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Artigo publicado na edição nº 28 de dezembro de 2007.
As “bexigas” e a introdução da vacina antivariólica em São Paulo

Luís Soares de Camargo

Dentre as várias enfermidades que assolaram a antiga Capitania de São Paulo, nenhuma delas causou mais temor do que a varíola. Conhecida popularmente como bexigas, este mal perseguiu os paulistas desde os primórdios da colonização, ou pelo menos desde 1564, época em que ocorreu a sua primeira manifestação na então Vila de Piratininga. Doença antiga, naquela oportunidade as bexigas teriam atacado com especial virulência os poucos moradores, produzindo algumas mortes e deixando outros tantos temporariamente incapazes. Para justificar o estado de penúria instalado por conta da epidemia, explicaram os vereadores naquela ocasião que “... as doenças foram muitas e as bexigas mataram muita gente e os que escaparam estão ainda que não podem trabalhar.”[*1]

Ao que tudo indica, a ocorrência deste surto em São Paulo foi conseqüência da primeira grande epidemia de varíola anotada no Brasil que, iniciada em Salvador em 1561, atingiu seu clímax justamente em 1563, ocasião em que matou cerca de 30 mil índios até então ilesos. De fato, frente ao pavor causado pela doença que nunca tinham visto e diante da tragédia que se lhes abatera, registraram-se muitos casos de índios que abandonavam seus companheiros atacados e fugiam espavoridos, dando grandes voltas nas matas para despistar o demônio da varíola.[*2]

De passagem por São Vicente, José de Anchieta escrevera ao seu superior na Europa, o padre Lainez, e, ao dar alguns detalhes sobre esta epidemia, deixou um relato dramático de como a enfermidade atacava o corpo:

Cubre-se todo el cuerpo, de pies a cabeça, de una lepra mortal que parece cuero de caçon y ocupa luego la garganta por dentro, y la lengua, de manera que com mucha dificuldad se puede confesar, y en tres o quatro dias muere. Quebra-se les la carne, pedaço a pedaço com tanta podredumbre de materia que salle dellos un terrible hedor, de manera que acuendele las moscas, como a carne muerta y pudrida y sobre ellos y les ponen gusanos que sino les socorriessem vivos los comerian.[*3]

Desde então, as bexigas não mais deixaram de “visitar” o Brasil. Em São Paulo, e após esta primeira epidemia de 1563-64, a doença não deu mais trégua, sendo raros os períodos em que nenhum caso foi anotado. No século XVIII, por exemplo, verificaram-se grandes surtos desse mal em 1702, 1723, 1724, 1727, 1729, 1730, 1732, 1735, 1741, 1744, 1761, 1768, 1775, 1780, 1784, 1790 e 1798. Não por outro motivo, a simples menção ao nome “bexiga” já causava muita apreensão entre os paulistas, como observou o médico português João Rodrigues de Abreu em 1714:

Na cidade de São Paulo e em muitas outras do País dos Paulistas (...) são morbos endêmicos as bexigas e é rara a pessoa a quem cometam que não matem. São tão medrosos os seus habitantes desta queixa que até desconfiam de ouvir falar nela.[*4]

Cerca de cem anos depois desse relato, o padre Manuel Aires de Casal também teve a oportunidade de observar o “pavor que os paulistas tinham das bexigas” e reconheceu que este mal

é o que mata a maior parte dos que morrem, quando delas são atacados. Em se dizendo a um doente que seu mal são bexigas, ei-lo já abatido, e sobremaneira descorçoado: muitos nem querem sujeitar-se a remédios, nem tomar alimentos, persuadidos que não podem vencer a moléstia.[*5]

Era este um nome maldito e que causava muita angústia. Mas não por acaso, como fizeram ver os vereadores paulistanos ao governador da Capitania em 1798:

O horror que os povos desta capitania têm a esta moléstia não provem de um terror pânico, nem nesta parte tem vossa excelência que desabusá-los: ele provém de uma longa experiência, que tantas vezes se tem feito funestas aos nossos olhos.[*6]

Por outro lado, e numa época em que a etiologia das doenças não era de todo conhecida, acreditava-se as emoções negativas (como o medo, a angústia etc.) era um forte agravante para progresso das epidemias. Nesse sentido, e diante de um novo surto de bexigas que se fizera presente na Capital em 1803, esclareceu o médico Mariano José de Amaral que.

