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Artigo publicado na edição nº 26 de outubro de 2007.
Trabalhadores e os doutores da lei:
direitos e Justiça do Trabalho na cidade de São Paulo – 1953 a 1964

Larissa Rosa Corrêa

Poucos são os estudos com foco nas relações entre a Justiça do Trabalho e trabalhadores[*1]. Recentemente os processos trabalhistas chamaram a atenção dos pesquisadores. Um dos motivos deve-se à idéia, bastante difundida nos anos de 1960 e 1970, de que a Justiça do Trabalho representava uma instituição a serviço da burguesia industrial, afundada em procedimentos burocráticos e manipulada pelo Estado, seja por ter sido considerada uma “justiça menor”, devido à ausência do charme teatral, ou, ainda, por se ter a idéia de que as leis trabalhistas eram vistas com deboche pela classe patronal.[*2]

Enquanto alguns historiadores viram na JT um meio de pulverizar os interesses dos trabalhadores, outros observaram um aspecto importante para a classe trabalhadora: o direito de reclamar. Ainda que as leis não fossem respeitadas pelos patrões, a CLT abriu novas possibilidades de os trabalhadores lutarem por direitos.

A regulamentação das relações de trabalho, independente de sua aplicação, representava, ao trabalhador, uma oportunidade, concreta e acessível, de frear os abusos patronais, utilizando-se das possibilidades que o mundo legal lhe oferecia. A classe trabalhadora passou a fazer uso das mesmas armas articuladas pelo patronato, a própria legislação trabalhista, antes usada para persuadi-los. Essas leis, que tantas vezes os oprimiam, foram revertidas em estratégias de luta pela reivindicação de direitos, além de possibilitarem a elaboração de táticas de resistência no cotidiano das relações de trabalho nas fábricas, obtendo muitas vezes resultados positivos.

Ao analisar os conflitos e negociações dos trabalhadores têxteis e metalúrgicos intermediados pela Justiça do Trabalho, bem como a relação dos primeiros com as leis e os direitos na cidade de São Paulo, durante os anos de 1953 a 1964, pode-se perceber o papel desempenhado por alguns advogados especializados na defesa dos trabalhadores.[*3] A experiência desses profissionais no mundo do trabalho, na luta sindical, no relacionamento com os trabalhadores, sindicatos e com a JT, viabilizavam o acesso dos trabalhadores aos tribunais trabalhistas, contribuindo na luta por direitos.

Com base na documentação do Fundo Deops, localizado no Arquivo Público do Estado de São Paulo, e nas entrevistas realizadas com um grupo de advogados, o presente artigo tem como objetivo apresentar alguns desses personagens, os quais, é importante afirmar, ainda não receberam a devida atenção dos estudos dedicados à história do movimento sindical.

Em meados da década de 1940, a Justiça do Trabalho dava seus primeiros passos. Nessa época, os alunos do curso de Direito foram contemplados com uma nova disciplina – Direito do Trabalho. Logo, surgiu um grupo de jovens advogados engajados na política, em sua maioria, ligados ao Partido Comunista Brasileiro. Esse grupo carregava uma bagagem ainda incipiente a respeito das leis trabalhistas. Entretanto, eles se depararam com uma área do Direito ainda pouco ou quase nada explorada. Decidiram, então, buscar ao mesmo tempo novas oportunidades de trabalho e satisfazer seus ideais políticos.

Um deles era o recém-formado advogado Ênio Sandoval Peixoto, graduado em 1943 pela Universidade de São Paulo.[*4] Integrante da primeira turma que estudou a CLT na disciplina ministrada pelo advogado e professor Cesarino Junior, o advogado lembrou os tempos em que ele e seus colegas eram obrigados a procurar partes da legislação no Departamento do Trabalho, nos sindicatos, nas bibliotecas. Antes da criação da legislação trabalhista, os estudantes pesquisavam o Código Civil de 1916, que continha 22 artigos sobre “Locação de Serviços”. A aprovação da CLT, em maio de 1943, elaborada pelo ministro do Trabalho, Alexandre Marcondes Filho, foi recebida com alívio pelos estudantes da área, comentou Ênio Sandoval Peixoto. No final desse mesmo ano, o Governo Federal distribuiu cerca de 80 mil CLTs impressas em papel jornal. Para o dr. Ênio, aquelas impressões significavam uma “certidão de batismo”, pois a partir daquele momento, “todos tinham seus instrumentos nas mãos, bastava estudá-lo”, disse ele.[*5]

