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Artigo publicado na edição nº 19 de fevereiro de 2007.
A influência militar na Primeira República

Daniela Meira Cotrim

O militarismo teve um papel relevante na política brasileira durante a Primeira República. A influência militar no governo republicano tem fundamentação na idéia de que o Exército, como instituição, apresenta um caráter excepcional. Essa idéia de excepcionalidade serviu como argumento para legitimar algumas revoltas tenentistas contra o poder constituído. Um exemplo é a Coluna Prestes. Há, sobretudo durante os anos 1920, uma associação entre Exército e sociedade brasileira, relação que nasce nas últimas décadas do século XIX, se fortalece com a Proclamação da República e tem uma grande expressão política com o tenentismo.

O tenentismo pode ser dividido em várias fases: de 1922 a 1930 - período no qual um jovem grupo militar de oposição armada tentou depor três presidentes e demais aliados; outubro de 1930 - alguns oficiais rebeldes formaram uma dissidência político-militar que derrubou o governo de Washington Luís empossando Getúlio Vargas; no período do governo provisório, os tenentes ocuparam cargos de poder; após 1932 - o tenentismo perdeu sua identidade política em decorrência da fragmentação do grupo.

A oposição dos oficiais militares ao governo no período de 1922 a 1930 se sustentava em reivindicações como o voto secreto, a justiça eleitoral, a não reeleição, etc. Essas requisições eram de caráter anti-oligárquico e se baseavam na idéia de respeito à Constituição. A Coluna Prestes foi um dos episódios mais importantes do movimento tenentista. Ocorreu entre julho de 1924 e março de 1927. A marcha que percorreu vinte e cinco mil quilômetros por quatorze estados brasileiros, reuniu um grupo de oficiais do Exército e da Marinha de Guerra. O objetivo desses militares era derrubar o presidente da República e instituir diversas mudanças na organização política brasileira.

Em 1930, houve uma divisão no movimento: Luiz Carlos Prestes procurava uma aproximação com o comunismo revolucionário, mas a maioria da dissidência era oligárquica e civil. Portanto, formaram outro grupo denominado Aliança Liberal. Esse último, de cunho reformista, propunha a reforma agrária local, a modernização do país, investimento em infra-estrutura, a industrialização, dentre outras mudanças. Há historiadores que atribuem a essa ala do movimento tenentista elementos de ordem centralizadora, influência do autoritarismo e uma base elitista. Getúlio Vargas instituiu muitas das reivindicações, cooptando os tenentes para seu governo. Não houve especificidade no movimento, principalmente após 1933, pois ocorreu a separação do grupo e a adesão, por parte de alguns oficiais, a outras correntes ideológicas. A Aliança Nacional Libertadora propunha em 1935 um governo nacionalista, direcionado ao povo e com predominância de idéias revolucionárias.

Luiz Carlos Prestes foi comandante da Coluna Prestes e presidente da Aliança Nacional Libertadora. Como membro do PCB (Partido Comunista Brasileiro) foi tido como símbolo do reencontro tenentista. Durante a Coluna, Prestes percebeu a fragilidade de suas reivindicações, motivadas por reformas institucionais que, segundo ele, seriam conquistadas com a força das armas. Em 1935, Prestes já se encontrava na liderança do PCB. Esse período marca o fim das rebeliões dos oficiais radicais. A tentativa de realizar um golpe revolucionário, nessas circunstâncias, revelou-se ineficaz em decorrência das ações isoladas nas unidades militares. É por esse motivo que a Coluna Prestes sintetiza o fenômeno militar das rebeliões na Primeira República.

O tenentismo teve suas origens calcadas na crise do sistema oligárquico de 1910 a 1930. Os militares e funcionários públicos eram uma fração institucionalmente organizada da sociedade brasileira, de característica agrária e exportadora, que se apresentava em expansão. A sustentação social das oligarquias encontrava-se entre a população rural. A política e o sistema eleitoral, fundamentados no mandonismo local, estabeleciam uma rede de alianças que se assentava na patronagem e no clientelismo.[*1] As populações das grandes cidades estavam excluídas desse sistema.

