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Artigo publicado na edição nº 23 de julho de 2007.
Leituras políticas de obras de Franz Kafka na imprensa brasileira[*1]

Eduardo Manoel de Brito

No Brasil, as obras de Franz Kafka começaram a ser traduzidas sistematicamente e como um projeto editorial a partir da segunda metade da década de 1960. Torrieri Guimarães traduziu boa parte da obra kafkiana, para a Editora Livraria Exposição do Livro, como, por exemplo: A metamorfose (1963), Diário íntimo (1964), O castelo (1964), Carta a meu pai (1964) e O processo (1964), América (1965) e A colônia penal (1965) e Cartas enviadas a Milena (1966). A tradução foi feita a partir do francês e não do original alemão, em cuja língua o tcheco Franz escreveu toda sua obra.

Pretendo colocar em paralelo alguns aspectos da recepção de textos kafkianos com algumas notas sobre a política brasileira do final dos anos sessenta e durante toda a década de 1970, lembrando que no período houve um progressivo controle sobre a produção jornalística e intelectual no Brasil, e um cerceamento da liberdade política, bem com uma maciça intervenção nas decisões do Congresso Nacional, até mesmo o seu fechamento com a implantação do AI-5, quando começou a haver mais fortemente a cassação de mandatos, torturas, prisões e exílio de intelectuais e políticos.

Antes de haver à disposição do público leitor obras de Franz Kafka em tradução brasileira, já se publicavam artigos sobre a obra e a pessoa do autor no país. Em 1941 vem a lume no Brasil o primeiro texto crítico sobre Kafka. Trata-se de um ano em que a Alemanha e a Europa ainda estão em guerra e o Brasil está sob a ditadura de Getúlio Vargas. É neste ambiente político que Otto Maria Carpeaux publica o texto “Franz Kafka e o mundo invisível” no jornal carioca Correio da Manhã[*2]. No período anterior ao aparecimento das traduções das obras kafkianas dos anos sessenta, além da apreciação emitida por Carpeaux, percebem-se duas vertentes predominantes nos textos surgidos na imprensa paulista que citam Franz Kafka: há, por um lado, comentários sobre obras ou reprodução de estudos sobre o autor publicados no exterior e, por outro, a literatura de Kafka como referência para outros autores, mostrando algo de “kafkiano” nos textos literários deste período. Com a tradução sistemática da obra kafkiana a partir da década de sessenta e, diante da realidade da ditadura civil-militar brasileira, vários críticos da obra de Franz Kafka passam a fazer paralelos entre sua obra literária e a realidade político-social brasileira. A produção de crítica literária dita secundária aumenta na chamada imprensa não especializada (não acadêmica), representada em minhas investigações pelos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo, e pelas revistas Veja e Isto é. Deter-me-ei tão somente nas leituras políticas feitas pós-AI-5, ou seja, a década de 1970, nos artigos publicados nestes veículos de comunicação.

Primeiramente me remeto a uma referência publicada no jornal Folha de São Paulo, Caderno “Ilustrada”, de 05.03.1970, à página 24. Trata-se de um questionário curioso para testar o nível de cultura do leitor, elaborado pela escola preparatória para vestibulares MED de São Paulo:

“A prisão de Joseph K. ocorreu sem que tivesse cometido crime algum. Joseph K. fica sabendo que foi acusado, mas não vem, a saber, por que nem por quem”.Tal trecho pertence à obra de Kafka:
a) A sangue Frio ( ); b) O Caso Dreifus ( ); c) Kaputt ( );
d) O Processo ( ); e) Metamorfose ( ).

O teste realça tanto o grau de penetração do romance mais cultuado de Franz Kafka junto ao público brasileiro, quanto oferece um resumo da situação considerada exemplar do que se convencionou chamar “situação kafkiana”. Tal recorte em meio a tantos outros possíveis no âmbito da obra do autor pode ser considerado sintomático de uma maneira de ler a realidade política brasileira da época, reconhecendo-a em projeção sobre o trecho apresentado, sem deixar de levar em conta o título das outras narrativas também a apontar, quase que por completo, para contextos politizados.

