:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 10 de maio de 2006.
Lituanos e seus descendentes
Reflexões sobre a identidade nacional numa comunidade de imigrantes

Eliane Sebeika Rapchan

Imigração e Identidade: Limites e possibilidades de reprodução da cultura e memória no Brasil

O que une os imigrantes à sua terra natal? Tais vínculos se reproduzem em seus descendentes? Como se constituem a memória e a lembrança dos imigrantes quanto a seu país de origem? O que se esquece, o que permanece e o que se atualiza com o passar do tempo?

Evidentemente as respostas a essas questões variam de acordo com os perfis dos grupos de imigrantes, suas origens, destinos e contextos. O texto a seguir apontará alguns caminhos para se pensar sobre o caso da imigração lituana para o Brasil, especificamente para São Paulo, considerando o recente reavivamento dos interesses de lituanos e descendentes com relação ao seu país de origem que tem se manifestado por meio do crescimento de viagens, do número significativo de solicitações de cidadania lituana e do interesse em viver e trabalhar na Europa. Para isso, será importante recuperar alguns dados da história recente da imigração lituana para o Brasil.

O fenômeno da imigração é complexo e tratar do tema no Brasil não é fácil: a primeira dificuldade que se apresenta para a realização de qualquer reflexão sobre os imigrantes europeus no país (pode-se aí incluir, também, a Argentina) liga-se à pequena quantidade de reflexão científica disponível e à supressão de sua importância enquanto fenômeno social ou cultural: a imigração passou a ser tema presente nos trabalhos acadêmicos. As análises sociológicas que se tornaram clássicas acerca da modernização do país priorizaram a reflexão, sem dúvida importantíssima, sobre relações raciais e preconceito contra os descendentes de africanos, mas ignoraram os destinos dos europeus.

Segundo Bóris Fausto (1991: 12-14), a questão imigratória não só é tratada como secundária mas também aparece, de forma implícita ou explícita, como uma história de final feliz, o que não condiz com os relatos dos sujeitos envolvidos. Fausto defende a realização de estudos sobre os imigrantes no Brasil sob o argumento que eles podem iluminar questões centrais sobre relações entre lealdade étnica e lealdade de classe social, preconceito, integração cultural e formas de reprodução da identidade cultural.

Os lituanos imigrantes não escaparam, no Brasil, da inclusão nesse quadro geral. Há registros isolados da presença de lituanos no país na segunda metade do século XIX. Desta leva, a maioria parece depois ter imigrado para outros países como os EUA (Chicago) e a Argentina (CCILB, 1976: 7). O primeiro registro de chegada massiva dos lituanos no Brasil (aproximadamente 800 pessoas) deu-se no ano de 1888, no Rio grande do Sul. As informações presentes nos fragmentos de correspondência trocada, às quais tive acesso (CCILB, 1976: 21-24), ratificam as hipóteses de Michel Hall (citado por Fausto, 1991) acerca das terríveis condições em que viviam os imigrantes europeus que chegaram ao Brasil no período (RABUSKE in CCILB, 1976: 22).

Os problemas enfrentados estendiam-se do desconhecimento completo da língua portuguesa e do choque cultural. Para aqueles encaminhados às fazendas de café, somaram-se as dificuldades decorrentes da inclusão de uma população de tradição marcadamente camponesa (PILINKAITE-SOTIROVIC, 2005) num sistema de colonato (MARTINS 2002, STOLCKE 1986), marcado freqüentemente por exploração, pobreza extrema dos trabalhadores, pelo sistema de barracão e por contratos injustos, quando não descumpridos.

No período de 1920-1939 migraram para o Brasil muitos lituanos que saíram de territórios ocupados pela Polônia ou que já se encontravam em outros países europeus em busca de trabalho. Por isso, muitos lituanos foram registrados no Brasil como russos ou poloneses e muitas pessoas de outras origens foram registradas como lituanas (CCILB, 1976: 7). Aqueles provenientes das áreas rurais viam na imigração a saída para manter a condição camponesa. O grande número de filhos, a escassez da terra, a fome e a instabilidade política ameaçavam as possibilidades de reprodução da unidade familiar sem fragmentá-la. Desse modo, a propaganda das agências de imigração anunciando terra abundante, clima ameno e fertilidade da terra, dizia-se que no Brasil nasciam pães em árvores, aguçando o imaginário e estimulando famílias extensas inteiras a arrendar seus pequenos lotes e aventurar-se por aqui.

