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Artigo publicado na edição nº 32 de agosto de 2008.
Entre o Público e o Privado:
o tombamento do patrimônio cultural em Marília – SP

Rodrigo Modesto Nascimento

Introdução

O artigo trata do estudo de caso sobre o processo de tombamento[*1] de uma residência na cidade de Marília, localizada na rua Dom Pedro, n° 87, em que iremos analisar os tramitês políticos e os conflitos de interesse em torno da preservação da memória paulista, particularmente, a tônica desse estudo de tombamento, o embate simbólico e material entre o público e o privado.

O processo de tombamento desse imóvel pode ser considerado polêmico, pois, curiosamente tombado duas vezes, ainda não foi homologado pelo Secretário de Estado de Cultura. Portanto, ainda tramita no Condephaat e é objeto de acaloradas discussões entre os herdeiros, o poder público municipal e o próprio Condephaat, que não dispõe até hoje (maio de 2008)[*2] de uma decisão final acerca dos interesses dos envolvidos[*3].

Da solicitação local ao tombamento

(...), é preciso levar em conta que os objetivos e procedimentos do mercado e da cultura não são e não podem ser os mesmos e são de natureza a provocarem conflitos. A lógica do mercado, que pressupõe, por exemplo, a obtenção de lucros, tende a instrumentalizar a cultura; esta, por sua vez, age segundo uma lógica de finalidade, em que a produção de sentido e da comunicação é que constitui a prioridade. Cálculo de investimento/retorno, custo/benefício só são legítimos, no campo da cultura, se estes termos forem determinados segundo hierarquia fundamentada na lógica cultural.[*4]

Por que iniciar a análise desse artigo com a importante reflexão acima? Como veremos adiante, o que condicionou esse estudo sobre tombamento foram as intricadas relações entre preservação e sociedade, entre o mercado e a cultura, o que torna de suma importância refletir sobre o trecho supracitado.

O município de Marília está localizado na região oeste paulista, que foi a última a ser ocupada e integrada ao restante do Estado, sendo formada por municípios que se constituíram nas primeiras décadas do século XX sob o signo da modernidade e do progresso à lá século XIX: buscando sempre o novo e renegando a tradição.

Esses conceitos acabam por conflitar com a noção de história enquanto visão de passado e pode-se considerar que a história presente não é reconhecida como objeto de preservação, nem pelo Poder Público e nem pela sociedade local.

O período de 1986 a 2004, analisado durante os estudos de tombamento do imóvel, foi caracterizado principalmente pela crescente especulação imobiliária atuando contra a proteção oficial dos bens culturais e, em contrapartida, a valorização e a democratização da memória social ocorrida em âmbito estadual.[*5]

O pedido de tombamento do imóvel partiu da Comissão Organizadora dos Registros Históricos da Câmara Municipal de Marília, em 27 de janeiro de 1986, argumentando em favor da preservação do bem cultural: a casa representa um ícone no desenvolvimento do núcleo urbano, ressalta seu valor arquitetônico e enfatiza a existência de uma ameaça concreta de destruição.

E continua em sua argumentação:

O imóvel, primeira residência assobradada de tijolos construída em Marília, foi concluído em abril de 1929, ano de criação oficial do município que tem hoje 56 anos.
Tendo testemunhado o crescimento histórico, econômico e sócio-cultural do município, a casa da rua D. Pedro é um marco da cidade que precisa ser respeitado e preservado. (...) Lembre-se que o imóvel objeto desta solicitação está localizado em terreno de alto valor comercial (...).[*6]

Os solicitantes destacam a importância da preservação da memória para uma cidade nova como Marília, onde aparece a questão do mito fundador com a afirmação de ser o primeiro imóvel construído de tijolos naquela cidade e ainda no ano de sua fundação, em 1929.