Nesse período, o advogado Agenor Barreto Parente começava a sua carreira estagiando no Departamento Jurídico do PCB na capital de São Paulo.[*6] Sua função era elaborar habeas corpus para trabalhadores, sindicalistas e associados do Partido. Quando o PCB entrou na ilegalidade, em 1947, o dr. Parente, recebeu um convite para integrar o grupo de advogados do Escritório Paranhos. Não demorou muito, passou a defender causas de trabalhadores sindicalizados.

Em relação ao uso do habeas corpus, o líder sindical Antônio Chamorro fez uma importante observação sobre o tema.[*7] Para ele, apenas o fato de existir esse dispositivo legal já significava uma grande oportunidade para que militantes sindicais e políticos pudessem agir na ilegalidade. Segundo ele, era “fácil você pegar um cara, mandar ele pendurar uma flâmula, distribuir boletim. Porque ele sabia que ia ser preso, mas daí a alguns dias, ele levava uns tabefes e depois estava na rua. A lei bem ou mal funcionava”. O uso do habeas corpus por líderes sindicais e militantes é um exemplo de como os trabalhadores utilizavam um dispositivo legal como importante estratégia na luta do movimento operário.

Muitos advogados que trabalhavam para o sindicato atendiam também em seus próprios escritórios, como era o caso do Escritório de Advocacia Rio Branco Paranhos, estabelecido no centro da capital. Nesse local, atuava um grupo de advogados especializados em causas trabalhistas, liderados pelo advogado Paranhos.[*8] Os trabalhadores que queriam reivindicar algum direito na Justiça recebiam orientações processuais durante o plantão oferecido pelos advogados.

Rio Branco Paranhos nasceu em 1913, na cidade de Catalão, Goiás. Suas ações passaram a ser vigiadas pelo Deops desde o ano de 1940 quando ele se associou à Frente Nacional Democrata. Em 1949, passou a advogar para o Sindicato dos Trabalhadores Têxteis. Dois anos depois, ele fazia parte da Federação da Juventude Paulista. Nesse período, o advogado declarou-se socialista. Embora ele tivesse afirmado que jamais havia sido filiado do PCB, a polícia política apurou que ele fazia parte da célula comunista do partido e era considerado pelos agentes um comunista intelectual. Foi candidato a deputado estadual pelo PCB. No ano de 1946, Paranhos acolheu Anita Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes, em sua residência. A polícia acusou o advogado de ter instruído um grupo de comunistas a pichar os muros da casa de um juiz, o qual havia condenado um cliente seu acusado de praticar o comunismo.

Segundo o dr. Parente, o Escritório Paranhos era o mais antigo e, também muito conhecido por impetração de habeas-corpus em favor de presos comunistas.[*9] Mas havia outros, como o do advogado Lázaro Maria da Silva, e o escritório do dr. Almir Pazzianotto, mais tarde ministro do Trabalho. Havia também o escritório do dr. Christóvan Pinto Ferraz,[*10] advogado-chefe do Sindicato dos Metalúrgicos. Todos eles foram muito influenciados pelo estilo de advogar de Rio Branco Paranhos, conforme afirmou Parente.[*11]

Em dezembro de 1952, o advogado Christovan Pinto Ferraz constava na lista dos componentes da “Comissão Patrocinadora da 1º Convenção Paulista pela Anistia aos presos políticos”. Dois anos depois, Pinto Ferraz realizou um protesto juntamente com outros membros da “Associação Brasileira de Defesa dos Direitos dos Homens” contra a violência praticada pelos policiais. Em 1955, o jornal Notícias de Hoje publicou uma lista de líderes sindicais e jornalistas presos pela polícia de Jânio Quadros, entre eles, estava o advogado.

O Escritório Paranhos era um dos mais procurados e respeitados pelos trabalhadores. Para a juíza Vânia Paranhos,[*12] filha de Rio Branco, o advogado tinha um modo sui generis de atender seus clientes. Nesses plantões, não havia portas fechadas, apenas um salão amplo, localizado na Praça da Sé. No sindicato, o método era o mesmo. De acordo com a juíza, o advogado não atendia as pessoas individualmente, quando “ele fazia uma consulta, o que ele falava para um trabalhador servia para todos os que estavam ali ouvindo". Diariamente, compareciam cerca de 100, 120 pessoas. “Os plantões pareciam aulas de Direito, ele falava alto e discursava muito bem”, assegurou a juíza.

