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Artigo publicado na edição nº 24 de agosto de 2007.
Tecnologia e Espiritualidade:
A arte religiosa na era virtual

Alfredo César da Veiga

Desde a década de 1990, quando assistimos a um brusco impulso das tecnologias digitais, percebe-se, ao mesmo tempo, uma mudança de paradigma nas relações religiosas com tais tecnologias. Se procurássemos uma linha divisória entre Modernidade e Pós-Modernidade em questões religiosas, certamente encontraríamos na apropriação dos meios tecnológicos essa disjunção.

Enquanto os papas da Modernidade execravam os novos tempos por tentarem emancipar o homem de Deus e também a ciência por insuflar a novidade que poderia infectá-lo “de tudo o que recorde o antigo”[*1], a tendência religiosa atual, incentivada por João Paulo II, que soube como nenhum outro utilizar a mídia em favor da propaganda fides, é aliar o digital e o espiritual em busca de espaços onde as expressões de fé não atuem apenas no campo simbólico e ritualístico como nas igrejas, mas como poderoso coadjuvante no dia a dia do crente, atuando como um lenitivo nas horas onde não se pode contatar um adjunto real.

A espiritualidade virtual atua como uma igreja doméstica: o nicho onde eram colocados os santos foi substituído pela tela do computador que, juntamente com o santo, traz a sua oração; os pedidos não precisam ser levados até o altar da estátua no templo. Basta clicar e lá se pode mandar, via e-mail, todas as preces que se queira. Multiplicam-se chats, conversas on-line com o padre ou o pastor, espaços para deixar testemunhos e graças alcançadas. E aqui chegamos a um paradoxo: ao descobrir que a tecnologia não é portadora de sentido, já que se supera tanto que não oferece porto seguro, é ali que o homem, cansado de um mundo que circula em alta velocidade, encontra um lugar de salvação. Ali o sujeito pode clicar e aceitar Jesus sem sair de casa e nem freqüentar igreja; em outras palavras, ali pode transcender, e para facilitar o encontro com o infinito, o crente escuta músicas e vê imagens pias que servem como ponte de inspiração.

Com relação à iconografia virtual, várias questões aparecem e que são importantes a fim de se compreender as razões do grande interesse do público em buscar o assunto e dos responsáveis em manter tais sites. O nosso intuito não será buscar razões psicológicas ou outras que também explicam muito bem esses interesses. A nossa análise será baseada principalmente na imagem e na maneira como ela interage com o público. Parece estranho afirmar que a imagem interage, mas no mundo religioso virtual, nada é estático. Ali a religião também tem por finalidade formar um grupo e criar identidade.

Iremos privilegiar os sites católicos por razões óbvias. Protestantes e espíritas dão mais ênfase a fotografias de famílias unidas e sorridentes ou a fotos de seus pastores ou médiuns mais destacados. Nos sites católicos, sobressaem, além da imagem do papa, que se encarrega em aferir identidade católica ao site, imagens de santos, que servem melhor para uma análise interpretativa, devido à sua diversidade, embora seja evidente que há pontos convergentes nas imagens veiculadas.

Essa convergência segue modelos ou tendências estabelecidas pelo tempo presente. Os modelos são aqueles que a Igreja escolhe como seus, e em se tratando de convicções ou dogmas, não há muito que fazer a não ser repeti-los. Quanto às tendências, diríamos que estas seguem o destino que as imagens têm em cada sociedade e em cada época. Nesse sentido, vale lembrar Jacques Aumont quando diz que “é banal falar de ‘civilização da imagem’, mas essa expressão revela bem o sentimento generalizado de se viver num mundo onde as imagens são cada vez mais numerosas [...], mais diversificadas e mais intercambiáveis”.[*2]

1. Convergências

De maneira geral, os sites católicos estão unidos por uma grande pax que deixou para um passado distante os grandes temas que interessavam à Igreja como um todo e que causavam certa polêmica. A Igreja dos pobres foi substituída por uma relação individual com Deus. A figura do papa, em grande parte deles, é altamente simbólica. Está relacionada a um desejo de unidade com um mundo onde não existem mais questões ou dúvidas a respeito da fé. O que atrapalhava, agora não atrapalha mais, os velhos discursos, as ideologias supostamente marxistas, cedem espaço a assuntos mais amenos e procura dar respostas práticas a questões também práticas do dia a dia.

Se procurarmos por sites que fazem links à religião católica, encontraremos referências a padres artistas, movimentos conservadores que, no tempo em que a Teologia da Libertação imperava, eram postos à berlinda. Hoje, estão na moda, como a Renovação Carismática Católica, os Focolares, e ainda os diversos movimentos marianos.

Show e santidade se mesclam, oficializando a pax; afinal, os meios são diferentes, mas os fins são os mesmos: submissão e obediência aos pastores: papa e bispos. Grandes estrelas surgem no cenário religioso, e suas fotos os representam em atitudes orantes, com a finalidade de lhes fornecer expressões que lembrem os antigos santos solenizados e imóveis em seu gesso.

A doutrina é exposta na maioria dos sites, e isso misturado com orações de exorcismos, histórias de supostas aparições da Virgem, passagens bíblicas para momentos de necessidade. Enfim, foram confeccionados como lugares emergenciais. Basta recorrer a eles, deixar o nome, rezar uma oração, ouvir uma música e assim, a salvação estará batendo à sua porta.

2. Tendências

As iconografias presentes nesses sites são preferencialmente figurativas, e a razão disso é porque ainda somos obcecados pela forma humana, portanto, fogem a qualquer tipo de distorção. Isso funciona como um símbolo de resistência à Modernidade.