Sobre o mito fundador, José Reginaldo Santos Gonçalves discorre:

É um mundo feito de fundadores, de heróis considerados os primeiros e os melhores, que deram início a uma determinada coletividade nacional. (...). Entre o passado e o autor fica a tradição. O passado é, portanto, narrado com base no que é transmitido por esta tradição, e não com base na experiência pessoal. (...). Esse passado é sagrado, absoluto, jamais é submetido a um ponto de vista relativo.[*7]

A questão do mito fundador como um referencial para a memória e identidade local deve ser ressaltado, pois a maioria dos pedidos e dos estudos de tombamento da região oeste paulista são pautados nessa questão, ou seja, o passado dessas localidades é mitificado como um momento perfeito e sem conflitos.

Outro fato importante é que a casa está localizada em local de alto valor comercial e demandou, e ainda demandam, amplas e acaloradas discussões sobre o ato jurídico do tombamento.

Em seguida, anexado ao processo, está um recorte de jornal local – Marília News – com uma matéria intitulada SOS para a memória cultural de Marília, onde o autor enumera bens culturais que, a seu olhar, são significativos para a comunidade de Marília.

Nessa matéria de jornal, o primeiro bem cultural a merecer destaque é a casa da rua Dom Pedro, 87, aparecendo novamente a ênfase sobre a primeira casa de tijolos construída em Marília.

Logo depois das duas matérias da imprensa local, aparece um documento anônimo com o título T.G.I. Residência da família Schelini – Marília – SP. Um estudo de caso. Nele, o autor enfatiza a necessidade de conscientizar a população para a preservação, onde é preciso destacar:

Em vez de admitir que a especulação domine completamente os locais onde estão situados os monumentos históricos, tem-se, pelo contrário, de lutar para um desenvolvimento cultural de sentido mais humano, venha incorporar ao seu processo, as vantagens da preservação.
É de fundamental importância que a comunidade seja conscientizada e assuma a preservação histórica para que a reivindique e, atendida, funcione como seu fiscal ou sua protetora.[*8]

O autor trata, também, da importância da educação patrimonial, em que a população entenderia o significado de seus bens tombados e assumiria a tarefa de preservar os registros materiais de sua memória e identidade.

Ana Luiza Martins, técnica do Condephaat, emite um parecer reafirmando a posição dos solicitantes de que a casa foi a primeira a ser construída de alvenaria em Marília no ano de sua fundação, em 1929, e destaca o ecletismo da sua arquitetura como ponto fundamental para a preservação:

Portanto, o que temos neste imóvel em estudo, e que o singulariza no elenco dos exemplares de uma frente pioneira é seu ensaio eclético, uma cópia de muitos valores emprestados de outras regiões culturais e, sobretudo das elites dos centros mais expressivos – daí seu aspecto senhorial.
É exatamente nesta originalidade que se reside sua importância e que o torna extremamente representativo da evolução urbana do município.[*9]

E a partir desse parecer, o Egrégio Colegiado, em 03/02/1986, manifesta-se favorável à abertura de processo de tombamento. Em seguida, Ana Luiza Martins elabora um histórico da ocupação da região, desde o surgimento do município de Marília, e destaca a casa da rua D. Pedro como um ícone para o Estado de São Paulo:

Pelas razões expostas concluímos que a casa da rua D. Pedro, de significado para a população local como se infere da solicitação de tombamento, é exemplar significativo para o Estado, uma vez que cristaliza em seu ecletismo tardio um momento de marcha para o oeste, revelando muitos valores e visões de mundo em uma sociedade em formação.[*10]

Ressaltou a historiadora do STCR (Serviço Técnico de Conservação e Restauro) do Condephaat que a casa da rua D. Pedro foi a primeira em alvenaria construída na cidade de Marília, diferenciando-se da maioria, feitas à época em madeira, e revela que as primeiras construções e os primeiros moradores dos municípios localizados no oeste do Estado representam os momentos fundadores da memória social.