No começo da década de setenta, em paralelo com o embrutecimento progressivo das forças repressoras do governo ditatorial brasileiro surge uma série seguida de artigos na imprensa sobre a censura às obras de Franz Kafka nos países do bloco soviético. Em cinco artigos publicados pelo jornal Folha de São Paulo[*3], a obra de Franz Kafka é tomada como referência para uma reflexão sobre a existência nefasta da censura nos países do bloco soviético. Também neste caso, há uma relação explícita entre o conteúdo do texto literário kafkiano e a realidade externa soviética em sua conexão com a brasileira no ponto da censura.[*4]

Em um artigo da revista Veja (14.02.1973, p. 87), num comentário à antologia A solidão segundo..., que trataria do tema da solidão em diferentes autores, organizado por Hermenegildo de Sá Cavalcanti, o articulista Geraldo Galvão Ferraz menciona a obra Na colônia penal, incluída na seleta, como sendo:

[...] um clássico da literatura contemporânea, [...] um libelo contra o autoritarismo e a desumanização, simbolizados por uma máquina corretiva assustadora pelos paralelos que permite traçar com nosso tempo.

Neste caso, o articulista da revista, Geraldo Galvão Ferraz, não associa o texto de Kafka ao bloco soviético, senão que aponta para o tempo presente, e tal tempo significava para os brasileiros os primeiros anos da década de setenta, sob um governo autoritário e violento.

A utilização da obra de Franz Kafka para dar forma a realidades políticas fica também patente em uma homenagem feita a Hannah Arendt por ocasião de seu falecimento, publicada no jornal Folha de São Paulo, Caderno de Domingo, de 14.12.1975, à página 78, por Nogueira Moutinho. Aqui é tecida a relação entre o universo literário descrito por Franz Kafka em O processo, em especial o capítulo intitulado Na catedral, e a “glosa científica” praticada pela filósofa, que buscou demonstrar como a política da mentira dos sistemas autoritários teria sido elevada a uma regra no século XX.

Em 5 e em 13.02.1977 saem publicados no jornal O Estado de São Paulo dois comentários, o primeiro sem mencionar o autor e o segundo assinado por Clóvis Garcia, sobre a encenação da peça O processo, uma adaptação para o teatro do romance homônimo de Kafka, num momento histórico que já não correspondia ao mais sombrio da ditadura brasileira. Trata-se de uma peça dirigida por Celso Nunes no Teatro Oficina. A transferência do mundo imaginário do romance de língua alemã para o mundo imaginário do teatro brasileiro é manifesta. Além disso, no primeiro comentário, é reproduzida a opinião de Paul Betti, o ator principal, que acaba por fazer a ponte entre a realidade do teatro e a vida, ao declarar que, na peça, trata-se de “incorporar o mundo kafkiano à nossa realidade, num espetáculo contundente e oportuno”.

Também, num artigo escrito, curiosa e sintomaticamente sem título, por Josué Guimarães para o mesmo jornal em 01.10.1978, é possível perceber um ambiente mais aberto para as críticas ao governo. Em cima de uma foto de barata, foto esta que, no fundo funciona como título, numa referência à obra A metamorfose, o articulista escreve o seguinte:

De Brasília informam que após a votação no Colégio Eleitoral, os meninos desfilarão pelas avenidas principais abanando para o público (que ficou proibido de votar) com artísticas bandeirinhas do Brasil. E a seguir os jornais de todo o mundo dirão que venceu o candidato do governo, sendo derrotado o candidato da oposição. Se Kafka fosse vivo teria matéria para escrever dez novos romances.

Não há aqui meios-termos. Franz Kafka é explicitamente tomado como referência para uma crítica à política brasileira nos últimos anos da década de 1970.

Em 19.04.1978, com os novos ventos democráticos soprando timidamente sobre o Brasil, a revista Veja publica na página 97 a resenha do livro Constituinte, de Freitas Nobre, escrita por Augusto Nunes, que também se serve de Kafka para traduzir a realidade política do país:

Enfim, resgatado dos anais do Congresso, o discurso é enriquecido por kafkianos apartes do deputado Cantídio Sampaio, da Arena de São Paulo, negando enfaticamente a existência de quaisquer restrições à imprensa brasileira.

Percebe-se que o adjetivo kafkiano encontra-se incorporado ao espírito político crítico e irônico brasileiro. Os “kafkianos apartes” são uma ironia fina e, à época, erudita, que dão nome à situação política brasileira. Não há aí nenhuma ponte entre o termo e algum personagem literário, a expressão descola-se da sua origem e segue um caminho próprio.