tem durado semelhante contágio três meses. Do que parece se deve concluir que o terror pânico e a forte impressão que nos ânimos dos habitantes deste país [São Paulo] faz o contágio varioloso, contribui não pouco para o funesto êxito de tão mortífera doença.[*7]

Uma questão desvendada: a introdução da vacina antivariólica em São Paulo

Em relação a esta epidemia de 1803, uma questão de suma importância merece ser destacada, uma vez que o mesmo médico Mariano José de Amaral recebeu a incumbência do governador Franca e Horta para realizar os testes necessários com a então recém-descoberta vacina jenneriana[*8] e, nesse particular, tenho algo a acrescentar nas análises e discussões que se precederam sobre a introdução de tal preservativo no Brasil e, particularmente, em São Paulo.

Considerando as diferenças entre variolização e vacina,[*9] muitos autores chegaram a um consenso de que a vacina propriamente dita (a jenneriana) foi introduzida no Brasil em 1804 por iniciativa do marechal Felisberto Caldeira Brant (marquês de Barbacena), que enviou a Lisboa sete escravos e um médico a fim de que a vacina fosse transmitida, braço a braço, até a Bahia. Outros estudiosos, porém, afirmam que esta iniciativa de Caldeira Brant, apesar de meritória, não teria sido a primeira, uma vez que as vacinas já estariam em uso no Rio de Janeiro desde 1798.[*10] Para São Paulo as datas são mais imprecisas ainda, e a sua determinação percorre um longo período, desde um impreciso final do século XVIII até a certeza de que em 1819 já havia vacinação pública na cidade. Outros, ainda, estabelecem o período entre 1805 e 1811, mas para não correr grandes riscos, a grande maioria prefere mesmo dizer que a introdução da vacina em São Paulo teria ocorrido no primeiro quartel do século XIX.[*11]

Pouco mais, pouco menos, pode-se imaginar que a definição de datas mais precisas não seja de muita importância. Porém, não é o que ocorre com a introdução da vacina jenneriana no Brasil, processo este relevante para a história da medicina e da saúde.

Para o caso de São Paulo, analisaremos o processo inicial da introdução da vacina através da troca de correspondência entre o físico mor da capitania, Mariano José do Amaral, e o governador Franca e Horta, ocorrida entre os anos de 1803 e 1806.[*12] Nesse caso, e ao contrário dos autores que já trataram dessa questão, marcarei uma posição, pois defendo que a vacina jenneriana foi aplicada pela primeira vez em São Paulo no ano de 1803.

Antes dessa data, o terreno é ainda muito nebuloso, pois vacina e variolização se confundem nas linhas dos antigos documentos. Sabe-se que o dr. Edward Jenner publicou suas conclusões sobre a vacina (cowpox) em 1798, mas seus estudos remontavam à década de 1770; antes dessa descoberta, o método utilizado era o da variolização, também chamado de inoculação. E eis aqui um grande problema, ou seja, as fontes para aquela época (finais do século XVIII) utilizam quase sempre o termo “inoculação” que, atualmente, pode causar um certo embaraço e ser entendido como vacina e não como variolização. Por outro lado, não podemos descartar totalmente a hipótese de que, num primeiro momento, a vacina também tenha recebido o nome de inoculação, e isso pela relativa semelhança entre os métodos. Vamos dar um exemplo do problema: em dezembro de 1798, o governador da Capitania, Castro e Mendonça, escreveu uma carta à Câmara de Santos para tratar da mais recente epidemia de varíola que “reinava” naquela cidade. Nesta missiva ele diria que

o sistema da inoculação [grifo meu] era aqui mais conveniente que em qualquer outra parte; a nossa corte e toda a Europa o tem adotado, mas é preciso que os homens primeiro se desabusem, ou que algum bom cidadão, com seu exemplo, faça conhecer a vantagem que dela resulta e felicite assim a raça vindoura.[*13]

Estaria o governador tratando da variolização ou da vacina jenneriana? Pela proximidade de datas entre esta carta e a descoberta de Jenner, poderíamos supor que se tratasse mesmo de variolização, lembrando Chalhoub (1996) que tal precaução ganhou força em Portugal e no Brasil somente a partir de 1790, às vésperas da propagação do método jenneriano.[*14] Nesse sentido, a mensagem de Castro e Mendonça pode ser lida a partir dessa explicação. Mas, o caso complica-se a partir daí. Em 1799, por exemplo, chega a São Paulo uma ordem vinda de Lisboa e dirigida ao mesmo governador. Esta, por sinal, recebeu o título de “Sobre a inoculação das Bexigas” e dizia o seguinte:

Constando aqui os grandes estragos que as bexigas tem causado e continuarão a causar em todo o Brasil, ordena o Príncipe Regente Nosso Senhor, que V.S.ª procure introduzir, e promover por todos os meios nessa capitania a inoculação principalmente nos meninos negros e índios, pois que tem mostrado a experiência ser este o único meio, e o verdadeiro preservativo contra o terrível flagelo das bexigas [grifo meu], que fazem diminuir tão consideravelmente a população desse continente. Deus guarde a V. S.ª Palácio de Queluz em 29 de Julho de 1799 – D. Rodrigo de Souza Coutinho.[*15]

A citação de que a inoculação era o único e verdadeiro preservativo contra o mal, impõe uma dúvida: esta inoculação se referia a qual método? O signatário da ordem, o poderoso e ilustrado ministro português D. Rodrigo de Souza Coutinho (futuro Conde de Linhares), encabeçava o conjunto de conselheiros de D. João VI e, nessa condição, mantinha estreitas ligações com a Inglaterra. Além do mais, ele acumulava o cargo de ministro com o de inspetor geral do Gabinete de História Natural e do Jardim Botânico da Ajuda, ou seja, ele era um homem que se interessava pelas ciências.[*16] Por tudo isso, seria muito estranho o fato de D. Rodrigo não conhecer os estudos de Jenner. Mas, de qualquer forma, e caso se tratasse mesmo da vacina, este documento nos mostra que a mesma não estava ainda sendo utilizada em São Paulo, posto que as ordens ou recomendações eram para se introduzir o preservativo na capitania. Este fato, aliás, pode ser confirmado a partir de outro documento, uma carta do governador Castro e Mendonça, dirigida à Câmara Municipal paulistana em maio de 1800:

ao paternal e indefeso cuidado do nosso amabilíssimo príncipe não tem esquecido prevenir estas causas do atraso da povoação, mandando já que as Câmaras imponham um tributo para a conservação de médicos e cirurgiões, e já recomendando encarecidamente a introdução do sistema da inoculação das bexigas [grifo meu] para desta sorte se evitarem os terríveis e sempre lastimosos estragos que este contágio costuma ocasionar. Ora, não sendo moralmente possível praticar a inoculação em todas as pessoas adultas de que se compõe esta cidade e seu termo, tomo o meio de ocorrer aos conhecidos danos que esta epidemia traz consigo, consiste em praticar este sistema nos pequenos e evitar que grasse o contágio entre os grandes.[*17]

Ou seja, fosse vacina, fosse variolização, é certo que a “inoculação” (pelo menos de maneira oficial e sistemática) não era ainda praticada em São Paulo. Posto dessa maneira é que faço a opção pelo ano de 1803 como o marco para a introdução da vacina em terras paulistas e, em assim sendo, podemos supor que antes disso ela já estaria em uso em outras cidades como Rio de Janeiro ou Salvador.

Inicialmente, vamos nos aproximar do contexto ou dos acontecimentos que se fizeram presentes naquele período em São Paulo, ocasião em que a vacina jenneriana foi aplicada primeira vez. De fato, em março de 1803 a cidade se via às voltas com uma nova epidemia de varíola; esta, aliás, imputada à chegada de um comboio de negros novos vindos do Rio de Janeiro e que seguiam para a Capitania do Mato Grosso.[*18] Em situações como esta, e desde o século XVIII pelo menos, adotava-se a quarentena para os africanos recém-chegados. Entretanto, e como nos mostram os fatos ocorridos em 1803, mesmo com a experiência adquirida, ou já com um certo conhecimento da doença, estas não redundavam em ações permanentes, mostrando-nos que as determinações eram sempre relaxadas logo após a passagem do mal.

O caso, porém, é que esta epidemia ocorrida em 1803 foi uma das mais graves, permanecendo ativa de março a junho. Somente no hospital que funcionava no bairro do Bexiga, por exemplo, deram entrada 39 pessoas “entre escravos, libertos e brancos”, dos quais dois morreram. Muitos outros, a grande maioria dos doentes diga-se de passagem, não foi ali tratada, lembrando o médico Mariano que, nesse caso, “o número de mortos superou o dos que sobreviveram.”

