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Artigo publicado na edição nº 16 de novembro de 2006.
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo: pioneiro e centenário

Elizabeth Ribeiro Azevedo

O novo século trouxe para São Paulo a certeza de mudanças. Afinal, já há algum tempo o estado paulista vinha enriquecendo com o café e sua capital refletia esse dinamismo por meio de uma efervescência econômica, social e cultural inédita. Depois de séculos de marasmo e pasmaceira, a cidade deixava de ser uma vila perdida no sertão brasileiro para tornar-se um pólo cosmopolita, repleto de sotaques vindos até dos mais distantes países do mundo. A malha urbana ultrapassava seus antigos limites, novos bairros surgiam. Das ruas do centro partia o novo transporte coletivo: o bonde. Com veículos da São Paulo Light and Power atingiam-se os lugares mais distantes. Pelos trilhos, trabalhadores chegavam às fábricas ou podiam ir, à noite, assistir aos espetáculos nos teatros do centro da cidade. Até mesmo nos anúncios das peças teatrais sempre se mencionava que bondes de todas as linhas estariam funcionando até o término da sessão.

A vibração que emanava de tanta gente cheia de energia, disposta a transformar seu destino, impregnava tudo. Abria-se o mundo ao empreendedorismo dos mais arrojados. Todo tipo de iniciativa comercial, industrial ou cultural tinha seu lugar, desde as mais populares até aquelas direcionadas a uma elite segura de si e desejosa de deixar sua marca na paisagem da cidade.

Do final do século XIX até os anos 30, foi enorme, por exemplo, o número de teatros construídos ou adaptados que surgiram em São Paulo. Onde, até 1900, havia dois edifícios dedicados às artes cênicas, sucederam-se dezenas de prédios, sobretudo quando o cinema veio participar dos espetáculos oferecidos ao público sempre ávido por distração (AZEVEDO, s/d, p. 522-83). Prova disso foi o interesse despertado pela “praça” de São Paulo em grandes empresários do Rio de Janeiro do setor de diversões que investiram na cidade, abrindo e mantendo diversos estabelecimentos. O mais importante dentre eles foi Paschoal Segreto, conhecido como “Ministro das Diversões” e que, entre 1901 e 1920 (ano de sua morte), arrendou diversas casas de diversão em São Paulo, apresentando, sobretudo, mas não só, o chamado teatro ligeiro (AZEVEDO, 2006, p. 218-9).

Mas não eram apenas teatros populares, acanhados e baratos que despontavam pela cidade. Eram também grandes empreendimentos, muitas vezes bancados por membros das mais tradicionais famílias paulistas. Assim, o Teatro Santana, melhor teatro da cidade antes da inauguração do Teatro Municipal, foi construído pelo Conde Álvares Penteado; o teatro São José (o primeiro desse nome) pertencia aos Prado; o Boa Vista, construído em 1916, pertencia ao jornal O Estado de São Paulo, da família Mesquita.

Entretanto, o movimento teatral de São Paulo, embora dinâmico como assinalado acima, não era ainda auto-suficiente. As atrações fossem de teatro de variedades, de teatro dramático ou de teatro lírico, eram, praticamente todas, vindas de fora da cidade, tanto do Rio de Janeiro (a capital federal), quanto da Europa. A partir dos anos de 1890, começaram a chegar a São Paulo artistas ilustres da cena nacional e internacional como as atrizes Eleona Duse e Sarah Bernhardt ou os atores Gustavo Modena e Ernesto Rossi. As temporadas desses grandes nomes contaminavam os espectadores mais entusiastas que passaram a organizar sociedades amadoras recreativo-dramáticas com o intuito de tentar reproduzir as emoções do palco.

Conta-se às dezenas o número desses agrupamentos. Os mais famosos foram os chamados Filodramáticos, ligados à comunidade de imigrantes italianos. Mas existiam muitos outros, de origens nacionais diferentes (portugueses, espanhóis) ou formados a partir de associações profissionais. O grupo com atividade mais constante e duradoura foi o Grêmio Dramático do Real Club Gymnastico Português, que chegou a ter seu próprio teatro, ensaiadores fixos e oferecer aulas de interpretação para seus integrantes, organizadas pelo ator Capitão Antonio Corrêa Vasques. As primeiras apresentações do Club Gymnastico aconteceram em 1883. Vinte anos mais tarde ainda era possível encontrar referências a ele.