Num artigo de Luis Carlos Maciel, intitulado “Teatro: sem chateação”, e publicado pela revista Veja, em 17.01.1979, na página 71, o tema é a peça de Bráulio Pedroso As gralhas. Sobre as relações políticas explícitas no texto, eis um comentário do diretor da peça, Marcos Paulo, reproduzido pelo articulista:

Era o que eu queria ver no palco [...]. Afinal de contas, o Brasil é um país kafkiano: pode haver, por exemplo, coisa, mas kafkiana que o Mário Henrique Simonsen do Ministério do Planejamento? Descobrimos isso durante o trabalho: os extremos se tocavam e vimos que o absurdo expressava de maneira justa nossa realidade.

Torna-se impossível, apenas através do texto, identificar o que haveria de kafkiano no ministro do Planejamento, comentário por demais datado para significar algo para a situação política brasileira dos tempos atuais. Mas é possível imaginar que, na pessoa do ministro, é colocada em foco toda a estrutura do governo de então, com seu discurso modernizante de abertura democrática, convivendo pacificamente com ferrenhos defensores do sistema autoritário, bem como com a riqueza ostensiva de uns poucos chocando-se com a pobreza absoluta de um enorme contingente de pessoas.

Uma reflexão final

Nos anos seguintes, outros artigos foram escritos relacionando a obra kafkiana com a situação política brasileira, inclusive, chegando ao extremo de chamar de kafkiano qualquer situação mesmo que apenas remotamente assemelhada ao destino dos personagens de Kafka. O certo é que políticos e críticos fizeram e farão uso do termo kafkiano para que suas situações sejam confrontadas com um modelo exemplar de situação existencial de extrema dificuldade. Os exemplos apontados (e no texto da tese de doutorado são muitos mais) servem apenas para delinear uma certa recepção bem brasileira da obra de Kafka, bem como um ambiente político brasileiro que recebeu as primeiras traduções de suas obras, nomeado por tantos como kafkiano. O importante para mim, neste ensaio, foi demonstrar o potencial crítico e político da obra literária, no caso, a obra de Franz Kafka. Tal potencial, contudo, está presente na Literatura, seja ela brasileira ou estrangeira, permitindo-nos refletir nossa realidade política e social, dialogando com o passado e construindo pontes para futuros possíveis, de acordo com os investimentos no tempo presente.

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Doutor em Letras (Língua e Literatura Alemã), pesquisador sênior no Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo.
O texto que apresento corresponde a alguns aspectos da minha tese de doutorado defendida em março de 2006 na FFLCH-USP. A pesquisa para minha pesquisa foi feita em inúmeros centros de pesquisa do município de São Paulo, bem como em centros e bibliotecas na Alemanha (Berlin e Bielefeld). Dentre as instituições, provavelmente uma das mais bem organizadas e disponibilizadas foi no Arquivo do Estado de São Paulo, no qual fiz os levantamentos durante os anos de 1998 e 2004. Dedico este texto aos funcionários do Arquivo que tão gentilmente atenderam minhas demandas. A pesquisa foi feita na seção de Microfilmes (Arquivo Permanente) do Arquivo do Estado de São Paulo, com os acervos do Jornal Folha de São Paulo, entre as décadas de 1940 e 1980.
Este mesmo artigo viria a ser republicado no livro do mesmo autor intitulado A cinza do Purgatório – Ensaios (CARPEAUX, Otto Maria (1942). Kafka e o mundo invisível. ___. A cinza do purgatório – Ensaios. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil).
Cf. Jornal Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada: “Kafka pernicioso”, autor não mencionado, 01.06.1973, p. 25; “Tchecoslováquia ignora Kafka”, autor não mencionado, 05.06.1974, p. 31; “Tchecoslováquia reabilitará Kafka?, autor não mencionado, 07.07.1974, página não identificada; “Novas do universo concentracionário”, por Nogueira Moutinho, 29.08.1974, p. 42; “Revista Soviética edita Kafka”, autor não mencionado, 03.09.1974, p. 38.
Cf. STEPHANOU, Alexandre Ayub (2001). Censura no regime militar e militarização das artes. Coleção História – 44. Porto Alegre: EDIPUCRS, p. 272-273.