No relatório que preparou para o governador, o médico detalhou em minúcias as características da varíola, a evolução dos casos e, também, mencionou as primeiras experiências com a vacina jenneriana em São Paulo.

De fato, a gravidade do surto epidêmico de 1803 alertou o então governador Franca e Horta para o novo tratamento. Afirmo que a vacina já estava em uso no Brasil desde pelo menos 1803 porque, na seqüência de sua aplicação em São Paulo, disse o mesmo físico, Mariano José do Amaral, em seu relatório que a humanidade devia uma eterna gratidão aos médicos que a trouxeram, e com especial “particularidade ao imortal Jener”,[*19] ou seja, referia-se ele sem qualquer dúvida à vacina jenneriana e não mais ao método da variolização.

Através desse documento, hoje sob a custódia do Arquivo do Estado de São Paulo, ficamos sabendo que o pus vacínio utilizado em São Paulo em 1803 era proveniente de Londres e Lisboa, onde fora coletado entre fevereiro e março do mesmo ano. No dia 17 de novembro de 1803 a vacina foi aplicada pela primeira vez em dez escravos, todos menores de idade, no hospital dos bexiguentos da chácara do Bexiga. Dessa primeira experiência, ficou o seguinte relato:

em novembro do mesmo ano [de 1803] chegaram a esta cidade uns vidros de pus Vacínio, de fevereiro e março do mesmo ano, vindos de Londres e de Lisboa. Vacinaram-se logo dez escravos de S. A., todos de menor idade em o dia 17 do dito mês; em nenhum [deles] apareceu o menor sintoma, a exceção de dois, nos quais passado o quarto dia, entrou a inflamar-se o braço, com febre tosse e dores de cabeça, estado em que permaneceram até o sexto para o sétimo dia, quando todo aquele aparato desapareceu, caindo-lhes a escara do braço sem sinal de matéria. E repetindo-se a vacinação em todos eles, onze dias depois da primeira, nenhuma novidade apareceu nos dois acima ditos, entretanto que alguns dos outros logo no segundo dia e lugar picado, parecia elevar-se; mas tal era o prazer comum, tal o desejo de afugentar o pernicioso contágio variólico, que continuou-se a vacina terceira e quarta vez, porém sem frutos, terminando-se estas tentativas a 28 de dezembro do mesmo ano.[*20]

Finalizada essa primeira experiência com a vacina em dezembro de 1803, em setembro de 1804 foi recebida uma nova dose que, dessa vez, havia sido recolhida na Bahia entre os meses de abril, maio, junho e julho do mesmo ano. Entretanto, e como ocorreria diversas vezes daí por diante, elas não produziriam nenhum sinal nos escravos vacinados, demonstrando que ou o remédio já estava enfraquecido nos seus efeitos, ou mesmo corrompido pela dificuldade e demora no transporte.[*21]

Estando apenas em teste durante esse período, posto que aplicadas em poucas pessoas, as vacinas de nada adiantaram para obstar a entrada de uma nova epidemia que apareceu em abril de 1805 e, outra vez, imputada à passagem e estadia na cidade de uma leva de “escravatura vinda por terra da cidade do Rio de Janeiro” com destino a Cuiabá. Pela ocorrência sucessiva de epidemias em 1803, 1804 e 1805 e já conhecendo o método jenneriano, o governador Franca e Horta enviou, no segundo semestre de 1805, diversos

escravos à cidade da Bahia para que, vacinando-se uns após os outros, chegasse enfim – como se conseguiu – a matéria fresca e capaz de preservar do triste flagelo das bexigas aos povos da capitania e desta cidade de São Paulo.[*22]