Assim, por todas essas razões, os dados sobre imigração lituana para o Brasil são estimados, até 1937, em aproximadamente 37.620 pessoas. Após a Segunda Guerra Mundial, registrou-se a entrada de mais 20 mil lituanos no país (CCILB, 1976: 7). Em 1996, estimava-se que os lituanos, somados a seus descendentes correspondiam a um contingente de aproximadamente 100 mil pessoas (Lithuania in the World, 1996: 12).

Entretanto, a reflexão sobre as relações entre identidade e imigração exige a consideração de outros fatores além da origem nacional comum. O caso específico da imigração lituana possui tanto aspectos que contribuíram para aglutinar esforços em favor da manutenção dos vínculos entre os imigrantes lituanos e seus descendentes espalhados pelo mundo com o país natal como, na direção contrária, produziu outros que concorreram para a diferenciação dos imigrantes entre si e entre eles e seus conterrâneos.

A segunda maior colônia lituana do mundo localiza-se na cidade de São Paulo, no bairro de Vila Zelina (Lithuania in the World, 1996: 12) e sua história tem quase setenta anos. Suas condições de formação, na mesma medida em que catalizaram forças identitárias, excluíram grupos em função da força de seus sinais diacríticos (ver Cunha, 1986) como o catolicismo, o cultivo da língua liguana e a residência no bairro. Ou seja, os imigrantes lituanos que, por opção ou necessidade, moravam em bairros distantes, os não católicos, os comunistas, socialistas ou simpatizantes do ideário de esquerda do movimento operário, os que buscavam integração mais rápida à sociedade brasileira ou, ainda, participavam animadamente de outros grupos de imigrantes, como os russos, ficaram de fora.

Ao mesmo tempo, não é difícil perceber que os imigrantes de determinado país diferenciam-se daqueles seus compatriotas que permaneceram no país de origem. Diferentes contextos históricos, sociais, econômicos e políticos, distintas trajetórias pessoais e mesmo sentimentos e representações diversas com relação a parentes, língua, práticas culturais, história e memória contribuem para diferenciar pessoas de origem nacional comum. No entanto, existem situações que podem contribuir com a reunião desses sujeitos que tendem à diferenciação e experimentaram uma delas.

Os paradoxos da independência da Lituânia

Desde aproximadamente 1949 até 11 de Março de 1990, quando a independência da República da Lituânia foi proclamada, as organizações de lituanos ao redor do mundo concentraram esforços com o intuito de reproduzir a cultura lituana for a do seu território para alimentar um núcleo de resistência e luta contra a presença soviética no país. Ou seja, estabeleceu-se uma relação causal direta entre cultura nacional e independência política concebida de tal modo que a ausência de uma comprometeria a reprodução da outra.

Dentre as repercussões desse movimento, algumas merecem destaque. Uma delas é o paradoxo produzido pelo aprofundamento do contato entre lituanos espalhados pelo mundo, engajados nos movimentos pró-independência, e o isolamento das comunicações entre os imigrantes e seus parentes que permaneceram na Lituânia devido aos períodos de censura na imprensa e nos correios. Daí que sujeitos provenientes de uma sociedade predominantemente rural fundada em laços comunitários viram-se não só diante do desafio de sobreviver em outros países e outras culturas, freqüentemente em meios urbanos, mas também de criar uma espécie de “comunidade internacional” fundada sobre bases de um sentimento nacionalista.

Assim, por meio da Comunidade Lituana Mundial, aprofundaram-se os vínculos entre as colônicas, seja pela via da produção e circulação de documentos e pela participação em atividades realizadas pelos comitês de imigrantes cujas propostas circulavam pelas colônias do mundo todo estimulando-os a participar do movimento pela independência da Lituânia, seja pelo material chamado “samizdat” (textos produzidos por movimentos dissidentes organizados em países pertencentes à então União Soviética) e que saíam secretamente da Lituânia (OLESZCZUK, 1985).