Foi nesse panorama dinâmico de efervescência cultural, que se alterava rapidamente, que surgiu a iniciativa de criação de um conservatório para o ensino de música e de arte dramática. Como em muitos outros aspectos das artes no começo do século XX, os brasileiros basearam-se no exemplo de uma instituição francesa, considerada como a mais refinada e moderna da época: o Conservatoire de Paris.[*1] Aliás, o teatro francês sempre fora o grande modelo para todo o mundo desde a época do Classicismo, passando pelo Romantismo, pelo teatro de revista até chegar ao século XX.

A iniciativa para a criação do Conservatório partiu de dois entusiastas empenhados em promover o ensino e aperfeiçoamento dos futuros artistas nacionais. O primeiro deles dedicava-se à área musical, tendo composto concertos e óperas. Seu nome era João Gomes de Araújo.[*2] O segundo, Pedro Augusto Gomes Cardim, foi homem de teatro e dedicou-se até o final da vida ao Conservatório.

Pedro Augusto, nascido em Porto Alegre em 1864, cresceu em meio às discussões musicais e teatrais trazidas para casa por seu pai, o músico e dramaturgo português, João Pedro Gomes Cardim. Contudo, sua formação é de advogado, formado pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em São Paulo. Como jornalista escreveu n’A Província de São Paulo e colaborou com o Correio Paulistano, o Comércio de São Paulo, A Gazeta, além de ter se tornado redator-chefe do Diário de Notícias. No setor público foi vice-intendente de Obras Públicas e vereador. Como político trabalhou pela construção do Teatro Municipal de São Paulo, em 1911; pela fundação da Academia Paulista de Letras, em 1909; e da Academia de Belas Artes de São Paulo, em 1925.

A ligação de Pedro Augusto com o teatro, no entanto, não era meramente empresarial. Ele foi também autor dramático, tendo escrito operetas, vaudevilles, sainetes, monólogos e comédias. Além disso, organizou e dirigiu, a partir de 1917, uma das mais importantes companhias teatrais, atuante no início do século XX: A Companhia Dramática de São Paulo. Dessa companhia fazia parte a atriz Itália Fausta, conhecida como a maior atriz trágica do teatro brasileiro.

Não surpreende, portanto, que esse homem tão dinâmico tenha se empenhado com tanta energia na criação e direção de sua obra mais dileta: o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Desde o primeiro projeto para o Teatro Municipal, Gomes Cardim já previa um espaço dedicado ao ensino das artes que seriam apresentadas no dito teatro: a música, o teatro e a combinação de ambos: a ópera. Dizia ele: “em São Paulo, capital artística, não podia continuar faltando o estabelecimento de arte que servisse, a um só tempo, ao professorado especializado, ao virtuosismo e, com igual importância, à arte dramática” (SALAMA, 1987, p. 71).

O Conservatório Dramático e Musical de São Paulo (CDMSP) foi fundado em 15 de fevereiro de 1906. As primeiras reuniões foram realizadas no Clube Internacional, e a primeira diretoria eleita era composta por um presidente – Antonio de Lacerda Franco[*3] -, um tesoureiro – Carlos de Campos[*4] – e um diretor-secretário – o próprio Gomes Cardim.

Para abrigar as atividades do CDMSP foi alugada a antiga e espaçosa casa da Marquesa de Santos na rua Brigadeiro Tobias, esquina com a rua Santa Efigênia.[*5] A cerimônia de inauguração deu-se no dia 12 de março de 1906 e as atividades da escola iniciaram-se em 25 de abril do mesmo ano. Inicialmente, eram 134 alunos pagantes e outros 48 que cursariam a escola gratuitamente. 1909 é a data da mudança de sede do CDMSP. Muito embora se mantendo com recursos próprios, a diretoria do estabelecimento conseguiu, junto ao governo, uma verba de 100 contos de réis como parte do valor necessário à aquisição de uma sede própria que chegava a 160 contos. O edifício escolhido situava-se na Avenida São João e fora construído pelo industrial Frederico Joaquim, depois vendido a Luis Landró, que o repassou ao Conservatório. Até então era conhecido como Salão Steinway, um local de tradição na cidade para apresentação de concertos de música erudita. Esse é, até hoje, o endereço do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo.