Iniciada, portanto, a experiência com a vacina em 1803 e 1804, em 1805 já havia material suficiente para se tentar a propagação. E foi o que ocorreu: regulamentações foram expedidas tornando-a obrigatória; na capital, designou-se a própria sede do governo, o Palácio dos Governadores no Pátio do Colégio, como local para a vacinação e, nas vilas do interior, elas deveriam ser aplicadas nas Câmaras Municipais ou nas igrejas. Guardadas as devidas proporções para aquela época, bem como as reações contrárias ao novo método, pode-se dizer que a vacinação se fez com certa intensidade. Nesse aspecto, o governador Franca e Horta determinou, já em 1805, que os capitães-mores de todas as vilas reunissem os chefes de família com todos os parentes, agregados e escravos, para que se deixem vacinar. Apesar dessas ordens, sabe-se que a vacinação nunca foi popularmente aceita. De qualquer forma, e além das ordens expedidas pelo governo, tínhamos aqui um outro fator preponderante de convencimento: o medo do contágio, especialmente em épocas de epidemias que, como o visto, quase que anualmente se faziam presentes na cidade. Assim, em fevereiro de 1806 já era possível elaborar um quadro das pessoas vacinadas:

Quantidade de pessoas vacinadas na Capitania de São Paulo entre finais de 1805 e até janeiro de 1806[*23]

São Paulo (Capital) .............    1.250
Vilas:
   Parnaíba............................    2.056
   Sorocaba...........................    1.600
   Itapetininga.......................       882
   Santos...............................       642
   Iguape...............................       637
   Castro................................       623
   Itu......................................       597
   Lorena...............................       585
   Ubatuba.............................       564
   Atibaia...............................       403
   Paraitinga..........................       398
   Pindamonhangaba............       245
   São Vicente.......................       221
   Itanhaém............................      191
   Itapeva...............................      187
   Jundiaí...............................      175
   Guaratinguetá....................      155
   São José............................      105
   Jacareí...............................        68
   Arassariguama...................        56
Total..................................... 11.640

A considerar verdadeiros estes números (ou pelo menos próximos da realidade), uma outra dificuldade se impõe, qual seja, a verificação da percentagem das pessoas vacinadas em relação ao total da população da cidade. Maria Luiza Marcílio, por exemplo, aponta para o ano de 1798, uma população de 21.304 habitantes para todo o município, dividindo-se estes moradores entre as paróquias da Sé (10.542) e as demais (10.762). Já para o ano de 1836, a autora calcula o total dos moradores em 21.933 e, da mesma forma, espalhados entre a Sé (5.568) e as demais paróquias (16.365). De fato, Marcílio alerta para a consideração desses números, bem como para a grande diferença entre os anos de 1798 e 1836 para a paróquia da Sé (10.542 e 5.568 habitantes, respectivamente), lembrando aqui as muitas divisões ocorridas no território abrangido pela antiga Freguesia da Sé.[*24] Levando em consideração este problema, arrisco dizer que, entre 1805 e 1806, a população do município deveria estar por volta de 21.500 habitantes. Chega-se, então, a uma média entre 5,5 a 6% o total da população vacinada até janeiro de 1806. Nesse sentido, julgo serem esses os números mais aproximados para a época.

Quanto ao método utilizado – a vacina braço-a-braço –, soube-se mais tarde ser um caminho muito propício para a transmissão de outras doenças. Mas, nesses primeiros tempos, disso não se tinha conhecimento ou, pelo menos, não da maneira como hoje está esclarecido. Para os vários autores que estudaram o tema, o consenso geral das análises indica que o povo percebia a não imunização através da vacina, e isto ocorria por diversas razões como a falta de conhecimentos dos profissionais que as aplicavam, à corrupção do próprio pus, que não resistia ao tempo decorrido para o seu transporte, ou mesmo ao enfraquecimento de suas propriedades pela transmissão constante. Diante desses problemas – alguns deles conhecidos já naquele momento e outros não – os médicos reclamavam que “espalhou-se que as vacinas não preservam das bexigas naturais” e isto, na opinião dos mesmos, não passava de fantasias “de um povo ainda bárbaro, incrédulo diante de tão interessante descoberta e antecipadamente tímido sobre tudo o que respeita a bexigas naturais.”[*25]

Apesar desses percalços, o fato é que as vacinas alcançaram relativo sucesso, como aponta Chalhoub também para o Rio de Janeiro. Lembra este autor, porém, que a partir da década de 1830, houve um sensível declínio dessa prática naquela cidade, fato este que também observei para São Paulo. Sobre as causas desse declínio na vacinação, todos os analistas concordam que foram dois os motivos mais preponderantes. O primeiro deles era imputado às dificuldades impostas pela necessidade de se importar a linfa diretamente da Europa, uma vez que o Brasil ainda não dominava a técnica de produção, o que somente ocorreria em 1887.[*26] Ultrapassada essa barreira – que incluía certamente o grande tempo decorrido durante o transporte nem sempre em boas condições até a inoculação – ocorria, já em território nacional, um enfraquecimento das qualidades preservativas do pus, uma vez que sua disseminação se dava braço-a-braço. O sistema então adotado seguia o seguinte caminho: uma pessoa inoculada deveria retornar ao vacinador após uma semana, tempo necessário para que a pústula estivesse em condições de fornecer novo pus, que, por sua vez, serviria a outra pessoa. Apesar desse retorno ser obrigatório, a grande maioria não o fazia.