O arquiteto Roberto Leme Ferreira, em documento enviado ao STCR do Condephaat, relatou que a Prefeitura Municipal de Marília aprovou a construção de dois edifícios, um ao lado da casa da rua D. Pedro, indo contra uma norma do tombamento: área envoltória do bem cultural e com isso, prejudicou a visibilidade do bem cultural tombado.[*11]

Este fato demonstra a existência de um conflito ou falta de comunicação entre o Legislativo e o Executivo Municipal, pois o pedido de tombamento foi feito pelo Legislativo local, através da Comissão Organizadora dos Registros Históricos da Câmara Municipal de Marília. A atitude da Prefeitura expõe a falta de entendimento entre os poderes públicos sobre a preservação do patrimônio local e estadual.

A conselheira Anna Maria Martinez Correa, em parecer datado de 08/12/1986, aprovou o tombamento da Casa da rua D. Pedro, 87. E continua em seu parecer favorável ao tombamento do bem cultural:

(...). Em visto disso, endossamos as justificativas apresentadas pelo STCR no sentido de se atender ao pedido da comunidade de Marília, pela voz da sua Câmara Municipal, aprovando a solicitação de tombamento do edifício 87 da rua D. Pedro, memória de uma época.[*12]

Público e privado: disputas de interesse em torno da memória

Logo após o parecer da conselheira, encontra-se uma carta enviada ao Condephaat por um dos seus proprietários, Goffredo Abarca Schelini. Inicia-se o conflito de interesses entre o público e o privado, tendo como foco a casa da rua D. Pedro.

Schelini ressalta que o bem é o segundo mais antigo da cidade de Marília, reiterando a afirmação do STCR, de que o imóvel é um dos mais antigos da cidade de Marília. Uma das críticas está no valor arquitetônico atribuído pela Comissão dos Registros Históricos de Marília, pois, de acordo com o senhor Schelini, essa comissão não teria condições de avaliar o valor arquitetônico do imóvel e afirma que a casa é uma cópia de uma existente em São Paulo. O senhor Schelini afirmou que o tombamento, pela área envoltória, “congela” os seus arredores para fins econômicos. E continua:

Sob ameaça de tombamento e pelas circunstâncias tão bem arquitetadas em que ela foi articulada, acreditamos que houve ação de forças estranhas, (...) embutidas no propósito explicito de uma “preservação” patrimonial. (...).
(...). Mas no caso desta casa, pelo que ela representa ou representou para nós e como ela se faz representada por um pequeno grupo titulado de guardião da cultura mariliense, não posso e não consigo permitir que se consuma uma injustiça e uma violência em nome da mitificação.[*13]

Ressalta-se na argumentação do senhor Schelini o trecho inicial, “sob ameaça de tombamento”, que está calcado na defesa do valor econômico do imóvel para os proprietários, pois o mesmo localiza-se em terreno de alto valor comercial e o tombamento inviabilizaria, ao seu entender, a venda para a construção de outro imóvel.

Outro ponto importante ressaltado no documento é a questão de existir, segundo o proprietário, outros interesses mascarados na preservação, questionando assim a integridade do solicitante, a Comissão dos Registros Históricos de Marília.

Em seguida, o Egrégio Colegiado, em Sessão Ordinária de 19/01/1987, Ata – 742, aprovou o parecer da conselheira Anna Maria Martinez Correa e tombamento da casa da rua D. Pedro, 87 em Marília, como integrante do patrimônio cultural paulista.

O advogado da família Schelini, João Bernardino Scarabôtolo, entra contra o tombamento da casa da rua D. Pedro, questionando a afirmação do Condephaat de que o imóvel é o único de alvenaria do bairro Alto Cafezal, construído em 1929.

Outro ponto da contestação fica em torno da importância histórica do bem cultural em nível estadual e sugere ao Condephaat que procure os primeiros edifícios das cidades do interior para incluí-los como patrimônio cultural paulista, fato que foge das atribuições do órgão, que é de analisar os pedidos de tombamento.