Segundo Oleszczuk (1985), a atividade de produção dos “samizdat” iniciou-se na Lituânia em 1972, tendo ali sido particularmente próspera e contínua até a independência. Além disso, o movimento dissidente lituano parece ter atingido a cifra de centenas de milhares de adesões, dado o número de assinaturas em petições não oficiais relatadas para a Catedral de Klaipeda (OLESZCZUK, 1985). O autor caracteriza o caso da luta pela independência lituana como marcado pelo nacionalismo, por inquietação religiosa, defesa da singularidade lingüística e defesa dos direitos humanos de presos e militantes.

Esse tipo específico de nacionalismo, próprio das “nações sem Estado” (ESTEVA-FABREGAT1996: 2) marcou-se na Europa por forte apego à idéia de nação, pela defesa da distinção lingüística e pelo cultivo de formas de resistência cultural e implicava a reinvindicação da legitimidade de sua experiência histórica a partir de seus componentes sócio-étnicos. Tal nacionalismo, ou “lituanismo”, quando enunciado por parte das colônias lituanas, tinha um sentido muito concreto enquanto aporte e estímulo importante às lutas de independência, ou seja, enquanto a Lituânia era uma “nação sem Estado”. Eram os imigrantes, vivendo no “mundo livre”, como costumavam enunciar em seus textos e documentos, que sentiam-se incumbidos da reprodução da língua e da cultura, oprimidas em sua terra natal, nos países estrangeiros em que vivam, ao mesmo tempo que co-responsáveis pelo processo de independência.

A proeminência radical do nacionalismo lituano foi capaz de, durante décadas atenuar diferenças e reunir grupos alocados em países diferentes e em classes sociais distintas. Um exemplo interessante expressa-se através da comparação entre as duas maiores colônias lituanas do mundo: a brasileira, concentrada em São Paulo_SP e a que se encontra nos Estados Unidos da América, em Chicago. A reprodução das tradições culturais lituanas nos respectivos países produziu resultados um tanto quanto diferenciados.

A origem social da colônia lituana no Brasil é marcadamente camponesa, que passou aqui por experiência rural. O perfil da imigração é caracterizado pelo deslocamento de famílias inteiras que imigraram a fim de trabalhar nas fazendas paulistas. A maior parte de seus membros encontra-se hoje nas classes populares. A colônia lituana em Chicago, por sua vez, formou-se também a partir de camponeses que, no entanto, caracterizava-se por homens jovens e solteiros que obtiveram trabalho nas minas e nas cidades porque tinham interesse em voltar para o país de origem. Uma parcela significativa, no entanto, fixou-se, alfabetizou-se em inglês, estudou em escolas americanas e obteve cidadania para seus filhos (SENN, 2004).

Apesar das diferenças, à medida em que as relações entre estas duas colônias se mantiveram, por meio da circulação de publicações, de religiosos, de jovens e de militantes pró-independência, por meio dos Festivais Internacionais da Juventude Lituana e em função das lutas nacionalistas pela independência, estabeleceram-se vínculos entre os grupos, que foram alimentados pelos próprios sentimentos de partilha de uma identidade comum.

Entretanto, a abertura soviética e a posterior independência da Lituânia colocaram uma nova questão para as colônias, desta vez contraditória: por um lado, a euforia diante da tão desejada independência possibilitou a retomada do intercâmbio de escritos, música, objetos e pessoas com o país de origem. O número de viagens à Lituânia tem se ampliado e tornou-se possível localizar parentes com os quais se havia perdido contato há décadas.

Por outro lado, esse contato mais intenso com a terra natal produziu também um curioso estranhamento. A Lituânia encontrada não é a mesma dos avós e pais imigrantes. As tradições que atravessaram o Atlântico em navios há pelos menos quarenta e cinco anos são profundamente distintas do que se encontra nas viagens de avião ao Báltico. Muitos brasileiros descendentes de lituanos não conseguem reconhecer no país que visitam a expressão da memória oral de seus antepassados. Isso é explicável à medida que os imigrantes, distantes na maior parte dos casos definitivamente de seu país de origem, esforçaram-se em proteger algumas de suas tradições: a culinária, tradições orais, artesanato, canções, danças e a língua e tendem a cristalizá-las.

