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Artigo publicado na edição nº 13 de agosto de 2006.
Instrumentos científicos como fonte para a história da ciência: uma história possível

Janaína Lacerda

Desde a reformulação da historiografia promovida por Marc Bloch e Lucien Febvre no final da década de 1920, a história se desvinculou da narrativa e do factual e passou a ser conduzida por hipóteses. Novos objetos e novas metodologias foram propostos, e as fronteiras disciplinares que separavam a disciplina das demais ciências sociais foram flexibilizadas e a história se aproximou da geografia, da economia e da psicanálise, dentre outras. Todo este movimento possibilitou a introdução de novas fontes para o historiador, e não apenas os documentos escritos. A iconografia, os números estatísticos, a pictografia, os relatos orais e os objetos do cotidiano passaram a ser tratados como documentos também. Como conseqüência deste movimento, houve uma pulverização do campo histórico, possibilitando uma história cultural, uma história das mentalidades, outra demográfica e, uma - que nos interessa particularmente – a história da cultura material.

Segundo Jean-Marie Pensez o tema cultura material já existia desde o século XIX, mas de maneira indefinida. O movimento de Annales de Bloch e Braudel foi o percursor de uma História da cultura material. Marc Bloch, por exemplo, estudioso da medievalidade francesa, indagava que, sendo a população medieval essencialmente formada por camponeses produtores, seria importante, do ponto de vista da historiografia, indagar o que eles produziam, em que quantidade, com quais utensílios e técnicas.

A história da cultura material, então, estudaria os objetos materiais em sua interação com os aspectos mais concretos da vida humana, desdobrando-se por domínios históricos que vão dos utensílios ao estudo da alimentação, do vestuário, da moradia e dos objetos de ciência. Contudo, obviamente, deve-se examinar não o objeto tomado em si mesmo, mas sim os seus usos, as suas apropriações sociais, as técnicas envolvidas em sua manipulação, a sua importância econômica e a sua necessidade social e cultural, afinal, não se pode perder de vista a noção de cultura de cultura material (BARROS, 2001, pp. 21).

Mas de que maneira isto se aplicaria aos objetos de ciência e tecnologia? Nenhum destes autores teorizou a respeito de uma cultura material das ciências.

Sabemos que o historiador da cultura material deve estar atento não ao objeto em si, no caso, o objeto de C&T, mas às diferentes técnicas e tecnologias que estão contidas naquele objeto. Deve estar atento a quem construi o objeto, para quem, com que finalidade, qual o seu uso, se o uso corresponde à finalidade, ou se ele foi utilizado para aquilo que originalmente foi construído e qual a relação deste objeto e a ciência da época. Alguns filósofos e historiadores, sobretudo anglo-saxões, já discutem este tema desde a década de 1980.

Filósofos e historiadores, quando tratam do desenvolvimento do conhecimento científico, falam apenas em termos de teoria, pois, segundo alguns autores a filosofia pós-positivista da ciência tendeu a focar os aspectos teóricos e a negligenciar a contribuição do experimento e dos instrumentos no desenvolvimento das ciências.[*1]

No início dos anos 80 esta negligência ao experimento e ao instrumento foi criticada por historiadores e filósofos da ciência, sobretudo por um grupo da Universidade de Edimburgo, na Escócia, formado por Barry Barnes e David Bloor, na parte teórica, e Steven Shapin, na historiografia, dentre outros.(GOURDAROULIS, 1994, pp.161-8)

Um destes filósofos foi Ian Hacking que criticou a idéia de que a experimentação estaria subordinada à teoria, e chamou a atenção para o estudo de uma cultura material das ciências através da qual seria possível aprofundar nosso conhecimento da prática científica. Hacking afirmava ainda que, sem sombra de dúvida, os instrumentos e as técnicas instrumentais devem ser considerados fontes valiosas para a história da ciência. (HACKING apud GOURDAROULIS, 1994)