Continuando a contestação, Scarabôtolo afirmou que as casas de madeira ainda existentes no bairro Alto Cafezal são os verdadeiros exemplares significativos para se preservar, negando o valor atribuído pelo Conselho e pelos técnicos do STCR e continua:

(...), a casa da rua D. Pedro, não é o derradeiro exemplar. Além de não ser exemplar, trata-se de uma anomalia no universo de 686 prédios existentes em 1928 e de 1084 existentes em 1929. Anômala como ela, restam diversos exemplares, de estilo indefinido e congórico, sem nenhuma identidade com a realidade de 1929 nesse ano, predominava, nas construções de tijolos, o prédio que servia de moradia e para negócios. Este é o verdadeiro exemplar.[*14]

O advogado enumera os bens culturais que, segundo ele, eram importantes para a memória de Marília: Hotel São Bento, Ginásio Municipal e Hotel Líder e seguiram anexados ao processo recortes do jornal local, Correio de Marília, de 1929 e 1938, com as fotos desses imóveis e mais a residência da Família Almeida e Nogueira (já demolida), o primeiro hotel do Alto Cafezal do senhor Luiz M. de Brito, o Tênis Clube de Marília, o prédio da primeira Câmara Municipal, o prédio da Prefeitura, o Posto de Puericultura, o Ginásio Estadual e destacou que o Hotel São Bento foi o primeiro de tijolos da cidade.

Segundo o advogado, todos esses bens culturais são mais importantes do que a casa da rua D. Pedro, mas corrobora a afirmação do valor dos bens culturais que primeiro foram edificados em suas localidades como identificadores da memória e da identidade local.

Essa contestação de tombamento, datada de 19/02/1987, ficou dois anos no Condephaat sem nenhuma resposta por parte da Assessoria Jurídica do órgão. Por isso o presidente Edgard Assis de Carvalho, devido a esse ponto, reitera o despacho do antigo presidente (04/08/1987), que era o tombamento do bem cultural.

Isto nos mostra as carências materiais e humanas por que passam os órgãos ligados aos setores culturais, vistos muitas vezes com descaso pelo poder público em todos os níveis.

A historiadora do STCR, Ana Luiza Martins, em face da contestação, ressaltou a importância do bem nos níveis municipal e estadual, refutando o critério cronológico alegado pelo advogado da família Schelini. E continua defendendo que as características arquitetônicas do bem em questão estão na reunião de vários elementos identificadores da ocupação e povoamento do oeste paulista.

Martins enfatiza a preservação da memória dos excluídos:

Quanto à prioridade sugerida pela contestação, propondo a preservação de “prédios na cidade, muito mais significativos para a memória de Marília, representativos da supremacia cafeeira”, folhas 130, marco de uma história vitoriosa que é habito do poder público preservar, sugerimos que ao lado dela se olhe tanto os espaços do trabalho, dos grupos sociais imigrantes, que por vezes não correspondem ao imaginário projetado pelas idealizações do poder público e que são destruídos em nome do “progresso” mutilando o processo histórico que as cidades tradicionalmente espelham.[*15]

Critica, ainda, a visão de história como um passado sem conflitos e contradições e a destruição dos bens representativos da memória e da identidade em nome da ambição econômica desenfreada.

A conselheira Maria Ângela D’Incao, em parecer de 11/03/1991, questiona a posição de tombar o bem como parte integrante do patrimônio cultural paulista, destacando que existem interesses estranhos envolvidos no tombamento e que o imóvel não é importante para a arquitetura do Estado; propõe, dessa forma, o tombamento em nível local, não aceito pelo Condephaat. Isso expõe as disputas internas dos membros do órgão paulista de preservação em torno do caso estudado.

O presidente Edgard Assis de Carvalho confirmou a decisão de tombamento de 19/01/1987, pois a contestação da família Schelini não obedeceu aos prazos e o Secretário de Estado da Cultura homologou a decisão de tombamento em 14/03/1991.

