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Artigo publicado na edição nº 24 de agosto de 2007.
Do complexo de vira-latas ao homem genial:
futebol e identidade no Brasil

Luiz Henrique de Azevêdo Borges

O futebol, esporte das multidões, é capaz de levar milhões de torcedores brasileiros a assistirem as partidas nos estádios ou em frente aos televisores, capaz de parar as atividades cotidianas do país em períodos de Copa do Mundo. Objeto que suscita paixões e discussões sempre acaloradas, por isso mesmo, ingenuamente classificado fora dos assuntos ditos sérios. Porém, o futebol é um elemento marcante da identidade brasileira. Ele é capaz de engendrar sentimentos completamente díspares: alegria – tristeza, amor – ódio, delírio – desprezo, realização – fracasso, entre muitas outras possibilidades.

O futebol cumpre importante papel na formação da consciência de identificação e de diferenciação, na demarcação de “um nós” e de “um outro”. Dessa forma, seria impossível ignorar a forte atração que esse esporte exerce sobre grande parte dos brasileiros.

Torcer por um clube ou pelo selecionado do país significa participar ativamente da vida social e da construção de identidades que extrapola o âmbito privado, tais como a casa e a família e ganha o espaço público.

Talvez, por isso mesmo, tenhamos a impressão bastante disseminada, e fruto de um processo bem sucedido de naturalização, de que o futebol é algo inerente ao brasileiro, quase se confundindo com ele próprio e, podemos até pensar, se não somos os inventores desse esporte e que tal fato só não se deu em virtude de alguma piada do destino.

Apesar de existirem referências da prática do futebol, esporte bretão, nas praias e praças brasileiras desde meados do século XIX, ele só passou a ser regularmente jogado em fins do dezenove. A sua introdução oficial se deu em São Paulo e coube, segundo vários estudiosos, a Charles Miller que, em abril de 1895, organizou e disputou a primeira partida de futebol no país. No Rio de Janeiro, essa honra coube, dois anos depois, a Oscar Cox.

Tanto Miller quanto Cox eram oriundos de famílias abastadas e que tiveram a oportunidade de estudar na Europa. No Velho Continente começaram a praticar o futebol e quando retornaram ao Brasil trouxeram na bagagem além da bola, um manual de regras do jogo, fato fundamental, afinal foi a partir deles que se introduziu de forma sistemática as regras do jogo e assim começou-se a definir o que conhecemos por futebol.

Inicialmente a prática futebolística ficou bastante restrita aos membros da elite nacional, servindo inclusive como elemento de diferenciação ente ela e os grupos sociais menos favorecidos. Em terras brasileiras, o futebol transformou-se em símbolo de elegância, sofisticação, sendo capaz de gerar o interesse e a curiosidade nos círculos mais requintados. Porém, esse exclusivismo não se perpetuou e de forma até surpreendentemente rápida esse esporte foi sendo apropriado por todos os setores da sociedade brasileira.

Esse alargamento social não se deu sem tensões e conflitos, afinal ele não foi percebido de forma positiva pela elite brasileira que acabou por um lado por se afastar não só dos estádios, mas também da própria prática futebolística e, por outro lado, levou à implantação do profissionalismo no futebol brasileiro.

É importante também destacar que a sociedade brasileira passou por uma série de mudanças nas décadas iniciais do século XX, advindas das alterações pelas quais o país passava naquele momento, tais como o crescimento das cidades e da população, o aparecimento de novas indústrias, melhoria nos transportes públicos com o surgimento de novas linhas de bonde, entre outros. Obviamente que as classes sociais também se alteraram, inclusive com o aumento do número dos assalariados. Tais alterações também reverberaram no futebol, pois um número crescente de pessoas eram atraídas por esse esporte, que assim foi se transformando em um poderoso evento de massas.

Nesse caminho o futebol revelou-se não só um fenômeno de ilimitado alcance social, mas também se tornou uma das nossas riquezas como nação, assim como uma de nossas principais caixas de ressonância social. Ele é, no dizer de Armando Nogueira, algo próximo à paixão:

O futebol é assim: desperta na pessoa um sentimento virtuoso que transcende a amizade, que vai além do amor e culmina no santo desvario da paixão. Tem de tudo um pouco, porém, é mais que tudo. Torcer para uma camisa é plena entrega. É mais que ser mãe, porque não desdobra fibra por fibra o coração. Destroça-o de uma vez no desespero de uma derrota. Em compensação, remoça-o no delírio de uma vitória.[*1]

O Brasil como país do futebol não é um dado natural, mas uma construção discursiva que pode ser datada temporalmente. Na construção dessa imagem os cronistas esportivos tiveram um papel proeminente, afinal as crônicas estavam presentes nos grandes jornais que circulavam diariamente pelo país. Cabe ressaltar que até o aparecimento e popularização da televisão, o papel de informar e formar a opinião pública coube especialmente aos jornais e às rádios. Por meio desses dois meios de comunicação, os cronistas de futebol emitiam suas opiniões sobre os acontecimentos e iam construindo suas interpretações não só dos jogos em si, mas também, de forma consciente ou inconsciente, de país.

