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Artigo publicado na edição nº 23 de julho de 2007.
A Exceção como Regra
O Sistema Judiciário sob o terrorismo de Estado

Luiz Felipe L. Foresti

Quando em 1743, o Barão de Montesquieu publicou “Do Espírito das Leis”, refletia e teorizava sobre um novo paradigma de organização político-institucional para os Estados. Na obra, o pensador francês defendia que, independente de qual se julgasse ser a melhor forma de governo, deveria haver uma separação entre os poderes e seus detentores na estrutura de estado; tendo como objetivo promover a dualidade liberdade/limitação de cada um, e conseqüentemente uma melhor harmonia para a nação por eles governada.[*1]

Para nós, “moradores” do recém-nascido século XXI, vivendo na parte ocidental do globo, e tendo uma cultura herdeira de uma boa parcela desse pensamento Iluminista[*2], a divisão de poderes parece bem óbvia, e qualquer criança de sexta série seria capaz de, grosso modo, repetir a seguinte fórmula: O Legislativo faz as Leis, o Judiciário julga, de acordo com as Leis, e o Executivo cumpre as Leis. Essa definição, em que pese a demasiada simplificação está, em essência, correta.

O que queremos mostrar ao leitor nos parágrafos que se seguem, é como na ditadura Argentina de 1976 a 1983, a divisão proposta por Montesquieu foi totalmente ignorada, tendo o regime, no entanto, notadamente no que diz respeito ao poder Judiciário, feito esforços para manter a fachada de normalidade, usando a Dama Vendada para legitimar muitos de seus atos criminosos.

O Terrorismo de Estado

Primeiramente, é interessante apresentar ao leitor, breve e resumidamente, as diversas nomenclaturas usadas por algumas linhas de pensamento para conceituar e qualificar os regimes ditatoriais, como elas se aplicam, e qual entendemos responder melhor às especificidades do caso argentino.

Para Agustín Cueva, regimes militares como o argentino podem ser classificados sem maiores dúvidas teóricas como “fascistas”, não obstante o fato da Argentina ser um país imperialista. Já Fernando Henrique Cardoso considera que o autoritarismo latino-americano difere do fascismo típico, pois pretende produzir apatia entre as massas e receia a mobilização dos seguidores. Ele fecha questão com o termo “Autoritarismo”, por considerar que ele diverge tanto do modelo democrático, pela falta de laços entre os representantes e os eleitores, como do fascismo italiano ou alemão, pela falta de mobilização do partido.

O termo tem encontrado diversos adeptos, muito embora esbarre em, pelo menos, dois senões: por um lado é por demais genérico, por outro, ao olhar a realidade apenas parcialmente, acaba por “suavizar” a interpretação de regimes verdadeiramente ditatoriais. Outro autor, Guillermo O’Donnell, cunha o termo “burocrático-autoritarismo”, um sistema excludente e enfaticamente não-democrático, que tem a particularidade de incluir tecnocratas de alto nível por parte dos atores centrais da coalizão dominante para trabalhar em associação íntima com o capital estrangeiro. A nova elite elimina a competição eleitoral e controla a participação popular de modo total. A política pública passa a ter como preocupação prioritária a promoção da industrialização avançada. É precisamente nesta categoria que o processo de “reorganização nacional” da Argentina estaria incluso.

Existem ainda outras classificações como a de Alain Touraine, na qual o já citado regime seria um “governo antipopular”. Todavia, a noção que mais nos interessa é a de Alejandra Leonor Pascual[*3]. Considerando que as definições acima são, ou por demais genéricas, ou que servem apenas para discutir algumas características do regime, opta por uma noção que julga dar conta de definir melhor aqueles anos; a de “Terrorismo de Estado”. Essa noção, como sugere o título desta matéria, é aqui adotada, e adquire especial relevância no que tange ao sistema “legal” do país, visto que, como diz a própria autora, é um regime muito mais violento que outros anteriores, porque tem como base a instauração do terror a partir do próprio Estado, deixando a vítima desse terror sem qualquer esperança de uma ação redentora por parte daqueles que deveriam zelar pelo seu bem-estar e integridade física e moral.

Ideologia e Justificativa

Para entender o pensamento que serve de substrato para o regime, precisamos mais uma vez nos remeter a alguns antecedentes. Desde o final da Segunda Guerra-Mundial, o mundo ficou dividido em dois blocos, definidos pelos militares argentinos, formados em academias norte-americanas, da seguinte forma: Nós, ocidente, com uma forma de vida baseada na vontade da maioria, com instituições livres, governo representativo, eleições livres, liberdade individual, de expressão e eleição e ausência de opressão política. Do outro lado: Eles, orientais, com uma forma de vida baseada na vontade de uma minoria, que se impõe pela força; recorrendo ao terror, a opressão, a um rádio e a uma imprensa controlados, a eleições decididas de antemão e à supressão das liberdades pessoais.