Há uma imbricação entre o antigo e o nostálgico, dispensando o valor simbólico da arte religiosa. O símbolo provoca certo distanciamento entre a criatura e o Criador. A imagem aproxima porque se parece com o humano, por isso seu poder de provocar sentimentos, enaltecendo a beleza física e comovedora dessas imagens. Nossa Senhora de Fátima é imagem recorrente. Seu rosto aflito reflete a pena que sofre pelos nossos pecados. Portanto, é preciso voltar ao rosário. Junto com ela, seu coração cercado de espinhos, que os homens, com sua ingratidão cravaram. Os temas dramáticos que retomam o período românico retornam com força, como a morte, o pecado, demônio e juízo final, tornando patente uma preocupação metafísico-religiosa acentuada do mundo através desse tipo de iconografia. A intenção é desenvolver uma concepção de Deus e uma teoria da divindade que provoquem no fiel um misto de temor e assombro.

Outra finalidade desse tipo de imagem é a mesma que assistimos no período barroco: uma Igreja preocupada em sobreviver, responde com pietismo exagerado e acentuado subjetivismo sensorial às investidas pentecostais que ameaçam roubar seus fiéis. Por conta disso, tais representações iconográficas não têm em vista o comunitário, mas o individual. A imagem chama a atenção para si mesma, e não está a serviço nem do culto e nem de um empreendimento comunitário.

A iconografia de santos populares perde o seu aspecto sagrado pela reprodução em série. O desejo é consumir tudo, até o sagrado, transformando-o em mercadoria. São imagens negociadas no circuito comercial e transpostas em abundância na tela virtual.

O perfil dessa iconografia é o mesmo adotado pelo Concílio de Trento em 1563 (sessão XXV), que incentivou o uso das imagens:

[...] não só porque recordam aos fiéis os benefícios e dons que Cristo lhes fez, senão também porque se expõem à vista dos fiéis os milagres que Deus fez pelos santos e seus admiráveis exemplos, com a finalidade de que dêem graças a Deus por eles, conformem sua vida e costumes com a dos santos e se movam a adorar e amar a Deus e a praticar a piedade [...]

Na era virtual, as imagens veiculadas transformam tudo em ornamento ou produtos para consumo. O santo, por manifestar aparência realista, pode facilmente ser reconhecido através de sua figura, pois perdeu seu status simbólico, que refere não a uma necessidade imediata, mas a uma outra completamente nova que nos convence a “ultrapassar a aparência empírica de modo a ganhar acesso ao seu conteúdo inefável”[*3]

O sagrado se esvai de uma representação simbólica quando esta é produzida em série ou carece de fundamento teológico, e aqui vale lembrar Walter Benjamin (198?: 171), para quem “o valor único da obra de arte ‘autêntica’ tem sempre um fundamento teológico”.[*4]

Conclusão

A arte religiosa virtual tem algum futuro? O rosto do Cristo e da Virgem continuarão a provocar apenas emoções que se esvaem à medida que o internauta não precisa mais delas e a elas recorre somente em casos de emergência?

A arte virtual se esqueceu do dogma fundamental do cristianismo que é a encarnação. O Cristo não parece homem, mas o retrato de um Deus que perde a sua identidade humana. Seus sofrimentos parecem mais importantes do que seus ensinamentos, a piedade está acima da relação com o outro. O machismo de Michelangelo parece retornar com toda a força, e a fragilidade e a subserviência da mulher continua a se reproduzir em um catolicismo que a submete a situações inferiores ou puramente emocionais: a mãe, a ternura, a bondade.

Afinal, existe alguma arte remanescente nos sites religiosos? Em outras palavras, as clássicas concepções de arte veiculadas pela internet conseguem dar conta daquilo que se entende hoje por arte, uma arte religiosa que consegue sair da superfície das coisas e penetrar no mundo da psyche?

Em muitos casos, Nietzsche tinha razão ao afirmar que Deus está morto. Ele morre toda vez que nossa experiência do sagrado não vai além de nós mesmos, não consegue tocar nada a não ser o nosso próprio mundo de sentimentos e emoções. Nesse sentido, podemos afirmar que não há nada de novo na arte religiosa veiculada pela internet. Tudo o que há são reproduções baratas de um universo que um dia deu conta das aspirações religiosas de um povo, mas que hoje, não têm o poder de provocar no fiel a variedade, a inovação, o assombro, que só o verdadeiro artista é capaz de produzir.

Afinal, aqueles que veiculam tais iconografias não entenderam que toda obra deve conter “o espírito do tempo, a voz do povo, a expressão de um grupo”.[*5]

Bibliografia

AMON, Jacques. A imagem. 8ª ed. Campinas – SP: Papirus, 2004
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 198?
BENTO XV: Encíclica Ad Beatíssimo Apostolorum Principis. São Paulo: Paulus, 2002 (Documentos da Igreja 7)
DUPRÉ, Louis. Symbols of the sacred. Cambridge, U.K: William Eerdmans Publishing, 2000
PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989
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É Mestre em Estética e História da Arte, Doutorando em História Social – FFLCH – USP, Membro da ABCA (Associação Brasileira de Críticos de Arte). E-mail: acesveiga@uol.com.br
Papa Bento XV, Encíclica Ad Beatissimi Apostolorum Principis, nº 40
A imagem, p.14
Louis DUPRÉ. Symbols of the sacred, p. 6
Walter BENJAMIN. Magia e técnica, arte e política p. 171
Luigi PAREYSON. Os problemas da estética, p. 83