Pode-se afirmar que as crônicas não se circunscrevem apenas à área esportiva, mas seus discursos atingem outros espaços de sociabilidade, e nesse sentido, as reflexões acerca do futebol abarcam não só questões identitárias, mas também são portadoras de projetos para a nação brasileira.

Dentre os vários e fantásticos cronistas existentes no país, do naipe de Carlos Drummond de Andrade, Mário Filho, José Lins do Rego, Paulo Mendes Campos, Juca Kfouri e muitos outros, selecionamos a trídade, Nelson Rodrigues, João Saldanha e Armando Nogueira que, sem dúvida alguma seriam titulares absolutos em qualquer seleção que representasse a crônica esportiva brasileira.

Para comprovar a importância da referida tríade, basta lembrar-nos que eles eram membros da mesa redonda do primeiro bate-bola televisionado no Brasil, a “Grande Resenha Facit”, inclusive transformando um horário morto, o final da noite de domingo, em um horário de audiência.

Dessa forma, percebe-se que os cronistas foram importantes construtores da imagem e representação do Brasil como país do futebol. Porém, essa representação precisou sustentar-se em acontecimentos que efetivamente permitissem sua legitimação, dando-lhes foros de “verdade” o que se naturalizou nas vitórias dos clubes brasileiros no exterior e principalmente do selecionado nacional, a partir da Copa de 1958, quando se sagrou campeão do Mundo na Suécia. Essa construção se torna muito clara quando a contrapomos com a derrota brasileira na Copa de 1950.

Nelson Rodrigues, pouco antes da Copa de 58, na Suécia, afirmou que o brasileiro padecia do “complexo de vira-latas”

(...) desde 50 que o nosso futebol tem pudor de acreditar em si mesmo. A derrota frente aos uruguaios, na última batalha, ainda faz sofrer, na cara e na alma, qualquer brasileiro. Foi uma humilhação nacional que nada, absolutamente nada, pode curar. (...) Por ‘complexo de vira-latas’, entendo eu a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do mundo. Isso em todos os setores e, sobretudo, no futebol”.[*2]

Após o título obtido na Suécia em 1958, o brasileiro, segundo a leitura rodrigueana, passou a formar uma nova imagem de si mesmo, não mais inferiorizada pelo complexo de vira-latas, mas como um homem genial, repleto de virtudes e qualidade.

Cabe ressaltar que a força das representações, a sua validade, está diretamente ligada a sua capacidade de produzir reconhecimento e legitimidade, afinal, se a representação não é uma cópia do real, é uma construção feita a partir dele e que precisa se inserir em regimes de verossimilhança e credibilidade. Isto demonstra, em primeiro lugar, que os discursos dos cronistas ora selecionados eram pronunciados em uma situação legítima.

Em segundo lugar, Nelson Rodrigues e João Saldanha eram, e Armando Nogueira continua sendo, porta-vozes autorizados, afinal, como tão bem ressaltou Pierre Bourdieu, o locutor precisa ter autoridade para emitir as palavras que enuncia, enquadrando-se no “regime de verdade” que ancora o seu discurso, caso contrário, ele estará condenado ao fracasso.[*3]

Toda esta construção identitária, marcada por aproximações e distanciamentos, é perpassada pela maneira com que o brasileiro e os outros jogavam e jogam futebol. Os três cronistas entendem que o Brasil tem uma maneira própria de praticar este esporte, caracterizada como “futebol-arte” em contraposição ao “futebol-força” praticado, sobretudo pelos europeus. O primeiro teria como símbolo a ofensividade e a suposta existência de um grande número de jogadores criativos, reflexo de um povo também criativo, enquanto o segundo estaria marcado por características defensivas, da submissão da técnica em relação à tática, o que, por conseguinte, refletiria uma suposta carência de jogadores criativos.

Para os cronistas aqui trabalhados, a nossa habilidade e criatividade, representada na prática do “futebol arte”, além de nos diferenciar de outras seleções e equipes, seria a grande responsável pela nossa dita superioridade futebolística.

O que tonteou nossos adversários foi que o negócio poderia vir de qualquer lado. E vinha. Por Garrincha, por Jair, por Rivelino, por Tostão, Pelé, Vavá e até mesmo pelo Zagalo, que fazia seus golzinhos naquelas sobras. Mas Zagalo e Coutinho não estavam confiantes em seus times (...). Não arriscar pode ser até válido. O veado não morre nem a onça passa fome. Entretanto estou convencido de que temos gente e time para arriscar. É a única maneira de se ganhar uma Copa: um time pra cabeça.[*4]

Em suma, o jogo, mais do que uma disputa desportiva, também revela o “confronto” de culturas e de identidades. Demarca diferenças em relação ao outro e nos individualiza e personaliza. Nesse sentido, o ponto alto das disputas futebolísticas ocorre durante a Copa do Mundo, momento em que se pode estabelecer, mesmo que temporariamente, uma hierarquia não só entre as seleções, mas também das próprias identidades nacionais. Para alguns países sul-americanos, especialmente o Brasil, a Argentina e o Uruguai, o futebol fornece até mesmo um meio de afirmação identitária e de superação em relação aos europeus.