O tombamento desse bem cultural, além de envolver a posição contrária dos proprietários, também suscitou o embate pela sua preservação entre os próprios membros do Condephaat. O favorável, alegando a defesa da memória do oeste paulista (história e arquitetura) e o outro, ressaltando os inúmeros problemas que permeiam o processo tanto da recusa ao tombamento pelos proprietários como os próprios conselheiros, como já visto acima, ressaltando apenas o valor local do imóvel em tela.

Logo após o parecer, um Mandado de Segurança foi impetrado contra o Secretário Estadual de Cultura e o Presidente do Condephaat por Dona Izabel Abarca Schelini Carnevalli.

O Secretário de Estado da Cultura, Adílson Monteiro Alves, anulou, em 24/07/1991, a Resolução SC n. 6 de 14/03/1991, pois todos os proprietários da casa da rua D. Pedro, nº. 87, não foram notificados do tombamento, procedimento obrigatório em caso de oficialização do tombamento, e voltou a ficar sem a homologação, anulada pelo então Secretário da Cultura.[*16]

Adílson Monteiro Alves, também em ofício enviado ao Juiz de Direito Pedro Aurélio Pires Maríngolo, pediu que fosse denegado o Mandado de Segurança que tentava anular o processo de tombamento 24.405/86. O Juiz anulou apenas a Resolução em questão e não o processo todo como queriam os proprietários do imóvel, pois, segundo o magistrado, não havia nulidade no ato administrativo.

Izabel Schelini Carnevalli, em depoimento ao jornal Diário da Cidade de 09/05/1992:

(...), ela admitiu que o estado de conservação do sobrado está muito prejudicado e que a responsabilidade pela situação é do próprio Condephaat. Segundo ela, o Condephaat, ao tombar o sobrado, agiu por interesses políticos e que nunca demonstrou a mínima preocupação em preservar a casa ou a sua história.[*17]

Com o tombamento, os proprietários, criticando a atitude do Legislativo local em pedir o tombamento da casa que consideram casuísticos, ressaltam que já perderam o dinheiro que poderiam obter ao alugar o local ou vender o terreno, de alto valor comercial. Izabel Schelini acusa o órgão que efetuou o tombamento e continua: “Como a política do Brasil não presta, este órgão também não presta.”

Na análise desta notícia de jornal, podemos observar alguns elementos importantes que interferem nas ações de preservação do patrimônio cultural em São Paulo. Em primeiro lugar, o não entendimento por parte dos proprietários – e da maioria da população e do poder municipal! –, o significado simbólico do ato jurídico do tombamento; e, em segundo lugar, a falta de incentivos fiscais aos proprietários dos bens culturais tombados causa indignação e recusa ao tombamento, visto muitas vezes como uma punição.

Após o tombamento, toda a manutenção e conservação da sua estrutura ficam a cargo do proprietário, o que provoca um sentimento de indignação contra o Poder Público, como demonstrou a família Schelini frente ao tombamento da casa.

Em carta ao Secretário de Estado da Cultura, Leonor Abarca Schelini, em 18/02/1993, ressalta as condições precárias em que se encontra o bem cultural e sobre a área envoltória prejudicada pela construção de dois edifícios durante o processo de tombamento.

Na defesa, a família Schelini solicitou o auxílio do Legislativo Estadual Paulista, em nome do deputado Abelardo Camarinha e do deputado Vicente Botta, endereçada ao Secretário de Estado da Cultura, para intervirem em seu nome junto ao Poder Estadual, sem sucesso.

O processo retornou ao STCR, onde Ana Luiza Martins e Roberto Leme se manifestaram, acusando o Poder Público Municipal por não se interessar na manutenção da casa da rua D. Pedro, 87, apontando a falta de estudos sobre o oeste paulista, onde o patrimônio está sendo destruído:

Certo que as atuações do órgão em áreas de formação recente são sempre problemáticas. No caso de Marília, cidade da frente pioneira, nascida sobre o da especulação imobiliária, com o retalhamento dos patrimônios iniciais em lotes para a exploração comercial, só agora exercitando sua identidade local, (...).[*18]

Como enfatiza o parecer do STCR, é de difícil solução a preservação de bens culturais em áreas de ocupação recente como o oeste de São Paulo, formadas por cidades pautadas no ideário da modernidade e progresso.