Não analisaremos aqui a íntima relação entre esse ideário, a deflagração do golpe e a implantação do Terrorismo de Estado para “salvar” a Argentina do “perigo vermelho” vindo do Oriente. Usamos apenas algumas linhas para entender como essas noções criam a figura do “inimigo interno”, o subversivo, figura que é definida pelo regime com um amplo leque de conceitos e preconceitos, que se aplicam a quem faça qualquer qualquer coisa que saia fora dos preceitos estabelecidos pelos militares. São essas pessoas que se tornarão os “detidos-desaparecidos”, ou aqueles detidos, “legalmente” que, porém, nunca terão qualquer respaldo do estado nação.

Vale ainda expor, para demonstrar o que dissemos acima, as cinco categorias principais em que o os próprios militares, em seus discursos e entrevistas, enquadravam “os subversivos”. Segundo Alejandra Pascual, os termos mais utilizados para defini-los eram: ser inimigo ideológico, ser de esquerda, ser não argentino, ser judeu ou ser um irrecuperável.

Os Presos Políticos e o Sistema Judicial

O conceito de preso político aqui refere-se a qualquer um que tenha sofrido perseguições por parte do sistema, independente de ter tido qualquer atuação, por assim dizer, “partidario-ideológica”. Segundo, apenas uma pequena parcela desses presos tinha a “sorte” de estar oficialmente presa, visto que maior parte das vítimas desse verdadeiro genocídio (estima-se hoje algo na casa de 30.000 pessoas), era de “detidos-desaparecidos”, que não tinham qualquer espécie de estatuto jurídico, chegando a se tornar aquilo que Orwell classificaria como uma “impessoa”[*4], como demonstram as palavras de um ex-militar argentino:

Uma coisa que me marca muito aconteceu em 1978. Eu estava em uma missão de treinamento em alto mar. Uma tarde, nosso navio atracou em Ushuaia, e quando zarpamos, dois oficiais de alta patente, que eu jamais havia visto, traziam consigo cerca de seis homens encapuzados, identificados como subversivos, que deveriam ser levados para Buenos Aires, e foram trancafiados no porão do navio. Por dois dias inteiros ouvimos gritos e muito choro; no terceiro dia isso cessou. Quando voltamos para a base de Puerto Belgrano, os prisioneiros não estavam mais no navio. Certamente foram atirados no mar[*5].

Logo nos primeiros dias a Junta Militar, constituída como órgão supremo da nação impõe ao país duas diretrizes básicas para justificar o golpe e atingir seus objetivos: os “Objetivos Básicos” e o “Estatuto para o Processo de Reorganização Nacional”. Além disso, substituem o Congresso Nacional pela Comissão de Assessoramento Legislativo, composta por três militares de cada arma, e no âmbito do Judiciário, substituem todos os cinco ministros da Corte Suprema de Justiça do país por novos membros, embora civis, indicados pelos militares. Nos tribunais inferiores, todos os juizes deveriam ser confirmados pela Junta Militar, ou substituídos por novos.

Os novos ministros da Corte Suprema, dois magistrados e três advogados de renome, deveriam jurar obedecer aos “Objetivos Básicos” ao “Estatuto” e a Constituição Nacional, desde que essa não se opusesse aos dois primeiros. A idéia de colocar a Constituição em um grau inferior aos outros dois soava tão excêntrica que os ministros, nomeados pelos próprios militares, se opuseram, e a formula final encontrada foi a de jurar obediência aos três em igual grau de importância. Embora na prática a Constituição tenha sido sistematicamente desrespeitada, essa era mais uma das medidas que tentavam mostrar, aos olhos do mundo, uma situação de alguma normalidade institucional.

Os militares souberam, no entanto, utilizar-se da Carta Magna do país quando lhes foi conveniente. É o caso das interpretações dadas ao artigo 23 da Constituição. Este dizia que durante o estado de sítio o presidente da república poderia suspender os direitos constitucionais e, se necessário, deter um cidadão e transferi-lo para outro ponto do país. Não obstante, esse artigo dizia que o presidente não podia condenar ou aplicar pena, e deveria respeitar o direito do detento de optar por sair do país. A junta evidentemente só se interessava em usar a primeira parte do artigo, e como era de se esperar a Corte Suprema legitimava essas ações em sentenças que beirariam o cômico, não estivessem os argentinos em tão deplorável estado de exceção. Nas próximas linhas citaremos alguns casos de maior repercussão nacional e internacional que exemplificarão o que dizemos.