Felizmente, o que sempre acaba salvando a pátria é o jeitinho brasileiro, essa irresistível parábola da alma do nosso povo. A saga brasileira nos mundiais não fala de outra coisa a não ser do sopro divino que transforma em obra de arte o gesto singelo de chutar uma bola.[*5]

Neste discurso de individualização do brasileiro, ele é representado como algo novo, distinto de tudo e de todos, inclusive dos vizinhos sul-americanos, para não falar dos europeus.

A verdade é que os europeus estavam esperando grandes coisas da seleção alemã, que é a melhor da Europa. Mas aqui por estas bandas ela estará sempre em condições de levar uma cipoada. (...) Vendo o campo inteiro, seria fácil verificar que dez alemães estavam atrás e que seu time não tinha chance alguma de ganhar. Apenas de empatar. E fizeram um esforço desesperado para isto.[*6]

Para nos vencer, o alemão ou o suíço teria de passar várias encarnações aqui. Teria que nascer em Vila Isabel, ou Vaz Lobo. (...) O nosso escrete era vidência, iluminação, irresponsabilidade criadora. Foi o mistério dos nossos botecos, e a graça de nossas esquinas, e o soluço de nossas cachaças, e a euforia dos nossos cafajestes.[*7]

A Europa podia imitar o nosso jogo e nunca a nossa qualidade humana (...) o brasileiro não se parece com ninguém, nem com os sul-americanos. Repito: o brasileiro é uma nova experiência humana. O homem do Brasil entra na história com um elemento inédito, revolucionário e criador: a molecagem.[*8]

Desta forma, as crônicas de Nelson Rodrigues, João Saldanha e Armando Nogueira ajudaram e ajudam na construção de uma identidade para o brasileiro por meio do futebol, afinal suas crônicas ainda representam inquietações e questionamentos atuais da sociedade brasileira.

No campo e na vida, na ginga e no jogo, no peito e na raça se fundem brasilidade e futebol. Torcer é pertencimento, é identidade. Entre atitudes corporais, discursivas e sociais, se afirma um sujeito nacional, se inventa o brasileiro. O Brasil se colore de verde e amarelo da aquarela deste esporte das multidões. Somos brasileiros na confiança e na desconfiança, no otimismo e no pessimismo, do complexo de vira-latas ao homem genial estamos impregnados pela linguagem do mundo da bola. Especular sobre o futebol é especular sobre ser brasileiro. Nós queremos ser pelo futebol. E o futebol é por nós. Aqui, não tememos certa dose de determinismo, o país se transforma, mas o apego e mobilização de sentimento e atitudes em relação a ele permanecem. Vida longa ao futebol! Enquanto existir uma partida existirá um brasileiro, com sua mágica, sua ginga, sua “irresponsabilidade criadora” e, com um pouco de garra, nos oferecendo vitórias, valorização e orgulho. Suor e pulsação, romance e surpresa... É eterno...

Bibliografia

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas lingüísticas. São Paulo: Edusp, 1998.
CALDAS, Waldenyr. O pontapé inicial: memória do futebol brasileiro. São Paulo: IBRASA, 1990.
CHARTIER, Roger. História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 1990.
HOLLANDA, Bernardo Borges Buarque de. O descobrimento do futebol: modernismo, regionalismo e paixão esportiva em José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 2004.
JODELET, Denise (org.). As representações sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001.
NOGUEIRA, Armando. A ginga e o jogo: todas as emoções das melhores crônicas de Armando Nogueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro: 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
RODRIGUES, Nelson. Á sombra das chuteiras imortais: crônicas de futebol. São Paulo: Cia das Letras, 2002.
__________________. A pátria de chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Cia das Letras, 1999.
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Graduado em Economia e História pela Universidade de Brasília (UnB). Especialista em História da América pela Universidade Estadual de Goiás (UEG) e Mestre em História Cultural pela Universidade de Brasília (UnB), com o tema “Do complexo de vira-latas ao homem genial: o futebol como elemento constitutivo da identidade brasileira nas crônicas de Nelson Rodrigues, João Saldanha e Armando Nogueira”. Professor da Universidade Estadual de Goiás e Faculdade Cambury, ambas situadas em Formosa (GO) e historiador do Iphan. Email: lhab@iphan.gov.br, lha@terra.com.br
NOGUEIRA, Armando. “O Botafogo e eu...”. In: A ginga e o jogo: todas as emoções das crônicas de Armando Nogueira. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003, p. 119.
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SALDANHA, João. “Um time pra cabeça”. In: O trauma da bola: a copa de 82 por João Saldanha. São Paulo: Cosac & Naify, 2002 , p. 40-41.
NOGUEIRA, Armando. A jóia do penta. In: op. cit., p. 191.
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RODRIGUES, Nelson. “O escrete de loucos”. In: A pátria em chuteiras: novas crônicas de futebol. São Paulo: Companhia das Letras, 1999, p. 81.
Idem, ibidem, p. 81.