Outro autor que também defendeu estudos de cultura material da ciência foi Peter Galison. Galison também propõe uma história da cultura material da ciência, porém, ressalta que "não se trata de uma história de uma coleção de instrumentos mortos e descartados [...] uma história da maneira como os cientistas desdobram os instrumentos [...] uma história da fabricação do instrumento ligada a uma história da tecnologia". (1988, p.197-212)

Outro nome importante desta geração foi Derek de Solla Price (1980 apud TURNER, 1993) que ataca firmemente o que ele chama de "ingênua insistência de que os instrumentos científicos são meras ferramentas de medição", ingênua, pois, argumenta Price, este é um dos muitos mitos que foram propagados a partir da segunda metade do século XIX acerca da natureza da ciência, e se os instrumentos realmente desempenharam um papel limitado no desenvolvimento científico, foi porque foram desenvolvidos ao longo da história e porque havia construtores especializados para fazê-los.

Uma das mais importantes consequências da crítica da dominação da experimentação pela teoria foi o entendimento que a ligação entre teoria e experimento é condicionada por práticas técnicas e sociais. A cultura, prática de laboratório, e a cultura, da vida de laboratório, tornaram-se essenciais para a produção de conhecimento.

Na realidade, muito antes do grupo da Universidade de Edimburgo elaborar uma crítica à negligência por parte dos filósofos e historiadores aos objetos da ciência e à experimentação, e proporem uma história social da prática científica, outros se debruçavam sobre o tema. Maurice Daumas, por exemplo, estudou os instrumentos científicos e seus construtores nos séculos XVII e XVIII ainda na década de 1950. Henri Michel e seu Scientific Instruments in Art and history data de 1967 e Gerard Turner, desde a década de 1960, dedicava-se a histórias dos instrumentos.

Porém, enquanto Daumas considerava a história dos instrumentos científicos como uma área distinta da história das ciências, e Michel e seu “museu imaginário”, como ele próprio define, não se preocupa com isto se interessando em olhar o instrumento como obra de arte, Gerard Turner (1990) acreditava que historiadores da ciência poderia e deveriam se dedicar ao estudo dos instrumentos e da prática científica.

E foi ao longo das décadas de 80 e 90 que um número cada vez maior de historiadores começou a atender o apelo de Turner. Um deles foi o historiador James (Jim) Bennett, pesquisador e diretor do Museu de História da Ciência de Oxford, que estudou instrumentos matemáticos dos séculos XV ao XVII, propõe em seu artigo The english quadrant in Europe, de 1992, por meio da reconstrução dos contextos histórico, cultural, intelectual e econômico, mostrar de que maneira um instrumento, um quadrante, naquele determinado momento histórico, dentro daquelas circunstâncias, ajudou a criar uma comunidade, que ele não chama de astronômica ou científica, mas de working community, e criar um consenso da prática astronômica na Europa no século XVIII.

Albert Van Helden, professor de História da Universidade de Rice, cujo foco das pesquisas é Galileu Galilei, discute o conceito de instrumento científico moderno em seus trabalhos. Thomas Hankins, do departamento de História de Harvard, direciona seus trabalhos para a análise dos objetos anteriores a denominação instrumentos, dentre eles a lanterna mágica e o relógio de sol (HANKINS e SILVERMAN, 1995). Juntos, Helden e Hankins editaram um número especial do periódico Osiris no ano de 1994, dedicado à história das ciências e à historiografia dos instrumentos, reunindo alguns dos principais estudiosos do assunto, dentre eles Jan Golinski, professor da Universidade de New Hampshire, e estudioso da química e seus instrumentos na Inglaterra do século XVIII, e Deborah Jean Warner, historiadora do Instituto Smithsoniam de Chicago que mostra, através dos instrumentos de magnetismo, como duas platéias distintas, filósofos naturais e matemáticos, usam de fato os mesmos instrumentos para propósitos semelhantes.