O depoimento de Vânia Paranhos é bastante revelador. Primeiro, é possível perceber a intensa procura dos trabalhadores para defender ou reivindicar seus direitos. Segundo, nota-se como os advogados, ao dar orientações processuais aos trabalhadores, atuavam como elo entre a classe trabalhadora e a JT. Outra característica a ser destacada diz respeito à personalidade de Rio Branco Paranhos. O fato de “falar alto e discursar muito bem” indica que o advogado reunia os requisitos necessários para que o trabalhador sentisse confiança em seu representante legal. Os próprios relatórios do Departamento Jurídico dos Têxteis, os quais serão analisados mais adiante, demonstram essa preferência dos sindicalizados pelo trabalho de Paranhos.

Luiz Tenório de Lima, líder sindical e presidente dos Trabalhadores da Indústria de Alimentação, entre outras atuações durante sua carreira,[*13] também relatou a importância dos plantões oferecidos pelo Escritório de Rio Branco Paranhos. De acordo com ele, muitas vezes, “formavam dois quarteirões de fila de trabalhadores para entrar no plantão dele”. Os trabalhadores diziam: “Está com o doutor Rio Branco Paranhos, o processo está ganho”.[*14] Essa fama adquirida por Rio Branco nos círculos operários, conforme foi retratado por Tenório, ajudava o sindicato a receber novos sócios, que buscavam no Departamento Jurídico, não só a esperança, mas também a certeza de que a vitória viria por meio de petições e sustentações proferidas nos tribunais pelo dr. Paranhos e outros advogados de confiança pertencentes ao grupo.

A admiração e o respeito dos trabalhadores por um advogado portador de uma personalidade mais “firme”, ou até mesmo considerada mais “radical”, foram confirmados pelas palavras de Antônio Chamorro, durante entrevista concedida ao pesquisador Fábio Munhoz. Para ele, a diferença entre o “homem comum” e o “homem letrado” estava no poder de quem proferia as palavras, pois se “um homem do povo falar alguma coisa, ele não é levado a sério pelos seus colegas, mas se o médico falou, o advogado falou, então...”. O mesmo acontecia no movimento sindical, afirmou Chamorro. A forte personalidade atribuída ao advogado Paranhos e o modo pelo qual essas características pessoais eram relevantes para o trabalhador foram assinaladas pelo líder sindical durante o seu depoimento:

Se eu tivesse que operar, e precisasse do Rio Branco e não conhecesse ele para julgar alguma coisa alheia, por educação, por instinto, vendo ele tratar as pessoas, eu não o procurava jamais. Porque é um monstro para lidar com o trabalhador de tão brutal que ele é. Dá vontade de dar um murro na cara. Mas ele tem um grande prestígio. A gritaria que ele apronta contra o trabalhador ali, e alguma vez ele tem razão, mas a forma não é correta. Muito mais ele grita no tribunal para defender o trabalhador. Ele morre ali esgotando a última vírgula. É um monstro nisso. É um homem de grande valor. Um advogado com os mesmos argumentos do Rio Branco, molengão, outro tipo, ele fala para o trabalhador: ‘Não, é tal’. E se o trabalhador for assistir a defesa do advogado e com aquela moleza e com grandes argumentos e o advogado perder a questão, o trabalhador sai com a noção que ele foi traído, mentido. E o Rio Branco perde naquela gritaria, o trabalhador sai contente, diz: ‘Pô, perdi, mas o meu advogado é macho, né?’. Tem essas coisas.[*15]

“Falar alto e discursar bem” não impressionavam apenas os trabalhadores, mas, também, os magistrados presentes nos tribunais. Segundo o doutor José Carlos Arouca,[*16] advogado de diversos sindicatos de trabalhadores, entre eles o Sindicato de Alimentação, Rio Branco Paranhos foi um dos pioneiros na mudança do tipo de linguagem usada na sustentação oral. Isso quer dizer que ele e, mais tarde, outros advogados trabalhistas optaram por usar um tipo de linguagem mais acessível ao público, o contrário daquele “juridiquês”, conforme descreveu José Carlos Arouca. Essa mudança consistia também em uma estratégia do doutor Paranhos para chamar a atenção dos juízes, conquistando, ainda, o respeito e a admiração dos trabalhadores, que passaram a se identificar mais com as audiências. O uso de um vocabulário mais utilizado pelas classes populares possivelmente estivesse relacionado com os discursos proferidos pelos políticos populistas da época, como Adhemar de Barros, por exemplo, já que Paranhos também galgava uma carreira política, conforme veremos mais adiante.

