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Artigo publicado na edição nº 34 de janeiro de 2009.
A instrução pública em Piracicaba no século XIX:
o papel da escola

Cibélia Renata da Silva Pires

As reformas pombalinas da instrução pública no século XVIII

A nova situação política e econômica em Portugal no século XVIII, e as repercussões da ideologia iluminista na mentalidade portuguesa, conduziram a administração pombalina a uma nova orientação pedagógica, cujos reflexos chegaram até a sua colônia americana.

Com a expulsão dos jesuítas em 1759 e a supressão de todas as escolas jesuíticas do Reino e das demais colônias de Portugal, houve uma necessidade premente de preencher uma lacuna antes ocupada pelas aulas mantidas pela Ordem de Santo Inácio, sendo, portanto, fundamental a adoção de um plano que garantisse a continuidade do ensino que atendesse aos interesses do Estado Civil.

Nesse período, houve uma renovação no campo da educação graças às reformas pombalinas, que procuravam substituir os tradicionais métodos pedagógicos por outros plenamente associados aos ideais iluministas da época. Essas reformas pedagógicas, introduzidas por Pombal, estavam amparadas na obra “O verdadeiro método de estudar”, de Verney, que, além de apontar os defeitos da orientação pedagógica anterior, propunha soluções e diretrizes mais eficientes que melhor pudessem corresponder às necessidades culturais de seu tempo[*1].

Deste modo, em 1759, ano da expulsão dos jesuítas, foram instituídas em Portugal aulas régias de gramática latina, grega, hebraica e de retórica[*2]. Esta pedagogia pombalina com ênfase nos estudos de latim e humanidades aludia a uma volta à tradição humanista do quinhentismo, combatendo toda e qualquer influência jesuítica que dominava os estudos até então. As novas diretrizes, formadas a partir da obra de Verney, foram transformadas em princípios orientadores da política pombalina em relação aos estudos menores que, em 1771, passaram a ser de responsabilidade da Real Mesa Censória:

Criada em 1768 a Real Mesa Censória, com atribuição para encaminhar livros e papéis já introduzidos e por introduzir em Portugal, alguns anos depois ampliou-se a sua esfera de ação com a incumbência que lhe foi conferida de toda a administração e direção dos estudos menores destes reinos e seus domínios.[*3]

Em outras palavras, cabia à Real Mesa Censória as diretrizes que seriam tomadas no tocante aos estudos das escolas menores, assim como as aulas que seriam dadas, os números de professores, e a discriminação das cidades que seriam beneficiadas tanto em Portugal como em suas colônias. No Brasil, foram criadas 17 aulas de ler e escrever, sendo que para alguns lugares foi destinada apenas uma escola. Entre estes lugares estava a Capitania de São Paulo.

Mesmo com a vinda da Família Real para o Brasil, não houve uma mudança significativa no campo educacional, principalmente em São Paulo, pois o investimento maior estava no Rio de Janeiro, especialmente no ensino superior. Em São Paulo, no início do século XIX, as condições de ensino eram bastante precárias, e no interior paulista o sistema educacional era ainda pior.

Durante o Império, a Província de São Paulo contava com um número muito reduzido de crianças que frequentavam a escola: “(...) apenas 13,52% das crianças frequentavam alguma escola”[*4], demonstrando a precariedade do ensino na Província. Neste período, havia vários tipos de formação, sendo que o primeiro deles era o Ensino Primário, também conhecido por Primeiras Letras, destinado aos jovens entre 7 e 14 anos, cujo currículo básico variava de acordo com o sexo:

O ensino de Primeiras Letras restringia-se aos jovens de 7 e 14 anos, aos que não fossem escravos, não tivessem nenhuma doença contagiosa ou repugnante, e não houvessem sido expulsos de outra escola. Passada esta faixa etária, ou se o estudante tivesse algum dos impedimentos mencionados, restava-lhe o ensino particular ou ele teria de esperar completar 16 anos, idade em que poderia freqüentar o ensino noturno. Esse ensino era destinado aos alunos considerados “atrasados” e também aos escravos, desde que seu senhor os autorizasse.[*5]