Também faz parte deste volume outro nome importante nesta recente historiografia dos objetos de ciência: Simon Schaffer. Schaffer, em 1989, escreveu junto com Steven Shapin, outro integrante da geração de 80, o livro Leviathan and the air pump: Boyle, Hobbes and the experimental life, no qual, a partir do debate entre Robert Boyle e Thomas Hobbes a respeito da bomba de ar, os autores propõem que as "soluções para problemas de conhecimento são soluções para problemas de ordem social" e a partir da leitura do experimentalismo de Boyle como programa social e o Leviathan de Hobbes como programa epistemológico convertendo ambos em programas simultaneamente políticos, sociais e científicos. Sem deixar de prestar atenção aos instrumentos sempre como parte constitutiva da construção do conhecimento.[*2]

No Brasil, desde meados da década de 1980, surgiram trabalhos que centravam a análise na temática das exposições nacionais e universais do século XIX, e não especificamente na temática dos instrumentos e objetos de ciência. A exceção talvez seja o texto de Almir Pitta de 1986, que trata das oficinas de José Maria dos Reis e José Hermida Pazos, e analisa a importância dos instrumentos científicos construídos para uso do Imperial Observatório do Rio de Janeiro, bem como a apresentação dos mesmos em exposições nacionais e internacionais e um panorama da trajetória dos responsáveis pela oficina (FREITAS FILHO, 1986, apud HEIZER, pp.15). A pesquisadora Alda Heizer desenvolve suas pesquisas na análise do lugar dos objetos de ciência do Brasil e da América Latina nas exposições universais, particularmente na Exposição Universal de 1889, em Paris (2005, pp.12).

Segundo Heizer, os instrumentos e máquinas expostos no pavilhão brasileiro nestas exposições ao retornarem para seus locais de origem não originavam coleções de museus -caso, por exemplo, do Science Museum de Londres, e sim, ficavam sob a guarda de diferentes instituições e sem o tratamento adequado, caso este que se repetia na América Latina como um todo (idem). Então, para se iniciar qualquer tipo de estudo sobre instrumentos científicos no Brasil deve-se recorrer à documentação sobre as exposições da segunda metade do século XIX. Em um dos capítulos de sua tese de doutorado, a pesquisadora fez a análise de um instrumento, o Alt-Azimut, construído pelo astrônomo e diretor do Observatório Nacional Emmanuel Liais, escolhido para ser exposto na exposição de 1989. Partindo da leitura proposta por Van Helden e Hankins de que um instrumento é definido a partir de duas coisas (para que ele foi construído e o seu uso), no caso do instrumento construído por Liais e exposto em 89, o objetivo era o de evidenciar um discurso, fornecer prova material de que o Império do Brasil era uma nação moderna e civilizada, e seu passado colonial e atrasado estava definitivamente enterrado. Através dos objetos, dos instrumentos científicos, o Brasil confirmava seu lugar junto aos países civilizados (HEIZER, introdução e pp.158-9).

Todos estes trabalhos[*3] preocupam-se em discutir o papel central dos instrumentos na construção do conhecimento científico e para tanto partem destes objetos como fonte documental principal em seus trabalhos, seja dentro de aspectos da cultura material da ciência, das interações entre a estrutura dos fabricantes de instrumentos do século XIX e a história econômica, da análise dos gabinetes de curiosidades do século XVIII, dos manuais dos instrumentos ou da análise dos usos destes instrumentos nos diferentes locais e para diferentes audiências.