O curso de Arte Dramática da escola procurava seguir o modelo de seus similares europeus. Sua duração, segundo matéria publicada no jornal Comércio de São Paulo, de 06 de abril de 1906, era de 3 anos, ministrado das 18h às 21h, tendo como disciplinas português, francês, italiano, inglês, geografia, história, corografia brasileira,[*6] aritmética, literatura geral, poética, psicologia, estática, história do teatro, dicção, recitação, expressão fisionômica e pelo gesto, caracterização, vestuário, representação coletiva, esgrima e ginástica de salão. As aulas de português, línguas estrangeiras e aritmética eram ministradas também aos alunos de música, logo no início do curso. Nos anos seguintes, agrupavam-se matérias mais específicas. Nota-se que o curso era pensado especialmente para atores, sem menção à formação de dramaturgos ou outros profissionais da área teatral.

Os primeiros professores de Arte Dramática no Conservatório foram Pedro Augusto Gomes Cardim, Wenceslau de Queiroz (literatura e estética), Luiz Pinheiro da Cunha, Hipólito da Silva (dicção), Augusto César Barjona (História do Teatro) e Felipe Lorenzi (chegado em 1908)[*7].

No período de 1910 a 1932, a escola formou 1.411 alunos no total, sendo 18 em Arte Dramática. A discrepância pode dar uma falsa idéia sobre a escola. Acontece que cerca de 80% dos estudantes formados pela instituição eram alunos de piano (o gosto pelo instrumento era uma verdadeira mania no início do século, uma “pianolatria” como a chamou Mário de Andrade. Mesmo os demais instrumentos tinham, por vezes, apenas um ou dois alunos). Nos anos 30, houve um declínio acentuado de matriculados, mas esta foi uma tendência geral da escola que chegará aos anos 40 em crise. De fato, se em 1921 havia, no total, 6.921 alunos, em 1932 eles eram 1.311, e o relatório de 1943 aponta apenas 377 matriculados.

Em Arte Dramática, quando da mudança de sede em 1909, o Conservatório tinha 38 alunos, sendo 8 pagantes e 30 gratuitos. Os dados anotados a partir das fontes disponíveis indicam uma atividade constante e intensa deste curso. Os números que puderam ser apurados de alunos inscritos foram: em 1926, 55; em 1929, 81. Porém, o relatório de 1938 não menciona o curso de Arte Dramática, pois, muito provavelmente, ele fora suspenso. É o que se infere também a partir do relatório de 1942-3, quando ocorreu uma intervenção do governo federal na administração da escola motivada pela alegação de supostas irregularidades[*8].

Como interventor foi designado Carlos Augusto Gomes Cardim, irmão de Pedro Augusto, o qual havia sido diretor do Conservatório de 1906 a 1913 e de 1923 até 1931.[*9] É de então a decisão de que a Arte Dramática deveria voltar não só às salas de aula como também ao nome da própria instituição. Aliás, na primeira alteração implementada pela nova diretoria lê-se:

É justificada pela necessidade de se recolocar o conservatório na sua finalidade de agente propulsor da arte musical e da arte dramática, reposto, assim, no objetivo contido no próprio nome da fundação “Conservatório Dramático e Musical de São Paulo”. Assim, às letras “a” e “c” do artigo 2 acrescente-se “e da arte dramática”.

E as montagens voltaram a ocorrer. As primeiras encenações registradas foram Rosas de todo ano, de Julio Dantas; Rosalina, de Max Murey; O nefellibata, de Carlos Augusto Gomes Cardim; O divórcio de Mary e Eis o caso, de Dante Constantini. Curioso anotar que nesse mesmo ano de 1943, em agosto, o GUT[*10] se apresentou no Conservatório com O Irmão das Almas, de Martins Pena, com a participação de Cacilda Becker, entre os atores.

Não se pôde precisar com certeza o ano no qual o curso de Arte Dramática torna a desaparecer. Ainda em 1946 era possível encontrar referências às encenações dos alunos do Conservatório.

De todo modo, baseando-se nos fragmentos disponíveis dessa longa história, é possível dizer que as atividades ligadas ao ensino da arte dramática no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo efetivamente existiram e funcionaram, ainda que com intensidades diversas ao longo dos anos. Houve uma busca constante pelo curso, o que demonstra também o interesse da população paulistana pela arte dramática e o dinamismo desse setor na vida da cidade.