Apesar de a Constituição do Império de 1823 determinar a criação de escolas de Primeiras Letras em todas as cidades, vilas e lugarejos, inclusive para meninas, e a garantia de instrução gratuita a todos os cidadãos, apenas alguns locais gozavam desses benefícios ainda de forma precária[*6]. Todo este processo de exclusão de grande parte da população pobre estava ligado à política local de manutenção de poder e concessão de privilégios a poucos:

Segundo a filosofia aplicada nas colônias portuguesas, inclusive no Brasil, filhos de pobres e camponeses não deveriam aprender a ler e escrever, porque se se alfabetizassem poderiam almejar ter outras profissões além das que seus pais tiveram.[*7]

Como poucas pessoas no Brasil do século XIX tinham acesso à escola e, consequentemente, à norma padrão escrita da época, a linguagem também passou a ser utilizada como um instrumento para impedir a comunicação de informações para a maior parte da população, excluindo-a do acesso ao poder:

(...) A começar do nível mais elementar de relações com o poder, a linguagem constitui o arame farpado mais poderoso para bloquear o acesso ao poder. Para redigir um documento qualquer de algum valor jurídico é realmente necessário não somente conhecer a língua e saber redigir frases inteligíveis, mas conhecer também toda uma fraseologia complexa e arcaizante que é de praxe. Se não é necessário redigir, é necessário pelo menos entender tal fraseologia por trás do complexo sistema de clichês e frases feitas.[*8]

A instrução pública em Piracicaba

Em Piracicaba, a primeira escola foi criada em 13 de fevereiro de 1826, quatro anos depois de a região ter sido elevada à condição de vila, e, mesmo depois de construída a escola em Piracicaba, a maioria da população que se concentrava nas áreas rurais não tinha acesso a ela, ficando sua variedade linguística livre da imposição da norma culta. Com poucos recursos e quase esquecida pela capital da Província, Piracicaba mantinha precariamente seu ensino de Primeiras Letras, deixando sua população imersa em um grande “atraso cultural” e fortemente marcada pela tradição oral.

A 22 de abril, a Câmara Municipal enviava à Presidência da Província a indicação de Manoel Morato de Carvalho como professor, pois o primeiro indicado, Joaquim Floriano Leite, não havia sido nomeado. Em 1830 só havia uma escola em Vila Nova da Constituição (Piracicaba). Em 1835, em razão da morte do professor em exercício, Lourenço Antônio de Almeida, o único professor da vila, a escola parou de funcionar. Até quase a metade do século XIX, só havia em Vila Nova da Constituição escola para meninos:

A primeira escola feminina só foi instalada em Vila Nova da Constituição em 1845. Nessa época a única escola da Vila funcionava em uma sala da Casa da Câmara e da Cadeia. Em época de sessões de júri as aulas eram suspensas.[*9]

Não havia instrução secundária em Piracicaba. Os moços da elite piracicabana continuavam seus estudos na capital e as moças das classes mais abastadas tinham suas professoras, geralmente estrangeiras, que lecionavam em suas casas. Enquanto isso, a maior parte da população permanecia analfabeta[*10].

Era baixo o padrão de ensino em Piracicaba durante esse período, pois os professores não possuíam formação, não estavam preparados para as escolas primárias, além da falta de recursos para a criação e manutenção das escolas. De acordo com uma ata de 2 de julho de 1861, havia na cidade três escolas, sendo uma de latim e duas de instrução primária. Somente em 1872 foi criada uma terceira escola primária, a Escola Mista da Rua do Porto, e para ela foi nomeada a professora Francisca Elisa da Silva, mais conhecida por Francisca de Castro, tendo trabalhado lá durante 27 anos.