Para Arouca, Rio Branco, durante a década de 1960, era considerado o “homem da tribuna”, ou seja, era o mais respeitado advogado especializado em causas trabalhistas. Assim como Paranhos, o próprio Arouca e outros, como Agenor Barreto Parente, Ênio Sandoval Peixoto, e do lado patronal, o advogado Granadero Guimarães, contribuíram para modificar as características da sustentação oral nos tribunais, inspirados pelo contato com o movimento sindical. A preferência por uma sustentação oral menos eloqüente objetivava atrair o interesse do trabalhador e colocá-lo a par do que estava acontecendo no tribunal, além de chamar a atenção dos próprios juízes. Segundo Arouca, os advogados sofriam com a falta de atenção dos magistrados durante as audiências.

A respeito da biografia de Rio Branco Paranhos, pouco foi encontrado. Segundo a juíza Vânia Paranhos, desde muito jovem o advogado era filiado ao Partido Comunista. Começou sua carreira na área de Direito Criminal e, mais tarde, se tornou Juiz do Trabalho. No entanto, em pouco tempo ele abandonou a carreira de magistrado, pois achava o Tribunal tendencioso. A decepção com o cargo de magistrado e o envolvimento com a luta do movimento sindical o incentivaram a abrir o escritório de advocacia especializado em causas operárias, um dos primeiros da capital de São Paulo.

Em 1960, Rio Branco Paranhos foi eleito vereador da cidade de São Paulo, pelo Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).[*17] Durante uma de suas campanhas para vereador da cidade de São Paulo, Paranhos utilizou o jornal do Sindicato dos Têxteis de setembro de 1959 para esclarecer que, embora fosse candidato a vereador, mesmo eleito, pretendia dar prosseguimento aos trabalhos realizados no sindicato.[*18] Quando eleito deputado federal em 7 de outubro de 1962, ele e alguns candidatos tiveram seus registros indeferidos pelo Tribunal Regional Eleitoral. Os eleitos tiveram seus mandatos cassados, o que resultou na anulação de mais de 180 mil votos. Nesse episódio, Paranhos elaborou sua própria defesa no Supremo Tribunal Federal, mas não obteve resultados positivos.

Em 1964, após o golpe militar, o advogado passou a ser perseguido freqüentemente pela polícia, sendo que sua casa e seu escritório foram invadidos diversas vezes.[*19] No dia 13 de junho de 1964, o advogado teve suspensos seus direitos políticos.[*20] Depois de anos de perseguição, após sua última prisão, Paranhos adoeceu e faleceu em 1976.

Em uma das ocasiões em que ele foi detido, a juíza Vânia Paranhos revelou que os agentes do Deops o pressionavam para saber porque ele nunca havia atuado ao lado dos empregadores. Segundo ela, Paranhos dizia que o respeito adquirido ao longo de sua carreira devia-se ao fato de ele ter defendido apenas os trabalhadores, portanto, passar para o lado patronal seria uma incoerência e uma traição à sua ideologia política.

Os anos de 1950 até 1963 foram considerados o período mais profícuo da carreira profissional de Rio Branco Paranhos. Não seria possível verificar a quantidade de processos instaurados pelo advogado, mas o Departamento Jurídico indicava o número de consultas realizadas por ele, em média mais de mil consultas por ano. Em relação aos processos trabalhistas dos têxteis arquivados no TRT da 2º Região de São Paulo, grande parte dos autos tinha como representante dos trabalhadores o advogado Paranhos, além de representar outras categorias, como os trabalhadores químicos, metalúrgicos e da alimentação.

