos mais variados, o close no jogador que acaba de perder o gol; a cabeceada vista na câmara lenta, onde até as gotas de suor eram registradas; um passeio pela lateral do campo acompanhando o jogador; as várias câmaras espalhadas por todo o estádio. Mas se engana quem pensa que o jogo era o único foco do espetáculo cinematográfico proporcionado pelo Canal 100. As imagens da torcida eram grandiosas, gestos, olhares, gritos, enfim toda uma série de expressões capazes de emocionar o público que se tornava parte do espetáculo.

Um bom exemplo do que foi o Canal 100 pode ser verificado nas Palavras de Nelson Rodrigues, ao prever o que seria a cobertura da Copa do Mundo de 1970 pela equipe de Niemayer:

O que eu queria dizer é que Carlinhos Niemeyer vai inventar uma nova distância entre o torcedor e o craque, entre o torcedor e o jogo. Não sei se me entendem. Mas vão cessar as fronteiras da tela e a platéia. Imaginem Pelé, em dimensão miguelangesca, em plena cólera do gol. Sua coxa, plástica, elástica, ornamental, enchendo a tela. Tudo que a vitória possa ter de lírico, dramático, delirante, estará esculpido na luz.[*8]

Futebol e música passavam a fazer parte de um único discurso, pois o que anunciava o início da bola rolando na tela era a música “Na cadência do samba”, de Luiz Bandeira. Ao ouvir “Que bonito é...” o público era tomado por uma profunda emoção, não de levar as lágrimas, mas de fazer o espectador acompanhar cada imagem, cada gesto, cada gol feito ou perdido como um momento de prazer estético único.

Foi a partir da copa do mundo de 1970 que o futebol ganhou o seu grande impulso no cinema. Sabemos da importância dessa copa para legitimação e fortalecimento da idéia do “Brasil Maravilha” promovida pelo governo Médici e as imagens do Canal 100 reforçavam que “esse é uma país que vai pra frente”. Enquanto a televisão mostrava a copa em preto e branco, a equipe de Carlos Niemayer, com patrocínio da Caixa Econômica Federal, foi ao México e usou de toda a sua técnica para trazer as primeiras imagens coloridas de uma copa do mundo para o Brasil. Com 12 câmaras espalhadas pelo estádio, foi possível visualizar uma outra copa, muito mais poética. O sucesso foi enorme, depois disso não havia, no país inteiro, quem não conhecesse o Canal 100.

O início dos anos 1980 trouxe grandes mudanças, tanto para a realidade política brasileira, quanto para os cinejornais, o fim do governo militar coincide com o fim do Canal 100. A experiência do jornalismo cinematográfico atingia um desgaste limite. Sem o auxílio econômico das instituições governamentais, não era mais possível manter um cinejornal em um mundo dominado pela televisão.

Muitos anos se passaram desde a última exibição do Canal 100, em 1986. Carlos Niemayer morreu em 1999. O acervo do cinejornal se encontra na empresa Carlos Niemayer Produções, que agora é comandada pelos seus familiares. O Canal 100 se converteu em uma experiência histórica, forte na memória coletiva e representativa no sentido de exaltar imagens do Brasil em três décadas.

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É historiador, mestrando em multimeios no departamento de cinema do Instituto de Artes da UNICAMP.
Para mais detalhes, ver BERNARDET, Jean Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979, p. 24.
BERNARDET, Jean Claude. Cinema Brasileiro: propostas para uma história. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1979, p. 27.
GOMES, Paulo Emílio Salles. Anais do Simpósio do Filme documental Brasileiro. Recife: MEC-IJNPC, 1977.
NARS, Edson Luiz. Um olhar sobre o Brasil pelas lentes de Jean Mazon: De JK a Costa e Silva. Araraquara, 1996. Dissertação de mestrado – Unesp-Araquara, p. 13.
Essas observações são feitas a partir da leitura do roteiro dos filmes A Boa Empresa e Asas da Democracia elaborada pela equipe do Canal 100.
Uma referência à ligação das produções Carlos Niemayer com o IPES pode ser vista em DREIFUSS, Rene. A conquista do Estado. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
FICO, Carlos. Reinventando o otimismo: ditadura, propaganda e imaginário social no Brasil (1969-1977). Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997, p. 17.
RODRIGUES, Nelson. O reacionário. Rio de Janeiro: Editora Record, 1977.