Entre 1921 e 1922, houve uma disputa eleitoral para o cargo que substituiria o presidente Epitácio Pessoa. Concorriam ao cargo o oficial Artur Bernardes e Nilo Peçanha, candidato da oposição. Os oposicionistas da Reação Republicana objetivavam derrubar a hegemonia de São Paulo, Minas Gerais e estados aliados. Esse grupo falsificou uma série de documentos que revelavam a contrariedade de Bernardes frente a alguns chefes militares. Artur Bernardes venceu a eleição para a presidência da República, sendo considerado inimigo do Exército. Entre a eleição e a posse ocorreu uma tentativa de golpe em 5 de julho de 1922. Houve pouca adesão de partidários da Reação Republicana. Esse evento nos serve como ilustração da participação política do Exército e da Marinha nas revoltas tenentistas, pelo menos até 1927. Vejamos a análise de José Drummond sobre essas revoltas:

Incluíam sempre um elemento fundamental para a compreensão do tenentismo: a defesa de um papel político especial para o Exército brasileiro, como árbitro e salvaguarda última do regime republicano e da própria sociedade.[*2]

Esse ideário não se explica apenas pela exploração das origens sociais dos militares e da crise política civil. Além da ênfase no caráter corporativo do Exército, os militares rebeldes tentavam legitimar as insurreições de cunho arbitrário contra os inimigos da classe militar. O papel especial do Exército se fundamenta na noção de excepcionalidade militar originada nos tempos dos republicanos radicais - os florianistas -, que, do mesmo modo, designavam ao Exército a implantação da República.

O florianismo surgiu nos primeiros anos da República brasileira e, enquanto corrente ideológica, propunha uma república ditatorial, social e virtuosa, em oposição à representação política defendida pela elite bacharelesca. Os partidários dessa idéia se aproximavam do jacobinismo, que teve suas origens no governo de Floriano Peixoto. Sua influência permaneceu na política republicana até meados de 1897, período no qual as formulações da vertente ligada a Benjamin Constant - o positivismo ortodoxo-, puderam ser efetivamente empregadas na prática política dos denominados florianistas.[*3]

Para alguns historiadores, as origens da excepcionalidade do Exército, enquanto instituição atuante na vida política brasileira, firmam-se no governo de Floriano e, apesar das contradições do início do regime e decorrentes divisões entre militares, há ressonância do positivismo no movimento tenentista de 1922. Entretanto, é preciso considerar que, para outros historiadores, os ideais dos positivistas ortodoxos ou dissidências se encontravam no cenário político republicano muito antes da presidência de Floriano Peixoto.

Alguns pesquisadores sustentam que a excepcionalidade do Exército, como instituição, justificou a sua atuação no golpe de 1889 ou Proclamação da República.[*4] Essa excepcionalidade difere de forma significativa dos eventos ocorridos a partir das revoltas tenentistas dos anos de 1920. A geração de 1889 chegou ao fim nesse período, inclusive muitos dos jovens oficiais revolucionários do fim do Império deixaram a política, afastando-se do militarismo. Os radicais da década de 1920 eram outros tenentes.

Os positivistas ortodoxos eram filiados à Igreja Positivista. Procuravam descobrir a lei que rege o progresso e determina a evolução de uma determinada sociedade, baseando-se nos preceitos de Augusto Comte, estabelecendo três estágios evolutivos: o teológico, o metafísico e o positivo.[*5] A mocidade militar, de caráter cientificista e não propriamente positivista, entendia que a República era um estágio da evolução que a sociedade brasileira deveria alcançar. O golpe de 1889 foi promovido por esse grupo. No governo de Floriano esses ideais se enfraqueceram, apesar de algumas resoluções de cunho organizacional terem sido aplicadas.

Para os tenentes, as insurreições de 1922 se direcionaram, contrariamente, aos políticos que corrompiam as instituições republicanas e insultavam os militares. Essas afirmações provinham de rebeldes isolados, os quais enfrentavam o desafio de derrubar o poder político civil e a oposição de outros militares que integravam o Exército. Houve duas reações entre os militares: oposição ou indiferença. Os tenentes rebelados acreditavam que o Exército tinha uma missão salvadora. Essa idéia era arbitral e, portanto, não conseguiu mobilizar a corporação e não resolveu as contradições existentes no interior da classe.[*6] Na verdade, essa situação agravou ainda mais a separação entre os rebeldes e os demais membros do Exército.

