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Artigo publicado na edição nº 12 de julho de 2006.
O Bestiário nas Escolas do Norte Europeu

Profª Dra. Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner

O avanço atual da cibernética produz estranhas figuras alienígenas, feras pensantes, robôs humanizados, heróis humanóides, que estão presentes em todo universo contemporâneo, desde as difundidas pelo cinema até a mais remota imaginação popular. Junto com os chamados "efeitos especiais", faz muito sucesso uma porção de figuras deformadas resultantes de aplicações científicas ou fenômenos da natureza. Tudo isso parece tão nosso, tão contemporâneo, e, no entanto, toda essa modernidade só faz dar continuidade a imagens que remontam aos primórdios de nossa história, catalogadas pelo Bestiário Europeu.

O Bestiário era uma espécie de registro no qual estavam descritos, junto com os animais da Criação, os inventados pela fantasia e aceitos pela credibilidade dos contadores de prosa e dos poetas que haviam perpetrado o espírito popular da Idade Média. Apareciam em várias obras escritas, influenciadas, sobretudo, pelo consagrado Livro das Maravilhas de Jean de Mandeville,[*1] pioneiro na revisão da fauna fabulosa, híbrida e exótica.

(veja imagem 1)

Desde a época merovíngia (V - VIII d.C.), o Bestiário tomou conta do imaginário ocidental trazendo fábulas, mitologias e as teogonias mais diversas. O vocabulário bárbaro, franco, visigodo e outros tantos, também foram fontes abundantes de invenções análogas, trazendo fauna extravagante e legendária. Os primitivos desenhos de cavernas, representações de rituais totêmicos, pinturas rupestres e o imaginário religioso do Oriente, contribuíam com a maior parte dos monstros medievais mais conhecidos, tais como os dragões e as quimeras. Mas é realmente o Apocalipse de São João a fonte mais espetacular usada pelo cristianismo desde o século XI, véspera da chegada do ano mil, com todo o terror que se apostava no suposto fim do mundo. A partir daí iniciam-se as inúmeras versões a respeito das revelações de São João, e a imaginação popular se rivalizou na fertilidade de compô-las, e a arte, na força de traduzi-las, de ilustrá-las.

(veja imagem 2)

Ao Apocalipse juntam-se outras passagens da Escritura, na qual bons e maus entram em ação. Satã e outros demônios que se multiplicam são mostrados em seu aspecto terrível e imundo, principalmente nas Iluminuras, miniaturas e ilustrações marginais. Assim, as visões apocalípticas não abdicam do poder que exercem sobre o espírito humano, seguindo até a Alta Idade Média, e a tradição do surreal, do fantástico, agregada à alma religiosa, só se interrompe no momento em que a devoção se faz mais íntima, mais individual e mais terna.

A mitologia das águas, vinda dos países germânicos, foi muito próspera até meados do século XVI. A mistura dos componentes desta mitologia e de outras espécies contidas no Bestiário fez com que os poetas artistas e escultores medievais inspirassem suas concepções e variassem seus protótipos.

(veja imagem 3)

Quanto às narrativas dos viajantes, estas se superaram em audácia na descrição dos bestiários, e pode-se dizer que até hoje é vista como uma das mais espantosas criações que o espírito humano produziu em termos de imagem durante toda a Idade Média.

(veja imagem 4)

Baseado em um outro Livro das Maravilhas,[*2] foram elaboradas as Iluminuras de Jean de Berry, nos primeiros anos do século XV, onde se vêem combates de seres monstruosos e diversos dragões voadores asiáticos, provavelmente inspirados nas descrições fantasiosas de Marco Polo (1254-1323). Este mesmo Livro da Maravilhas sugere a existência de raças humanas monstruosas, como homens de orelhas vastas, ou, imagens ilustradas sob um paisagismo mostrando o Etna, com a aparição de dragões-serpentes que devoravam as crianças “nascidas do mal”, entre outras coisas.

(veja imagem 5)

Do registro profano ao religioso, a crença, que caminha junto com o conhecimento, entrega-se às mesmas especulações e fantasias.

Por volta de 1500, o Ocidente foi acometido de uma espécie de grande pânico. As construções intelectuais da Idade Média se arruinaram. Renascença e Reforma uniram os fundamentos de um grande pensamento perdendo pouco a pouco a segurança que os alicerçava. Os problemas sociais surgiram numa Europa descontente, onde a revolta aumentava de forma constante. A arte passou a exprimir, a sua maneira, um desequilíbrio espiritual e uma imensa inquietude, ressuscitando temas que há muitos anos haviam ilustrado os pórticos das Igrejas. Neste fim de século começou-se a encarnar as superstições mais absurdas e as loucuras mais angustiadas. As demonstrações artísticas desta época são as mais puras expressões da fantasia. Mas fantasia é um privilégio humano e dote daqueles que sabem ver, traduzir e transformar em arte uma boa experiência. Não há comunicação em arte sem uma linguagem comum. O efeito surpresa depende da expectativa que a arte cria. Não foi a consciência coletiva que criou o estilo da arte, mas a maneira de transmiti-la.