Casos e Conclusões

Antes de começar a citar os exemplos, é interessante antecipar duas conclusões: mesmo em um regime que tinha por ordem do dia uma política de perseguições sistemáticas o fator sócio- econômico se faz presente. As pessoas das classes mais baixas tinham pouquíssimas chances de cair nas mãos da “Justiça”, porque quando incomodavam o regime via de regra, eram seqüestradas e mortas; o que não quer dizer que os opositores mais abastados tenham tido vida fácil. Em segundo lugar a de que, durante a vigência do regime militar, a Corte Suprema agiu no sentido de aceitar a aplicação da legislação militar e da jurisdição militar contra civis, justificando-se pela existência de uma “situação de emergência”.

O primeiro caso que vale a pena citar é o de Carlos Mariano Zamorano, advogado, e destacado ativista na luta pelos direitos humanos. Tendo ficado mais de dois anos detido, com base no artigo 23, sem qualquer acusação, e depois de reiterados pedidos de habeas-corpus impetrados em seu favor, a Corte Suprema foi forçada a reconhecer que a situação era inaceitável. Porém, ao invés de ordenar a imediata libertação do Zamorano, a corte limitou-se a solicitar que o executivo apresentasse os motivos da prisão. A resposta foi risível: respondeu o governo que Zamorano, mesmo preso há mais de dois anos mantinha “contatos comunistas” e que existia uma estreita relação entre os motivos da declaração do estado de sítio e as causas de sua detenção. Apesar da precariedade dos argumentos, eles foram considerados suficientes e Zamorano continuou preso.

Também é de grande importância o caso de María Cristina Ercoli, professora de Humanidades na província de La Pampa. Ercoli foi detida em finais de 1975 (com base no artigo 23), portanto, ainda antes do golpe. Desde logo manifestou a vontade de exercer seu direito constitucional de sair do país. Quando a Junta Militar tomou o poder, seu caso ainda aguardava resposta. O que se viu a partir de então foi uma vergonhosa novela que envolveu desde mudanças legais totalmente fora de qualquer principio do direito, até uma atuação simplesmente deplorável por parte da Corte Suprema.

O caso Ercoli adquire uma importância fulcral no estudo do sistema judiciário argentino da época do Terrorismo de Estado, pois como diz Alejandra Pascual a partir dela era impossível negar que o Alto Tribunal da nação deixava os habitantes indefesos perante o uso arbitrário do poder por parte dos militares, e a realidade do país era, na verdade, de falta de justiça real, existindo apenas, uma justiça formal, que servia para legitimar as práticas do governo ditatorial. A Corte Suprema ajudava, em definitivo, a distanciar o país da situação de normalidade institucional desejada.

Para falar dos absurdos do sistema judiciário nesses anos obscuros poderíamos ainda citar muitos outros casos, como o do fundador do jornal La Opinión, que foi seqüestrado em sua casa, e provavelmente só conservou a própria vida em função dos esforços de sua esposa na sua defesa e na condução de denúncias em seu jornal. Poderíamos ainda falar das torturas, físicas e psicológicas, que os protagonistas dos casos acima sofreram. Mas, no final desta matéria, fica a impressão de que, não importa o quanto mais escrevêssemos, chegaríamos as mesmas conclusões; uma mais específica e outra mais genérica.

A mais especifica é a idéia que perpassa todo esse texto: a de que a Corte Suprema de Justiça da Argentina foi um dócil cúmplice do nefasto sistema que regia o país, ora se omitindo, ora fazendo um papel teatral que só servia para, no final, legitimar o Regime. A outra conclusão é a mesma a que chegaram, em 1986, os membros da Comissão Nacional de Desaparecidos Políticos da Argentina, e que está contida em seu relatório. Cremos nós que ela se encaixaria em diversos outros tipos de regimes ditatórias que se alastraram pela América Latina durante a o século XX, aonde as liberdades individuais foram suprimidas. É ela, a certeza de que a ditadura militar produziu uma das maiores tragédias da história Argentina.

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Aluno do curso de História da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Membro do Centro de estudos de História latino-americana (CEHLA) e do Núcleo de estudos de Cultura, Memória e Mídia (Thesis) desta mesma Universidade.
MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, barão de la. Do espírito das Leis. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
GRESPAN, Jorge L. S. Revolução Francesa e Iluminismo. São Paulo: Contexto, 2003.
PASCUAL, Alejandra Leonor. Terrorismo de Estado: a Argentina de 1976 a 1983. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2004.
ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.
Entrevista concedida a revista “Libertad!” em outubro de 2005 pelo ex-militar argentino “Roberto G.”. Atendendo a um pedido do entrevistado, seu nome real foi substituído por um pseudônimo. Grifo nosso.