A experiência de vários anos de atuação na área do Direito do Trabalho lhe possibilitava, muitas vezes, prever as sentenças proferidas pelos magistrados. Além de conhecer intimamente diversos juízes e procuradores, conforme afirmou sua filha, Paranhos sabia exatamente como elaborar estratégias com base na legislação trabalhista e até onde poderia ousar. Paranhos conhecia o perfil de cada juiz e sabia o que eles pensavam e como agiriam diante de cada situação.

Segundo o líder sindical Luis Tenório de Lima,[*21] durante a década de 1940, Rio Branco Paranhos já era considerado um dos mais importantes advogados de sindicatos de São Paulo. “Não acontecia uma greve em São Paulo que a turma não procurava o Rio Branco”, afirmou o sindicalista. Para Tenório, Rio Branco Paranhos era um “advogado político”.

Uma das divergências entre Paranhos e os dirigentes do PCB, já apontado pela juíza Vânia Paranhos, foi também relatada por Tenório. Os comunistas costumavam classificar a CLT como cópia da Carta del Lavoro, ou seja, um produto do governo fascista. No entanto, para o líder sindical, “quem fazia essa comparação, simplesmente nunca havia lido a Carta”. Ambas, segundo ele, eram bem distintas. Esse posicionamento dos dirigentes comunistas contra a CLT e contra a JT acabava prejudicando a organização dos trabalhadores, afirmou Tenório.

Em uma ocasião, o PCB fez um relatório com o intuito de entregá-lo ao governo da República, relatou Tenório. No documento, os comunistas acusavam o governo de fascista. Rio Branco Paranhos se mostrou contra a redação do relatório e interveio: “Nós vamos reivindicar uma coisa para o governo, então, não podemos dizer que ele é fascista, não é por aí. Nós temos que dizer que a lei é fascista”. Essa passagem relatada pelo líder sindical demonstra parte do método utilizado pelo advogado, que calculava as palavras corretas visando conquistar o respeito das autoridades públicas para que o movimento operário pudesse atuar dentro dos parâmetros legais.

A história da greve organizada pelos trabalhadores de cinema em meados da década de 1950, contada por Tenório, aborda a maneira peculiar de militar do advogado Paranhos. O líder sindical assistia a assembléia do sindicato, quando chegou o advogado. A sua chegada causou reboliço entre os trabalhadores, sendo que um deles exclamou: “Chegou o Rio Branco, chegou Deus!”. Os manifestantes queriam fazer “greve de qualquer jeito”, afirmou o líder sindical. Mas Rio Branco procurava outra solução, embora não se posicionasse diretamente contra os trabalhadores. Todos que iam discursar contra a greve eram vaiados pela categoria. De repente “chegou um baiano e disse assim: ‘Vocês querem fazer greve? Eu estou de acordo com a greve, mas vou dizer para vocês aqui: a maioria que está entusiasmada aqui hoje vai furar a greve amanhã, não vai participar de piquete. E eu já aviso: o Doutor Rio Branco irá preparar a minha defesa, porque eu vou sair armado amanhã e quem furar a greve eu vou dar um tiro na cabeça”, narrou Tenório. Para ele, esse foi um dos episódios pitorescos do movimento sindical naquele período.

Luiz Tenório de Lima relatou outro fato marcante na carreira de Paranhos. Segundo ele, o advogado só “pegava causas que ele sabia que iria ganhar”. Diante disso, o líder sindical e presidente da Federação dos Trabalhadores da Indústria de Alimentação queria reivindicar a remuneração noturna para os operários que trabalhavam em turnos alternados, ou seja, havia uma turma que trabalhava uma semana de noite e outra semana de manhã. A intenção era entrar com um processo contra uma grande empresa do setor alimentício. Luiz Tenório de Lima pediu para Rio Branco Paranhos defender o caso. No entanto, o advogado afirmou que tal reivindicação não era possível, explicando que “a lei estabelecia o seguinte: onde houve a mudança de turno não cabia o pagamento do adicional noturno”. Contrariado, o líder sindical resolveu seguir em frente, sem o apoio de Paranhos. Chamou, então, o advogado Walter Sampaio para defender o caso. Luiz Tenório, que afirmou estudar a CLT e a Constituição na época, encontrou um artigo na Constituição que dizia: “O salário noturno tinha que ser maior que o diurno”. Havia, então, uma contradição entre a Constituição e a CLT. A sentença resultou em vitória para os trabalhadores. “Foi uma festa”, relembrou Luiz Tenório, afirmando que, mesmo obtendo algumas vitórias, “todos esses processos na JT sempre foram uma luta, nunca foi uma coisa pacífica como a gente gostaria que fosse”.