Esse fato agrava-se no oeste paulista por causa de sua formação recente, pois a maioria da população, em razão da influência marcante de uma história tradicional e da valoração das características coloniais dos bens arquitetônicos, em sua maioria, onde os bens culturais dignos de serem preservados devem recuar ao século XIX e aos tempos da colônia, e que o oeste de São Paulo, de recente ocupação, não tem lugar na seleta “galeria” do patrimônio cultural.

Sobre a valoração do patrimônio nas cidades mineiras, afirma Lia Motta:

Foi usando as cidades mineiras, buscando construir uma imagem que representasse o Brasil como nação moderna, que o Iphan, na década de 1930 e ao longo dos trinta anos subseqüentes, consagrou e veiculou aquelas cidades como as únicas que tinham valor de patrimônio, construindo, além de uma representação oficial de Brasil, uma imagem socialmente incorporada de patrimônio histórico e cultural urbano.[*19]

A citação acima corrobora o fato da não-valoração e a falta de reconhecimento por parte da sociedade e do poder público local sobre seu próprio patrimônio, isto é, da sua própria memória e identidade local.

Mas o caso analisado foi levado para apreciação do conselheiro Odeibler Santo Guidugli, destacando “um conjunto de situações, no mínimo estranhas”. E solicitou da família Schelini esclarecimentos sobre as aspirações econômicas da utilização do imóvel em questão e do Condephaat, sobre o uso das suas partes externas.

De acordo com o conselheiro, o STCR emitiu um parecer em que autoriza os proprietários a procurarem parceiros e apresentarem um projeto de verticalização das partes vagas do terreno, conservando a “integridade do bem tombado”. Mas como já foi dito, a Prefeitura Municipal, durante o estudo de tombamento, autorizou a construção de prédios ao redor do bem tombado, prejudicando a sua área envoltória.

No dia 07/08/2000, foi realizada no Condephaat uma reunião com os proprietários e representantes do Poder Público Municipal de Marília. Da parte do Conselho, o arquiteto José Guilherme destacou o mau estado de conservação do bem cultural e a busca de uma solução com os proprietários, e a historiadora Ana Luiza Martins apresentou as sugestões do STCR de aproveitamento da parte vaga do terreno e, através de parcerias, realizar um empreendimento imobiliário.

O representante do Poder Municipal de Marília, Sílvio Guimarães, comentou sobre a legislação vigente e comprometeu-se a atendê-la. O representante dos proprietários Fernando Abarca Schelini, contestou o tombamento, pois, segundo ele, a manutenção fica a cargo dos proprietários que almejam a destruição da casa, mas enfatiza: se o Estado ajudasse com os recursos, a preservariam. A reunião terminou com os familiares concordando em observar a posição do Conselho.

O parecer do Condephaat, do conselheiro Jon Andoni Maitrejan, ressaltou que se os proprietários não tiverem mesmo condições financeiras para recuperar o imóvel, um esforço conjunto entre Condephaat e a Prefeitura local poderia colaborar com sua restauração. Se tivessem condições financeiras, deveria então se aplicar a Lei.

É importante ressaltar que o vereador Clóvis Melo, em projeto de lei n° 60/2003, propõe a afixação de placas de identificação nas fachadas dos imóveis tombados em Marília. Mas, depois da visita do pesquisador em 2005, mostrou-se que nada do que foi proposto pelo poder local foi feito.