Para os flamengos, a observação da vida sempre foi um exercício criterioso; não importa se a olho nu ou com lupa. Eram absolutamente visuais, videntes, visionários, mais que pensadores ou filósofos. E foi este critério que fez esta observação construir sua arte; transformar-se, deformar-se, submeter-se ao espírito do fantástico, do maravilhoso, ou do simbólico. Nada de arbitrário, nada de puramente gratuito na invenção deste “outro mundo”: inferno e paraíso se constituíam à semelhança do mundo sensível, apoiando-se somente no alicerce de suas próprias aparências. A abstração não fazia parte do menu dos mestres desta escola de arte. Pode-se dizer que nenhum flamengo dava preferência à idéia em detrimento do objeto, ou privilegiava o conceito em relação à forma ou à cor. Apoiavam-se fortemente no mundo exterior e era por meio da disposição dos elementos extraídos da natureza que seus sonhos ou pesadelos se materializavam.

O gênero fantástico encantava o povo, satisfazendo-lhes o gosto através do maravilhoso e das manifestações quiméricas. As aparições do maravilhoso davam-se, muitas vezes, sem relação com a realidade cotidiana, muito embora surgissem sempre no meio dela. É talvez isso o que há de mais inquietante neste maravilhoso medieval flamengo: justamente o fato de ninguém se interrogar sobre sua presença completamente sem nexo em pleno cotidiano.

(veja imagem 6)

Foi na Idade Média que este centro europeu se superou no exercício da temática do fantástico, retomando-o sem cessar no curso de sua evolução, reanimando formas primitivas ou as enriquecendo por meio de novos sistemas. O fantástico era um tipo de inspiração que chegava ao espírito por meio do olhar; a imaginação se alimentando da observação, se nutrindo do concreto, do palpável, do visível e depois os ultrapassando. Mecanismos artificiais da imaginação concebiam criações que fugiam ao controle da razão mais sensata, geravam figuras cujas formas escapavam à lógica, criavam faunas e floras monstruosas ou maravilhosas, anjos ou bestas, montanhas ou vegetações bizarras que se entremeavam ou se fundiam com personagens humanas e animais compondo todo paisagismo.

(veja imagem 7)

Quanto ao espírito simbólico, em todo pensamento medieval a sedução do horrível era a base do estímulo do demoníaco, que era este “não ser” que se manifestava como pura agressão, justamente por ser desfigurado. O demônio era representado como a inconsistência de uma natureza humana, pois a besta não era senão um aspecto do ser humano, uma totalidade corporal destituída de inteligência, mas absolutamente passional para a destruição. Era um tipo de agressão que predominava entre as figuras dos santos nas pinturas alemãs e flamengas. Os demônios das gravuras alemãs do século XV tinham, todos eles, ou quase todos, uma dupla face. No lugar onde, na natureza humana, estavam situados os órgãos sexuais, aparecia uma face, um rosto. Um outro aparecia, por exemplo, nas costas; um terceiro, na altura do estômago. Esta bifrontalidade ou trifrontalidade era uma maneira de representar o que não existia, uma possibilidade de exprimir o que não tivesse consistência.

(veja imagem 8)

Na básica lição de moral dos flamengos, por trás do símbolo da luxúria ou da preguiça, compreendia-se veladamente que todas as permissões para os excessos humanos eram concedidas pelo demônio àquele que estivesse disposto a lhe oferecer a alma, e procurava-se representar a tentação deste demoníaco reproduzindo o sentido do horrível indefinido, ou seja, reproduzindo algo sem natureza determinada, que podia ser chamada simplesmente de desnatureza. Os representantes do Bestiário assumem as mais diversas formas. Sempre deformados, remetem à idéia de flageladores. Alados ou híbridos, o fantástico como desfiguração vem expressar a investida impetuosa do demoníaco sobre o homem, como por exemplo, por meio do impulso (cupiditas), este poderoso ingrediente humano que existia na medida em que havia a ausência de algo de que se necessitasse, ou da volúpia, do excesso (voluptas), extensão do sensível; um desequilíbrio.

(veja imagem 9)

Para tal, o remédio adequado era a mortificação da carne. Como, na época, a imagem religiosa era a literatura do povo, os sacrifícios monásticos viraram tema dominante na arte e nas predicações medievais, naturalmente acompanhados de jejuns contínuos como contraponto, o que por vezes acelerava o sentido visionário.

Nas pinturas dos vícios, os flamengos empenharam-se em rebuscar os excessos. Esta fantasia, que tomou conta da arte da época, não deixou de ser uma pintura didática, ou seja, uma lição de persuasão, uma demonstração da cura do vício pela virtude. Para vícios leves, como a gula, luxúria, etc., não tão prejudiciais no exercício de seus antônimos, a culpa implantada pelas predicações já era uma punição suficiente, mas para vícios significativos, uma imagem escarnecedora era o melhor protesto.

(veja imagem 10)

Sempre fazendo uso do Bestiário, reformulando-o, aperfeiçoando-o, ou incrementando-o, a arte das escolas do norte europeu marcou um longo período, e de lá para frente, as imagens que eventualmente vieram a fazer sugestão ao antigo Bestiário medieval raramente se compararam a ela.

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Sandra Daige Antunes Corrêa Hitner é Historiadora e cursou Pós-Doutoramento em História da Arte na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Websites: www.periciaemobrasdearte.com.br e www.bosch-masp.com.br.
N.A.: Jean de Mandeville era inglês. Deixou seu país em 1322; percorreu a Terra Santa, o Egito, a Ásia; permaneceu muitos anos na China e voltou à Europa após 34 anos de ausência. A relação de suas viagens, redigida em latim, depois traduzida para o francês e para o inglês, forma um compêndio extravagante de confrontações com tipos de seres híbridos, humanos com dez braços, ou com o rosto virado para as costas, por exemplo.
N.A. (Bibl. Nat., Paris, 1810)