Luiz Tenório de Lima revelou, ainda, mais uma de suas histórias a respeito dos advogados de trabalhadores. Desta vez, o personagem era o advogado José Carlos Arouca. O líder sindical e o advogado foram participar de uma assembléia de trabalhadores que pretendiam paralisar uma usina de açúcar, localizada na cidade de Nova Europa, próximo ao município de Bauru. O delegado de polícia avisara aos trabalhadores que iria acabar com a greve “no pau”. Por fim, quando o líder sindical e o advogado chegaram ao cinema onde seria realizada a assembléia, um camponês mostrou de longe quem era o “temido” delegado de polícia. Foi quando Arouca olhou para a autoridade e disse: “Ô Zé Pelota, o que você tá fazendo aqui?”! Segundo Tenório de Lima, o conflito fora encerrado naquele momento: “O delegado ficou tão sem graça, parou de revistar o pessoal e sumiu”. Arouca acabou com a autoridade do delegado, afirmou Tenório. Depois ele explicou: “eles foram colegas de faculdade, no tempo em que o ‘temido’ delegado era conhecido por esse apelido”.

O advogado sindical José Carlos Arouca começou a estagiar no Clube 11 de Agosto da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em meados de 1957. Segundo ele, não havia muita simpatia dos estudantes pelo Direito do Trabalho, embora houvesse uma militância política forte nessa época. Recém-formado, Arouca recebeu um convite do advogado Walter Sampaio, o qual já havia advogado no Partido Comunista, para trabalhar em seu escritório. Sampaio era advogado do Sindicato dos Metalúrgicos, entre outros, e atuava em todos os sindicatos apoiados pelo PCB. O escritório de advocacia do dr. Sampaio proporcionou ao jovem advogado o contato com os principais líderes sindicais da época, entre eles Afonso Delellis, José de Araújo Plácido, Remo Forli e Luiz Tenório de Lima, levando-o a se especializar em Direito Sindical. Mais tarde, Arouca começou a trabalhar na Federação dos Trabalhadores da Alimentação. Além do contato com os principais líderes sindicais do movimento operário do estado de São Paulo, a carreira profissional de Arouca também foi bastante influenciada pela convivência com os advogados da “primeira geração CLT”. Muitas vezes esses profissionais o apresentavam pessoalmente aos juízes, comentou o advogado. Em 1964, Arouca prestou o concurso para Juiz do Trabalho, obtendo um dos primeiros lugares. Entretanto, o advogado foi impedido de ocupar o cargo por causa de seu histórico de militância sindical.[*22]

Essa passagem da carreira profissional do advogado José Carlos Arouca indica aspectos relevantes das mudanças realizadas na JT depois da instalação da ditadura. Embora as estatísticas publicadas pelo TST indiquem aumento constante de processos impetrados na JT,[*23] percebe-se que a composição dos magistrados passou a ser rigorosamente controlada.

Arouca, em seu depoimento, reforçou a importância do Departamento Jurídico dos sindicatos. Segundo ele, havia aqueles advogados “burocratizados”, ou seja, os que tinham horário certo para entrar e sair do sindicato e não se envolviam com os assuntos do trabalhador. Para Arouca, o “advogado tem que ser politizado, não politizado no sentido de política partidária. Mas ele tem que saber porque que ele está trabalhando no sindicato”. Na verdade, era mais do que isso. Ressaltou: “Ele tinha que conhecer qual é a realidade, quais são as aspirações dos motoristas, por exemplo, quais são os problemas dos motoristas e assumir a defesa dos trabalhadores como um todo”.[*24] Não obstante, observa-se que a função exercida pelos advogados sindicalistas exigia uma certa consciência a respeito dos problemas da classe trabalhadora, bem como das lutas miúdas travadas entre patrões e empregados localizadas no chão de fábrica. Assim, Arouca reproduziu uma das frases proferidas pelo seu colega de profissão, Pinto Ferraz: “Existem dois tipos de advogados. Aquele que vem aqui, faz a audiência e vai embora; o outro é aquele que vai fazer carreira de advogado no sindicato”.