Em carta anexada ao processo, em 23 de maio de 2001, Izabel Schelini ressaltou que o próprio proponente do tombamento, a Comissão dos Registros Históricos de Marília, pediu o arquivamento do processo n° 24.405/86, com certeza, devido à pressões locais em torno do caso em tela e destacou as várias modificações na estrutura da casa desde sua construção, refutando sua autenticidade e continua:

Mediante o marasmo de preocupações em que a família se encontra, não há nenhuma alternativa para a legalização desta situação, pois, como já foi dito, não existe orçamento para melhorias do prédio e, também, desde o inicio desse processo a família se obrigou a seguir e ouvir uma série de ameaças e por isso, sempre pedimos para que se revertesse esse tombamento, uma vez que isso não passava de um mero gosto, crendo que para mostrar serviço ou aparecer na comunidade.[*20]

O arquiteto Sérgio de Simone e a historiadora Ana Luiza Martins, em pareceres datados de abril e maio de 2001 e enviados ao Diretor Técnico do STCR, ressaltaram que todos os esforços dentro do alcance do órgão paulista de preservação já foram feitos e nada foi feito pela família herdeira do imóvel, nem pelo poder público local.

Considerações finais

A maioria das cidades do oeste paulista, como Marília, teve sua formação urbana pautada no ideário da modernidade, ocorrendo a todo o momento a substituição “frenética” do velho pelo novo, o que ocasiona, muitas vezes, na destruição do patrimônio cultural local em razão, muitas vezes, da crescente especulação imobiliária.

A cidade de São Paulo, exemplo de modernidade, é o principal modelo “copiado” pela maioria dos integrantes da sociedade local, o que resulta muitas vezes na destruição, por causa da especulação imobiliária, principalmente do patrimônio arquitetônico comprometendo a construção de sua memória e enfraquecendo os fundamentos de sua identidade.

A construção de grandes avenidas, shoppings centers e altos edifícios em muitas cidades do oeste paulista corroboram a afirmação sobre o anseio do progresso e da modernidade de uma sociedade de formação recente. Sem dúvida, uma das principais características dessa sociedade é que o novo sempre é visto com “bons olhos” pelo poder público e pela sociedade local, em detrimento do “velho”, que em muitos casos é destruído para dar lugar às edificações ditas “modernas”.

Mais particularmente a falta de incentivo e de apoio do poder público (estadual e municipal) em relação aos bens tombados piora o quadro exposto, onde toda a sua conservação e restauração ficam a cargo dos proprietários e materializa-se na recusa, muitas vezes, do tombamento dos bens culturais de reconhecido valor pelo poder público, como o caso analisado.

Durante o estudo sobre esse tombamento, o poder público municipal pouco ou nada fez para minimizar a situação, sequer auxiliou a família herdeira em soluções para a viabilização econômica do imóvel tombado, como exposto através de uma proposta do Condephaat em uma reunião entre poder estadual, municipal e herdeiros da residência, já exposta nesse artigo.

O que vemos de importante para amenizar a pressão do mercado sobre bens particulares é uma parceria, por mais difícil que seja, entre os proprietários, poderes públicos e o setor privado, afinal de contas, o bem cultural, com as devidas proporções, representa a coletividade.

Outro ponto importante fica em torno do descaso do Governo do Estado de São Paulo para com o campo cultural, em que concede as mínimas condições de trabalho aos órgãos relacionados a essa área como exemplos da constante falta de recursos materiais e humanos, refletindo na atuação precária do Condephaat e ainda, ao nosso ver, a falta de condições de fiscalizar os bens tombados pelo Estado, deixa os proprietários praticamente impunes quando mutilam seus próprios bens culturais em razão, muitas vezes, da ambição econômica.

No caso analisado, por exemplo, a família Schelini, herdeira do imóvel, espera uma decisão favorável do Poder Judiciário para tentar reverter a atual situação, pois a residência está tombada e a decisão do Estado ainda não foi homologada pelo Secretário de Estado da Cultura, mas afirmam que se tivessem apoio e incentivo do Estado, iriam conservar o bem cultural, discurso esse enfatizado pelos proprietários durante o processo de tombamento.