A não ocorrência de surtos mais graves de varíola nas décadas de 1810 e 1820 é um forte indício de que a vacinação expandira-se e fizera efeito, mas como no Rio de Janeiro, as epidemias recrudescem a partir de então. Na primeira metade do século XIX anotaram-se grandes epidemias de varíola em 1837, 1845 e 1847 e, posteriormente, entre 1858 e 1859. Nos anos que se seguiram, a enfermidade deu uma trégua, não sendo anotado qualquer falecimento pela doença entre 1860 e 1861. Em 1862, apenas duas mortes por bexigas ocorreram, fazendo com que os paulistanos – até então já acostumados com os surtos anuais de varíola – quase que dela se esquecessem. Entretanto, em abril de 1863 ela voltaria, permanecendo ativa até agosto de 1864, ocasião em que morreram 208 pessoas desse mal.

Vale registrar ainda que a varíola, que tanto marcou a vida na cidade do oitocentos, manifestava-se quase que anualmente e, nem bem curada a epidemia de 1863/1864, já em 1865 uma outra grassava na cidade. Posteriormente, um novo surto se faria presente em fevereiro de 1878, ocasião em que começou a ser planejado o Hospital de Isolamento nos altos do Araçá, atual Hospital Emílio Ribas. Novas ocorrências da doença foram anotadas em 1883, 1886 e 1889. Já a partir de 1895, com a centralização das ações de saúde na esfera estadual, temos as seguintes informações quanto ao número de falecimentos pela varíola: em 1895, 22 mortes; em 1896, 21 mortes; em 1897, 26 mortes; em 1898 ocorre um surto de maiores proporções, com 345 mortes anotadas; em 1899, 7 mortes; em 1900,com apenas 1 morte.[*27]

Entretanto, o que mais importa notar é que, preenchendo uma lacuna na história da saúde e da medicina no Brasil, a vacina antivariólica foi introduzida pela primeira vem em São Paulo no ano de 1803, como bem demonstram os documentos. Esta informação, por sua vez, nos faz ver que antes daquele ano, certamente algumas experiências já deveriam ter sido realizadas em Salvador e no Rio de Janeiro.

Referências Bibliográficas:

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Doutor em História Social pela PUC-SP onde defendeu a tese “Viver e morrer em São Paulo: a vida as doenças e a morte na cidade do século XIX.” Atualmente desenvolve suas atividades junto ao Arquivo Histórico Municipal de São Paulo.
Atas da Câmara da Vila de São Paulo, Vol. I, p. 40.
SANTOS FILHO, Lycurgo. História geral da medicina brasileira, S.P.: Edusp, 1991, p. 157 e 158.
Aqui citado o trecho no original conf. TAUNAY, Afonso de E.; São Paulo no século XVI, Tours: Imprimerie E. Arrault et Cie, 1921, p. 111. Entretanto, a carta de Anchieta pode ser consultada na íntegra, e em português, em ANCHIETA, José de, S.J., 1534-1597, Cartas, informações, fragmentos históricos e sermões / Padre Joseph de Anchieta; R.J.: Civilização Brasileira, 1933, p. 238 a 240.
ABREU, Dr. João Rodrigues, Historiologia Médica, apud. TAUNAY, A. de E., História da Villa de São Paulo no século XVIII, 1701-1711, p. 90.
CASAL, Manuel Aires de; Corografia brazilica ou Relação histórico-geográfica do Reino do Brazil; B.H:, Itatiaia e S.P.: Edusp, 1976, p. 110.
Registro Geral da Câmara, vol. XII (1796-1803), p. 272.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, vol. 95, São Paulo: Ed. UNESP, 1990, p. 89.
Acredito poder dispensar maiores informações sobre a descoberta da vacina pelo médico inglês Dr. Edward Jenner, cujas conclusões foram publicadas em 1798. Para maiores detalhes, veja CHALHOUB, Sidney; Cidade febril – cortiços e epidemias na corte imperial, S.P.: Cia. das Letras, 1996.
A variolização, método antiqüíssimo, consistia em aplicar o pus das feridas diretamente de uma pessoa a outra. A vacina antivariólica (ou jeneriana), por sua vez, tinha uma etapa anterior: ela era conseguida por intermédio da inoculação em animais para, daí sim, ser retirado o material que seria aplicado nos homens. A partir dessa primeira aplicação, o pus dos vacinados dava origem a outras vacinas, reaplicadas sucessivamente, braço a braço.
Veja CHALHOUB, op.cit, p. 107, FERNANDES, Tânia, Vacina antivariólica: seu primeiro século no Brasil (da vacina jenneriana à animal) ; In: Revista “História Ciências Saúde – Manguinhos”, Vol. VI, nº 1, Março/Julho 1999, p. 29 a 51; RODRIGUES, Jaime; De costa a costa – escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860) , S.P.: Cia das Letras, 2005, p. 286. Como contraponto, veja SANTOS FILHO (1991) p. 270 a 271, que afirma ter sido a vacina introduzida no Brasil já em 1798 e aplicada pelo cirurgião mor Francisco Mendes Ribeiro. Este autor teve como fonte a obra de Alfredo Piragibe, “A primeira página da história da vaccina no Brasil” (R.J. 1881), sem levar em conta as críticas de José Fazenda Vieira, “Antiqualhas e memórias do Rio de Janeiro” (R.J. 1924), que afirmou ser apenas variolização o método aplicado no país em 1798. Ainda sobre essa discussão, veja a recente pesquisa de LOPES, Myriam Bahia e POLITO, Ronald; Para uma história da vacina no Brasil – um manuscrito inédito de Norberto e Macedo”, In: Revista “História Ciências Saúde – Manguinhos”, Vol. 14, nº 2, Abril/Junho 2007, p. 595 a 605.
FARINA, Duílio Crispim; Medicina no planalto de Piratininga; S.P.: Sociedade Impressora Pannartz, 1981, p. 54, TEIXEIRA, Luiz Antonio e ALMEIDA, Marta de; Os primórdios da vacina antivariólica em São Paulo: uma história pouco conhecida; In: Revista “História Ciências Saúde – Manguinhos”, Vol. 10, supl. 2, 2003, p. 475 a 498; BRUNO, Ernani da Silva, História e tradições da cidade de São Paulo; S.P.: Hucitec, 1984, p. 330, 344, 347 e 348 e SANTOS FILHO (1991) p. 272.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos interessantes para a história e costumes de São Paulo, vol. 95, especialmente p. 88, 89 e de 200 a 204.
Registro Geral da Câmara de São Paulo, Vol. XII (1796-1803), p. 282.
CHALHOUB, op.cit., p. 105.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos interessantes, op. cit., vol. 89, p. 166.
ZUQUETE, Afonso Eduardo Martins (org.), Nobreza de Portugal e do Brasil, Lisboa: Editorial Enciclopédia, 1960.
Registro Geral da Câmara de São Paulo, Vol. XII (1796-1803), p. 444 e 445.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos interessantes, vol. 95, op. cit.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos Interessantes, vol. 95, p. 200.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos Interessantes, vol. 95, p. 202.
A respeito dos problemas com a vacina jenneriana nesses primeiros anos veja FERNANDES, op cit, e, da mesma autora, Imunização antivariólica no século XIX no Brasil: inoculação, variolização, vacina e revacinação; In: Revista “História Ciências Saúde – Manguinhos”, Vol. X, supl. 2, 2003, p. 461 a 474.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos Interessantes, vol. 95, p. 203.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos Interessantes, vol. 95, p. 204.
MARCILIO, Maria Luiza. A cidade de São Paulo, povoamento e população 1750-1850; S.P.: Pioneira/Edusp, 1973, p. 102 e 103.
ARQUIVO DO ESTADO DE SÃO PAULO, Documentos Interessantes, vol. 95, p. 200.
A esse respeito veja FERNANDES, 1999, op.cit.
Anuário Estatístico do Estado de São Paulo, Departamento Estadual de Estatística, 1940, quadro Mortalidade das doenças infecto-contagiosas.