Uma das responsabilidades dos advogados sindicais era defender a retirada do ato de suspensão do trabalhador. Quando o empregado recebia uma suspensão na fábrica, ele perdia a remuneração dos dias suspensos.[*25] Para os advogados o processo de suspensão de um trabalhador era demorado, além de ser inviável financeiramente; muitos deles, como o Rio Branco Paranhos, nem cobravam por esse tipo de processo. Mas, segundo Arouca e a juíza Vânia Paranhos, os advogados sindicais preparavam essas petições com o mesmo rigor de um processo de reintegração ou de estabilidade. Arouca comentou que o advogado Rio Branco chegou até mesmo a escrever um artigo que dizia o seguinte: “Quem, a não ser o advogado do sindicato, que faz um processo de suspensão preliminar?”.

Logo após a instalação da ditadura militar, em março de 1964, o escritório montado por um grupo de advogados sindicalistas, localizados no centro da cidade de São Paulo, foi invadido pelos agentes do Deops.[*26] Acusados de abrigarem o Comitê Municipal do Partido Comunista Brasileiro, os advogados Rio Branco Paranhos, José Carlos de Aquino, José Carlos da Silva Arouca e Andalício Antunes Pereira foram perseguidos e obrigados a abandonar suas atividades naquele período.

O início dos anos 1960 foi marcado pela ascensão do movimento sindical e pelo desejo e esperança dos trabalhadores e sindicalistas pelas reformas de base, inspirados pelos movimentos em defesa da democracia e do nacionalismo. O golpe militar ocorrido em 1964 veio interromper qualquer possibilidade de alcance dessas metas, desarticulando o movimento dos trabalhadores.

Nesse sentido, conhecer os profissionais do mundo jurídico, em especial os advogados dos sindicatos de trabalhadores pode contribuir para a análise dos conflitos entre trabalhadores, sindicatos e industriais na Justiça do Trabalho, devido ao papel desempenhado por esses personagens na elaboração de estratégias de luta, fundamentadas em procedimentos legais, contribuindo para a defesa e garantia dos direitos trabalhistas.