Nos estudos da história do teatro brasileiro considera-se geralmente a escola fundada por Coelho Neto, no Rio de Janeiro, em 1911 - a Escola Dramática Municipal (hoje, Escola de Teatro Martins Pena), como a primeira criada no país. No entanto, tal afirmação baseia-se na falta de informações sobre a iniciativa levada a cabo em São Paulo em 1906; logo, cinco anos antes.

Certamente, a escola passou por altos e baixos em seus muitos anos de existência, deixando, inclusive, de oferecer aulas de teatro nos dias atuais. Contudo, isso não anula o fato de que o curso de Arte Dramática foi criado e instalado em 1906 e que funcionou, pelo menos, até os anos 40.

Hoje, o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo dedica-se apenas ao ensino de música, mas a ele é devido o título de primeira escola de teatro do Brasil e da América Latina.

Bibliografia

ANDRADE, M. Evocação de Gomes Cardim. S.n.t., 1942.
ARAÚJO, E.C.G. João Gomes de Araújo - sua vida, suas obras e as comemorações de seu primeiro centenário de nascimento. São Paulo: S.ed., 1972.
AZEVEDO, E. R. “O teatro em São Paulo”. In: PORTA, P. (org.) História de São Paulo. vol. 1. São Paulo: Paz e Terra.
_______________. “Paschoal Segreto em São Paulo”. In: Congresso de Pesquisa e pós-graduação em artes cênicas. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006.
CARVALHO, E. História e formação do ator. São Paulo: Ática, 1989.
Coleção de Estatutos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Anos 1916, 1927, 1936, 1938.
Coleção de Relatórios do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo. Anos 1909, 1926, 1929, 1931, 1932, 1933, 1935, 1936, 1937, 1938, 1942, 1943.
FREITAS, P.L. Tornar-se ator: uma análise do ensino de interpretação na Brasil. Campinas: Ed. Unicamp, 1998.
PORTA, P. (org.) A história da cidade de São Paulo: 1554-1954. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
SALAMA, Y. G. C. Atividades artísticas e culturais da família Gomes Cardim a partir do século XIX. São Paulo: Dissertação de Mestrado, Escola de Comunicações e Artes da USP, 1987.
SOUSA, G. O teatro no Brasil. Rio de Janeiro: MEC, 1960.
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Formada em História pela Universidade de São Paulo; Mestrado e Doutorado em História e Teoria do Teatro na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). É professora de Teatro Brasileiro na ECA/USP e desenvolve trabalho de pesquisa sobre o teatro paulista no início do século XX. Contato: beth-azevedo@uol.com.br
Na França, o Conservatório Nacional Superior de Arte Dramática (CNSAD) foi fundado em 1795 e fazia parte do Conservatório Nacional de Música e de Declamação, antiga Escola Real de Canto e de Declamação, criada em 1784. A declamação era vista então apenas como uma parte da formação musical. É apenas em 1806 que passa, efetivamente, ao ensino da arte dramática, e a declamação acaba sendo posta de lado. Em 1946, Música e Arte Dramática foram separadas em dois conservatórios distintos. O CNSAD existe até hoje.
João Gomes de Araújo nasceu em Pindamonhangaba em 1846 e faleceu em São Paulo em 1943.
Antonio Lacerda Franco (1853-1936) foi jornalista, administrador e deputado por São Paulo.
Carlos de Campos (1866-1927) foi advogado, compositor, fundador e membro da Academia Paulista de Letras e político. Foi governador do estado de São Paulo entre 1924 e 1927.
O edifício tinha pertencido ao Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar e à Marquesa de Santos, sua esposa. Depois que o Conservatório deixou o prédio para instalar-se em sua nova sede ele foi demolido.
Corografia: estudo ou descrição geográfica de um país, região, província ou município.
Com a morte de Wenceslau de Queiroz, a disciplina foi assumida por Mário de Andrade, em 1922.
A escola esteve sob intervenção federal até a década de 70, segundo informações da atual diretoria do CDMSP.
Pedro Augusto afastou-se da direção durante os anos em que organizou a Companhia Dramática Nacional, ao lado de Itália Fausta. Outros diretores foram: Luiz Pinheiro da Cunha (1913 a 1922), Samuel Arcanjo dos Santos (1931 a 1937) e Francisco Casaboni (1937 a 1942).
O GUT – Grupo Universitário de Teatro - foi um grupo amador, organizado em 1943 com alunos da Universidade de São Paulo, tendo como diretor aquele que viria a ser um dos grandes críticos da história do teatro brasileiro, Décio de Almeida Prado.