Dentre os documentos consultados, transcreve-se abaixo o trecho de um documento assinado pela própria professora Francisca Elisa da Silva, no qual ela afirma que a escola onde dava aulas funcionava numa casa cedida por alguém. É importante lembrar que, devido à falta de recursos na Câmara Municipal de Piracicaba, muitas vezes as escolas funcionavam com a ajuda de outras pessoas para ceder casas e/ou ajudar na reforma das mesmas:

(...) A minha escóla funciona em uma espaçoza ç e bem arejada sala de 45 palmos com 30 gratui ç tamente cedido pelo proprietario o Senhor Antonio ç Theodoro de Moraes, parte por affeição pessoal, ç parte em attenção ao fim, a que se presta (...)[*11]

Em 1882, em Piracicaba, havia cinco escolas públicas de ambos os sexos, com 286 alunos matriculados. De acordo com os estudos feitos pelo professor e historiador Guilherme Vitti, em 1883, Piracicaba contava com uma população de 15.738 habitantes, dos quais 5.339 eram escravos. Portanto, o número de pessoas que teriam acesso às escolas era muito reduzido em comparação com o grande número de analfabetos[*12].

Em agosto de 1884, era nomeada para a escola da Rua do Porto a professora Teresa Cristina dos Reis Teixeira, que abriu uma escola na Rua Direita por alegar que no local onde estavam (Rua do Porto) não havia casa própria para funcionar uma escola. Na verdade, essa escola, assim como todas as outras, estava mal instalada, além de possuir um agravante: estava à beira do rio, sujeita a enchentes, lama, mosquitos e diversas doenças, como ela própria atesta no documento:

A supplente porem querendo ir de acordo com a le ç tra expressa, chegando a esta cidade, dirigio-se ç á rua do Porto, em procura de uma casa para abrir ç aula. [espaço] Depois de muito traba ç lho poude conseguir um pardieiro, porque na ç citada rua não existe uma só casa com capa ç cidade para semelhante mister. ç Quando tencionara estabelecer-se ali, foi acon ç selhada por diversas pessoas gradas do lugar, que ç não fosse para a rua do Porto, por ser lugar ç pestifero e sezonatico, a menos que quizesse com ç prometter a saude e vida de seus quatro filhos ç menores, e igualmente ter seus discípulos (...)[*13]

Mal instalados, em prédios impróprios, as escolas funcionavam em péssimas condições. A situação educacional em Piracicaba só veio a melhorar em fins do século XIX e, mesmo assim, nesse período “havia em Piracicaba 14 mil habitantes com 1337 crianças em idade escolar, e só havia nove escolas públicas“[*14]. Na zona rural, o setor educacional só começou suas atividades em 1898 com o funcionamento de uma Escola na Fazenda Pau d’Alho, regida pelo professor Antonio de Oliveiro, ano em que também uma nova sociedade, denominada Sociedade Egualitária, fundada por negros, inaugurou uma escola na zona rural.

Na zona rural, o contato com a escola é curto: geralmente quatro anos. Após esse período, os alunos perdem o elo com a civilização moderna e se voltam ao cotidiano da civilização caipira, mantendo quase que intacta a sua variedade linguística que, devido à falta de continuidade escolar, não se ajusta à norma culta padrão atual. Do mesmo modo, a influência de instituições tradicionais, como família e religião, age no sentido contrário ao da escola, uma vez que favorece a imersão da criança no cotidiano familiar, cercada por pessoas que também usam uma variedade linguística livre das regras da norma padrão durante um tempo muito maior que o período escolar. O processo de escolarização na zona urbana se processa de forma diversa do meio rural, sempre trazendo consequências futuras na vida da criança em sociedade:

A escolarização de nível primário no meio urbano distingui-se por compreender uma fase da vida infantil que se caracteriza por ser aquela que precede imediatamente uma etapa crucial na formação da personalidade-status do sujeito: a do prosseguimento dos estudos ou, então, a do ingresso na força de trabalho. Tais alternativas extremas reproduzem para o imaturo, sob forma de opção sua e/ou de seus pais, a situação de classe de sua família, os limites sociais da sua mobilidade presente e futura e o desenrolar possível de sua biografia.[*15]