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Mestranda em História Social do Trabalho pela Universidade Estadual de Campinas.
Ver: Pacheco, Jairo Queiroz. Guerra na fábrica: o cotidiano operário fabril durante a Segunda Guerra. O caso de Juiz de Fora-MG. Dissertação (Mestrado), Universidade de São Paulo, 1996; Souza, Samuel Fernando. Na esteira do conflito. Trabalhadores e trabalho na produção de calçados em Franca (1970-1980). Dissertação (Mestrado em História), Universidade Estadual Paulista, 2003; Priori, Ângelo. O protesto do trabalho: história das lutas sociais dos trabalhadores rurais do Paraná: 1954-1964. Maringá, Eduem, 1996; Biavaschi, Magda Barros. O Direito do Trabalho no Brasil, 1930-1942: a construção do sujeito de direitos trabalhistas. Tese de doutorado em Economia, Universidade Estadual de Campinas, 2005; Rinaldo J. Varussa, Trabalho e Legislação: Experiências de Trabalhadores na Justiça do Trabalho (Jundiaí – SP, décadas de 40 a 60). Tese de Doutorado, PUC, São Paulo, 2002; Mendes, Alexandre Marques. Classe trabalhadora e Justiça do Trabalho: experiências, atitudes e expressões do operário do calçado (Franca-SP, 1968-1988). Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade Estadual Paulista, 2005; Morel, Regina Lúcia M. e Mangabeira, Wilma. “Velho” e “novo” sindicalismo e uso da Justiça do Trabalho: um estudo comparativo com trabalhadores da Companhia Siderúrgica Nacional. Dados, v. 37, n. 1, 1994.
A respeito da idéia de “justiça menor” ou “cultura do desprestígio” da Justiça do Trabalho ver: Gomes, Ângela de Castro. Retrato falado: a Justiça do Trabalho na visão de seus magistrados. Revista de Estudos Históricos, nº 37, jan-jun 2006.
Este artigo é parte do trabalho de pesquisa de mestrado intitulado “Trabalhadores têxteis e metalúrgicos a caminho da Justiça do Trabalho: leis e direitos na cidade de São Paulo – 1953 a 1964” , realizado com o apoio da Fapesp.
Segundo o setor de informações do Deops, o advogado Ênio Sandoval Peixoto iniciou suas atividades comunistas no ano de 1946, quando ainda era estudante. Foi professor do Colégio Anglo que, segundo os policiais, “desenvolveu um trabalho de catequese comunista com seus alunos”. No ano de 1950, ele foi preso por pichar paredes. Um ano depois, o advogado participou do Movimento dos Juristas Democráticos”. No mesmo ano, foi exonerado do cargo de professor da Faculdade de Filosofia por ter apresentado uma tese comunista para o doutoramento. Peixoto também participou do III Congresso Sindical Mundial realizado em Viena, Áustria, no ano de 1953. Na década de 1950, ele advogava junto com os colegas Rivadavia Mendonça, Rubens Mendonça, Altivo Ovando e Walter Sampaio, todos na área do direito trabalhista, fazia parte do Comitê Municipal de São Paulo do PCB. Prontuário 91844, Deops/ APESP.
Relatos retirados do artigo escrito pelo próprio advogado Ênio Sandoval Peixoto intitulado “Entre o Memorial e o Imemorial”, no jornal Tribuna do Advogado Trabalhista de julho de 2005, p.5.
O advogado Agenor Barreto Parente sofreu um inquérito policial juntamente com o advogado Ênio Sandoval Peixoto e Clara Maltick, comerciante, no ano de 1956. Eles eram sócios de uma livraria que, segundo o Deops, fazia propaganda marxista comercializando e importando revistas e livros comunistas. Parente foi detido três vezes, nos anos 1946, 1949 e 1951. Prontuário 98359. Deops/ APESP.
Entrevista de Antônio Chamorro concedida ao pesquisador Fábio Munhoz, sem data, Fundo Fábio Munhoz, CEDEM, Unesp.
Informações retiradas do prontuário 35908, Deops, APESP.
Ver prontuário 35908, Deops, APESP.
Prontuário 50-Z-9-25546, Deops, APESP.
Depoimento Agenor Barreto Parente, op.cit.
Depoimento de Vânia Paranhos concedido à autora no dia 24 de abril de 2006. A depoente, quando recém-formada, chegou a trabalhar no escritório Rio Branco Paranhos em meados da década de 1970.
Luiz Tenório de Lima também foi um dos fundadores do Dieese, diretor da CNTI, presidente do Sindicato dos Trabalhadores da Indústria de Laticínios e Derivados, diretor do primeiro Pacto de Unidade Inter-sindical de São Paulo em 1953, fundador do Comando Geral dos Trabalhadores. Logo após o golpe de 1964, foi preso e condenado a trinta anos de prisão. Mais tarde, essa pena foi reduzida para quatro anos e, posteriormente, foi indultado por Decreto Presidencial. Prontuário 50-Z-O (146) p.184. Dops, APESP.
Depoimento de Luiz Tenório de Lima no dia 1º de agosto de 2006, concedido à autora.
Transcrição da entrevista de Antonio Chamorro, op.cit.
Depoimento de José Carlos Arouca, realizado no dia 25 de maio de 2006 concedido à autora.
Inquérito Policial nº 856/65.
Jornal O Trabalhador Têxtil, setembro de 1959, nº 29, ano II, p.5.
Paranhos também atuou na defesa dos trabalhadores rurais no qual ele defendia a sindicalização urgente desses trabalhadores, conforme demonstrou nos seus textos encontrados no arquivo particular.
“Caderneta de direitos caçados”. Prontuário 50-E-03, Deops, APESP.
Depoimento de Luiz Tenório de Lima, op.cit.
Depoimento José Carlos Arouca, op.cit.
Mais adiante serão analisadas as estatísticas publicadas pelo TST.
Depoimento José Carlos Arouca, op.cit.
Segundo o advogado Fernando de Mattos, colaborador de um periódico bastante apreciado pelos industriais, “além da perda da remuneração, a suspensão acarretava a não contagem para o tempo de serviço dos dias de suspensão, e nem para efeito de férias e repouso remunerado, além da influência nos aumentos, gratificações e promoções”. O Observador Econômico e Financeiro, agosto de 1957, nº 258, p.58.
Inquérito policial nº856/65, Fundo Deops, APESP.