Essa visão arbitrária dos tenentes explica, em certa medida, a excepcionalidade institucional do Exército. As intervenções dos rebeldes vinham de dentro para fora da instituição. A ação rebelde dos oficiais era violenta, possuía adesão de políticos civis, que tinham seus interesses vinculados aos militares. O contato direto com a tropa e a hierarquia militar proporcionou aos tenentes sua proximidade com as armas. Para eles, era necessário eliminar do Exército a corrupção política que o afetava, através de revoltas. Esses levantes dariam condições para que as reformas institucionais fossem efetivadas. A relação profissional dos tenentes com a corporação militar revela sua ligação valorativa com a classe. Esse caráter corporativo das Forças Armadas remete-se à profissionalização desse segmento social, aos currículos das escolas militares, à carreira, às doutrinas, etc., elementos que contribuíram para a formação de um militarismo entre os tenentes,[*7] também presente na Coluna Prestes.[*8]

Os antecedentes do tenentismo estavam presentes na Escola Militar do Realengo, instituição que formou a maioria dos oficiais rebeldes. Foi criada em 1913, numa localidade rural, próxima à capital da República. O currículo militar se fundamentava na defesa do profissionalismo apolítico, motivada pelas insurreições de cadetes de 1895 e 1904. Uma contradição pode ser observada: os oficiais “apolíticos” dessa Escola se declararam “conscientemente rebelados” na tentativa de golpe militar em 5 de julho de 1922. As concepções políticas dos oficiais militares estavam acima de seus superiores e colocavam em xeque a profissão, as questões pessoais e seu vínculo com a instituição do Exército. Os civis atribuíam às rebeliões a “lentidão nas promoções” militares.

O tenentismo apresenta uma singularidade que o coloca em nível diferenciado de outras intervenções no Brasil. Os militares envolvidos no movimento coletivo e duradouro eram jovens oficiais que, através da violência, procuravam transformar a política nacional enfrentando a cúpula militar. Essas rebeliões partiam da premissa de uma interpretação ortodoxa da excepcionalidade institucional do Exército, argumento que o investiu de legitimidade. O grande exemplo da presença significativa do militarismo entre os tenentes é a Coluna Prestes.

A Coluna Prestes conquistou sucesso militar e fracassou no campo político. A marcha teve bons êxitos, principalmente pela mobilização dos oficiais que evitavam os combates abertos. Essa e outras estratégias de Luiz Carlos Prestes, um dos comandantes, revelavam aos participantes e simpatizantes a competência militar dos rebeldes, baseada na formação profissional e na disposição dos envolvidos. Não houve adesão popular. Em nenhuma ocasião a marcha abalou as estruturas políticas, sociais e econômicas da sociedade brasileira.

O alvo da Coluna era o governo de Artur Bernardes. Os rebelados não esperavam uma resistência por parte do Exército. Desse modo, a mobilização popular dispersava o projeto intervencionista desses militares, com objetivos políticos moderados e elitistas. Não existe nenhuma relação entre a mobilização tenentista e uma possível adesão do povo, a primeira excluía a participação da última. Os valores tenentistas perpassavam a idéia de que o povo estava representado no Exército. Nesse sentido, a Coluna Prestes permite verificar que o militarismo dos tenentes estava calcado na defesa do Exército como agente da Revolução dos militares para o povo brasileiro. Os tenentes não foram agentes de uma revolução, pois, considerando as condições políticas e de outras ordens no Brasil da Primeira República,[*9] não era possível uma revolução social.

Bibliografia

CARVALHO, José Murilo de. “As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador”. In: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano. São Paulo: Difel, 1978, tomo III, vol. 2.
___________ A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CASTRO, Celso. A Proclamação da República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
___________ Os militares e a república: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
DRUMMOND, José Augusto. A Coluna Prestes: rebeldes errantes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O coronelismo: uma política de compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1986.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil (1922-1935) . São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
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Daniela Meira Cotrim graduou-se pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep). Atualmente é professora de História na Escola Estadual Romana Cunha em Santa Bárbara D’Oeste e desenvolve projeto de mestrado em história social da cultura. E-mail para contato: daniela-cotrim@ig.com.br
JANOTTI, Maria de Lourdes Mônaco. O coronelismo: uma política de compromissos. São Paulo: Brasiliense, 1986.
DRUMMOND, José Augusto. A Coluna Prestes: rebeldes errantes. São Paulo: Brasiliense, 1985.
CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CASTRO, Celso. Os militares e a república: um estudo sobre cultura e ação política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
Idem. A Proclamação da República. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.
Termo que, segundo Celso Castro, era utilizado na época para designar a posição do Exército na sociedade brasileira.
Ibid. “As forças armadas na Primeira República: o poder desestabilizador”, in: FAUSTO, Boris (org.). História Geral da Civilização Brasileira. O Brasil Republicano. São Paulo, Difel, 1978, tomo III, vol. 2.
DRUMMOND, J. A., op. cit.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Estratégias da ilusão: a revolução mundial e o Brasil (1922-1935) . São Paulo: Companhia das Letras, 1991.