Aqueles que ficaram na Lituânia, por seu turno, depararam-se com outras condições históricas e seus processos de reprodução e de resistência, apesar de terem tido um objetivo comum, manifestaram-se e desencadearam resultados distintos. Suas expectativas e desafios são outros e adquiriram singularidade ainda maior com a inclusão da Lituânia na União Européia (LANE, 2002) em 2004. Este estranhamento acentuou-se ainda mais à medida que os imigrantes e seus compatriotas estiveram isolados por, no mínimo, quarenta e cinco anos.

A motivação que teceu a rede de relações entre imigrantes lituanos residentes em países diferentes e alimentou sua singularidade não existe mais, desde a independência. Do ponto de vista da identidade sócio-cultural, a questão que se coloca para os descendentes de imigrantes lituanos assenta-se em outras bases. De um lado, a cada geração nascida aqui, aumentam as possibilidades de integração à cultura e à sociedade brasileira de maneira mais intensa, seja pelos casamentos interétnicos, seja pelo distanciamento da memória dos antepassados estrangeiros ou ainda por uma socialização mais intensamente brasileira. De outro lado, o contexto atual oferece aos interessados um leque maior de possibilidades de acesso à cultura lituana, seja através da obtenção da cidadania, dos cursos de língua, das viagens, da internet etc. Contudo, a busca dessas vias costuma ser individual e não coletiva. As atividades comunitárias propostas pela colônia lituana em São Paulo são, além da realização das missas em lituano e das atividades paroquiais em Vila Zelina, o Coral Lituano, o Palanga e o Nemunas, respectivamente, o grupo de escoteiros e o de danças folclóricas, para os quais tem-se procurado atrair crianças e jovens.

A intensidade dos vínculos dos descendentes de lituanos com suas raízes e com suas respectivas comunidades está em transição. Os perfis que irão adquirir não estão delineados. É claro, deve-se considerar que os sujeitos constituem seu modo de ser no mundo através de suas culturas e que, o mesmo movimento dialético que as reproduz também as inova de forma tal que as culturas, apesar das transformações, possam continuar a ser iguais a si mesmas, mantendo viva a sua identidade.

Bibliografia

CCILB..Comitê do Cinqüentenário da Imigração Lituana para o Brasil, Cinqüentenário Penkiasdesmtmetis 1926-1976, São Paulo, 1976.
Cunha, M. C. Antropologia no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1986.
Esteva-Fabregat, C. La Nación y El Estado Poder, mimeo, 1996.
Fausto, B. História da Imigração para São Paulo, São Paulo, Ed. Sumaré/Fapesp, 1991.
Lane, T. Lithuania: Stepping Westward, London: Routledge.
Lithuanian Airlines (1996). “Lithuania in the World”, Vilnius, vol.4(3).
Martins, J. S. (2002). “Representing the peasantry? Struggles for/about land in Brazil”, The Journal of Peasant Studies, vol.29(3-4), pp. 300-335, 2002.
Olesczuk, T.. “An Analysis of Bias in Samizdat Sources: A Lithuanian Case Study”, Soviet Studies, vol. XXXVII (1), January, 1985.
Pilinkaite-Sotirovic, V. “Relationships between generations in post-Emancipation Lithuania (1864-1904)”, Continuity and Change, vol. 200, pp. 11-142, Cambridge, University Press, 2005.
Senn, A. E.. Verbete “Lithuanians” in J.L.Reiff, A.D.Keating and J.R.Grossman(eds), Encyclopedia of Chicago, Chicago Historical Society, The Newberry Library, 2004.
Stolcke, V. Cafeicultura: Homens, Mulheres e Capital (1850-1980), São Paulo, Brasiliense, 1986.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Clique nas imagens para visualizá-las em tamanho maior.
Topo
Mestra em Antropologia Social pela USP, Doutora em Ciências Sociais pela Unicamp, professora do Departamento de Ciências Sociais da Universidade de São Paulo.