Até mesmo a maneira de ver a escola e a necessidade de permanência da criança numa instituição de ensino é diferente na zona rural e na zona urbana. Enquanto nos centros urbanos a escola é vista como um meio de ascensão social, na zona rural a escola é vista como um “trabalho em si”, ou, qualquer outro objetivo diferente que se tenha, é este sempre muito modesto. Isso se torna compreensível se for levar em conta o fato de que existe um enorme esforço por parte do aluno da zona rural em ter que percorrer um longo trajeto de sua residência à escola, isso quando ele não tem que somar à escola suas atividades de trabalho no campo ajudando os pais. Assim, terminado o curso primário, as crianças voltavam a ter contato apenas com as instituições tradicionais às quais estão intimamente ligadas.

Como durante muito tempo não houve uma economia voltada para a comercialização de produtos, mas baseada na subsistência, os moradores da zona rural em Piracicaba mantiveram-se durante muito tempo afastados de ambientes em que a variedade linguística padrão era utilizada com mais frequência, mantendo assim intactas formas mais arcaicas, antigas expressões em uso desde o descobrimento, petrificadas em seu dialeto, sendo mesmo consideradas formas erradas pelos habitantes das cidades:

O dialeto matuto, da mesma maneira, bloqueado no interior pela falta de comunicação, longe do contato disciplinador da escola, do freio da instrução, isolado assim pelo duplo fator geográfico e social, entregue a si mesmo, fez seu caminho à parte.[*16]

O que a história social e política local têm nos revelado é que, assim como as outras instituições públicas no Brasil do século XIX, a escola foi amplamente utilizada como instrumento de exclusão social à medida que impedia a grande parcela da população humilde de ter acesso aos benefícios da instrução.

Em Piracicaba, por estar sujeita à Província e carente de maiores recursos, a situação era ainda pior. É importante lembrar que, enquanto freguesia, Piracicaba não teve nenhuma escola, vindo esta a ser fundada somente no século XIX com poucos alunos, considerando a grande parcela da população excluída e em lugares precários.

Sendo o acesso à escola no Brasil do século XIX um privilégio de poucos, a maioria da população pobre, formada por negros, mestiços e índios, estava excluída do acesso ao poder, contribuindo de forma involuntária para a manutenção do poder das elites locais.

Referências bibliográficas

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MARIANI, Bethânia. Colonização lingüística. Campinas: Pontes, 2004.
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Formada em Letras (bacharelado e licenciatura) pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre e doutoranda em Filologia e Língua Portuguesa pela mesma universidade. Além disso, participa como pesquisadora do projeto de pesquisa da USP intitulado “Formação e expansão do português paulista ao longo do Rio Tietê até o Mato Grosso a partir do século XVI” que está sendo financiado pela Fapesp sob a coordenação do profº Ataliba T. de Castilho.
CARVALHO, Laerte Ramos de. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Edusp, 1978. p. 25.
Ibidem, p. 115.
Ibidem, p. 127.
PATROCÍNIO, Ana Luiza do. A educação durante o império. Revista Histórica, São Paulo, n. 10, p. 7, 2003.
Ibidem, p. 6.
MARROQUIM, Mário. A língua do nordeste. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934. p. 138.
FONSECA, Maria Cristina de Assis Pinto. A escrita oficial: manuscritos paraibanos dos séculos XVIII e XIX. Recife: Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE, 2005. p. 79.
GNERRE, Maurizzio. Linguagem, escrita e poder. 3. ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1991. p. 22.
TORRES, Maria Celestina Teixeira Mendes. Piracicaba no século XIX. Piracicaba: IHGP/Editora Degaspari, 2003. p. 175.
Jornal localizado no Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, caixa 378, P 3, doc. 67A.
Documento localizado no Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, caixa 378, P 3, doc.67.
TORRES, op. cit., p. 183.
Documento localizado no Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo, caixa 378, P 5, doc. 12.
TORRES, op. cit., p. 191.
MARTINS, José de Souza. Capitalismo e tradicionalismo: Estudos sobre as contradições da sociedade agrária no Brasil. São Paulo: Pioneira, 1975. p. 85.
MARROQUIM, op. cit., p.45.