Para concluir, é fato que alguns instrumentos já estão intrinsecamente ligados ao nosso entendimento dos principais tópicos da história da ciência, como a importância do telescópio para a astronomia do século XVII, o espectroscópio para a astrofísica do século XIX, o acelerador de partícula e a física do século XX. Porém, o estudo dos objetos de ciência pelo historiador, sobretudo no Brasil, ainda encontra certa resistência, uma vez que para estudá-los o historiador precisaria se voltar para um outro local de pesquisa, além dos arquivos e bibliotecas - o museu. Isto porque ao estudar os museus e suas coleções o pesquisador passa a ter acesso aos diferentes contextos das práticas científicas, uma vez que os museus refletem a ordem social e intelectual de seu tempo (BENNETT, 2005, pp. 603). Estudar a “vida” destes objetos torna-se então uma poderosa ferramenta para o entendimento de uma série de questões, como por exemplo: entender as suposições, ambições e crenças que um determinado museu personifica e de que maneira as mesmas mudam no decorrer do tempo. Ou utilizando as palavras de Simon Schaffer: para se entender o significado da ciência em um determinado lugar e tempo, basta entender as diferentes imagens adquiridas pela ciência, construídas ao longo do tempo, bem como as funções destas imagens e os locais onde foram forjadas, e um destes locais é, sem dúvida, o museu de ciência (SCHAFFER, 1997, pp. 28).

Bibliografia

BARROS, José D´Assunção. O campo histórico. As especialidades e abordagens da História. Rio de Janeiro: A Cela, 2002.
BENNETT J.A. “Museums and the History of Science: Practitioner’s Postscript”. ISIS. 2005.
__________ “The English Quadrant in Europe: Instruments and the Growth of Consensus in Practical Astronomy”. Journal of History of Astronomy. Vol. 23, Part 1, n. 71, Feb., 1992.
GOURDAROULIS, Yorgos. “Can the History of instrumentation tell us anything about Scienctific Practice”. In Gavroglu, Kostas et al. (eds.) Trends in the Historiography of Science. Netherlands: Kluwer Academic publishers, 1994.
HANKINS, T. L. e SILVERMAN, J. Instruments and imagination. Princeton: Princeton University Press, 1995.
HEIZER, Alda L. Observar o Céu e medir a Terra: instrumentos científicos e a participação do Império do Brasil na Exposição de Paris de 1889. Campinas, SP, 2005. Tese (Doutorado) - Universidade Estudual de Campinas. Instituto de Geociências. Pós-graduação em ensino de História e Ciências da Terra.
SCHAFFER, Simon. Leviathan and the air-pump: Hobbes, Boyle and the experimental life. New Jersey: Princeton, University Press, 1985.
_____________. What is Science. In Science in the twentieth century. Amsterdam: Harwood Academic Publ.,1997.
TURNER, Gerard L.
TURNER, Anthony J. Interpreting the history of scientific instruments. In ANDERSON, R.G.W, BENNETT, J.A, RYAN, W.F(edit.) Making Instruments Count. Essays on Historical Scientific Instruments preseted to Gerard L. Turner. Vermont:Variorum, 1993.
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Mestre em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro-UERJ, pesquisadora do grupo “Bens culturais e patrimônio” do Museu de Astronomia e Ciências Afins - MAST- Rio de Janeiro, e pesquisadora-bolsista da Coordenação de Museologia do MAST (www.mast.br). Contato: janaína@mast.br.
Na década de 1970, surgiu na Escócia um grupo auto-intitulado Social Studies of Science, cujo objetivo era a crítica ä visão internalista da ciência que se ocupava apenas dos conteúdos cognitivos da própria ciência, deixando os aspectos sociais fora da análise. Simon Shapin e seu grupo, na década de 1980, propunham justamente uma terceira via: reunir os dois aspectos, fatores internos e externos, em uma mesma explicação. Sobre este assunto existe vasta bibliografia. Um texto introdutório bastante interessante é do próprio Shapin “Discipline and bounding: the history and sociology of science as seen through the externalism-internalism debate”. History of Science, vol. 30, 1992, pp. 334-69.
Recomendo a leitura do artigo de Ricardo Roque publicado na Revista Manguinhos, em 2002. ROQUE, Ricardo. “A revolução científica: um olhar sociológico sobre a história das ciências”. Revista Manguinhos. Vol. 9, n. 3, 2002.
Estes são apenas alguns dos autores de uma lista extensa que inclui: Robert Bud, Jonh Heilbron, Penelope Gouk, Stephen Jonhson, Christine Blondel, William Hackman, dentre outros.