Os estudos dos especialistas do Condephaat, os historiadores e arquitetos do Serviço Técnico de Conservação e Restauro (STCR) pautaram-se em versões da história e da arquitetura paulista, em que foi enfatizado o mérito do bem cultural, de ser a primeira residência de alvenaria da nascente cidade de Marilia em 1929, bem como seus atributos arquitetônicos baseados no ecletismo ressaltados em diversos pareceres de mérito, assim como sua importância para a história da expansão da rede urbana no Estado.

Mas como vimos durante o estudo de tombamento, a família herdeira, pela falta de incentivos do governo para com os bens tombados, refuta o mesmo, e devido ao valor econômico do imóvel, pois o este se encontra em terreno de alto valor comercial, bem no centro da cidade de Marilia e utilizado atualmente pela família herdeira como um estacionamento para automóveis, essa “novela” terá ainda muitos capítulos.

O processo de tombamento n. 24.405/86, do imóvel residencial da Rua Dom Pedro, 87 ainda se encontra em tramitação, curiosamente tombado duas vezes, pois até a última consulta ao documento, em outubro de 2004, não havia nenhuma solução para o impasse que decorreu do processo: o conflito de interesses entre o público e o privado.



Referências bibliográficas:

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__________________________________. Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como gênero de discurso. In: Cidade: história e desafios. Lucia Lippi Oliveira, organizadora. Rio de Janeiro: FGV, 2002. pp. 108-123.
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__________________. De quem é o patrimônio? Um olhar sobre a prática preservacionista em São Paulo. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional n. 24. RJ, IPHAN, 1996, pp. 195 – 205.
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É graduado e mestre em História pela Universidade Estadual Paulista - Campus de Assis. Atualmente é professor do curso de graduação em História da Universidade Estadual do Norte do Paraná - Campus de Jacarezinho.
Processo n. 24.405/86. Tombamento: é um instrumento jurídico que protege através da legislação bens culturais de reconhecido valor pelo Poder Público e é aplicado por órgãos do Executivo. Um bem cultural tombado não pode ser destruído ou descaracterizado sem autorização do órgão competente, sob as penas da Lei.
Foi localizada a notícia no jornal local Diário de Marília “Herdeiros agora esperam cancelar tombamento de casarão no centro”, datada de 09/12/2007, onde fica evidente que este caso ainda não foi solucionado. Fonte: www.diáriodemarília.com.br, acesso em 25 de maio de 2008.
Este artigo é baseado no quarto capítulo da dissertação de mestrado intitulada: Poder público e patrimônio cultural. Estudo sobre a política estadual de preservação no oeste paulista (1969 – 1999) , financiada pela FAPESP e defendida pelo autor no Programa de Pós-graduação em História da UNESP – FCL – Campus de Assis em vinte de janeiro de 2006 sob orientação da Dra. Célia Reis Camargo.
MENESES, 2000. Pg. 29.
Sobre esse tema, ver a obra de Marly Rodrigues: Imagens do passado, 2000.
Processo n. 24.405/86, Pg. 03-04.
GONÇALVES, 2002, Pg. 112.
Processo n. 24.405/86, Pg. 46.
Idem, Pg. 56.
Idem, Pg. 82.
Área Envoltória: no âmbito estadual foi instituída pelo Decreto n. 13.426/79 onde foi definido que essa área fica em torno de 300 metros ao redor do bem, preservando a visibilidade do bem tombado.
Processo n. 24.405/86, Pg. 111.
Idem, Pg. 116.
Idem, Pg. 129.
Idem, Pg. 149.
Como podemos perceber, o Secretário da Cultura, cuja atribuição é homologar os tombamentos, tem um certo controle sobre a proteção do patrimônio cultural.
Processo n. 24.405/86, Pg. 248.
Idem, Pg. 318-319.
MOTTA, 2002, Pg. 125-126.
Processo n. 24.405/86, Pg. 424.