:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 35 de abril de 2009.
Práticas de saúde, doenças e sociabilidade escrava na Imperial Fazenda de Santa Cruz, da segunda metade do século XIX
Júlio César Medeiros da Silva Pereira

O artigo ora apresentado tem por objetivo verificar as principais doenças que acometiam os escravos de uma comunidade rural, distante centenas de quilômetros das freguesias do centro do Rio de Janeiro: a escravaria da Imperial Fazenda de Santa Cruz, entre 1861 e 1867. O nosso foco se concentra nos escravos pertencentes ao Império, os quais compunham a força motriz da singular Imperial Fazenda de Santa Cruz, uma das maiores produtoras agropastoris do século XIX. O estudo sobre tais escravos nos permitirá responder pelo menos três questões concernentes à sua saúde: em primeiro lugar, saber de que doenças eles morriam; em segundo, verificar se tais doenças encontradas nesses escravos rurais eram as mesmas que acometiam os escravos urbanos; e, finalmente, saber quais eram as ações dos escravos de Santa Cruz face às questões pertinentes à saúde e morte.

O nosso recorte temporal se localiza na segunda metade do século XIX, e a nossa fonte documental consiste em livros de óbitos de escravos da Fazenda Imperial de Santa Cruz, de 1861 a 1867, encontrados no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro. Tal documentação paroquial nos permite descobrir a data dos sepultamentos, quem mandou sepultar, a causa mortis, o local do sepultamento, assim como os paramentos fúnebres - mortalhas - que envolviam os mortos. A partir dessa fonte primária, confeccionamos um pequeno banco de dados que nos serve de base para a análise em questão.

A fonte secundária utilizada em nosso estudo é o trabalho do historiador Benedicto Freitas (2005) sobre a Imperial Fazenda de Santa Cruz. Sua produção procurou resgatar as particularidades históricas dessa região a fim de que não se perdessem no tempo as informações que remontavam a uma época de glória, esquecida pelos contemporâneos do autor, nos idos de 1950[*1].

O passado da Fazenda remonta aos tempos do Brasil Colônia quando, em 30 de dezembro de 1556, Cristóvão Monteiro recebera como retribuição por ter lutado contra a invasão francesa no Rio de Janeiro, em 1555, uma sesmaria para a implantação de um engenho de açúcar. Tratava-se de uma área que compreendia desde a orla marítima da atual Sepetiba até as cercanias de Itacuruçá - litoral sul fluminense do Rio de Janeiro. Com a morte do patriarca, a viúva cedeu a terra aos jesuítas em 1590 e regressou a Portugal. Ao longo do tempo, os jesuítas adquiriram as terras adjacentes aumentando o patrimônio da Ordem Inaciana.

Sob a administração dos jesuítas, a região expandiu-se sobremaneira, transformando-se no que seria o maior complexo agropastoril do Brasil durante o século XVIII. Para força motriz, os jesuítas cuidaram em trazer muitos índios de Mangaratiba e outros tantos escravos africanos comprados no famoso mercado negreiro situado ao longo da Rua Direta, atual Rua 1° de Março. A terra ajudava em muito a diversificação dos empreendimentos jesuítas, já que nas planícies o terreno era propício ao cultivo sobretudo de arroz, milho, feijão, batata e mais tarde o café, enquanto a região de mata mais densa era usada para o cultivo de especiarias e drogas do sertão.

Após a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, por meio do Alvará Régio de 3 de setembro e da Carta Régia de 4 de outubro de 1759, o serviço espiritual da Fazenda foi confiado aos padres franciscanos e o ofício secular à administração dos vice-reis. Parece que nesse período a Fazenda passou por um certo abandono, mas após a vinda da Família Real, em 1808, as coisas mudaram de figura.

Segundo a tradição lusa, todos os reis deveriam ter ao menos três habitações diferentes: um palácio citadino, uma chácara e uma fazenda ao ermo. Para a primeira habitação, a família recebera o Paço Imperial encravado à entrada da cidade, na atual Praça XIX. Como local mais afastado do centro, de ar mais puro e longe das pestilências dos miasmas que grassavam na Corte, abriu-se, por ordem do príncipe regente, a Quinta da Boa Vista, localizada em São Cristóvão. Para veraneio, escolheu-se a Fazenda de Santa Cruz, onde o monarca descansava das tarefas reais e praticava a caça, o esporte favorito dos reis.

Sob a direção da Família Real, que passou a ocupar o antigo convento dos jesuítas, a Fazenda, que já se chamava Real Fazenda de Santa Cruz, voltou a florescer. Em 1861, a responsabilidade pela vida religiosa da Fazenda passou aos encargos dos franciscanos, que começaram a enviar clérigos para os ofícios religiosos. Ciosos da documentação paroquial concernente à vida religiosa e obrigados pelo sistema de padroado a prestarem os registros da vida civil, os padres cuidaram em lavrar os livros de batizado, casamento e óbitos. É justamente a partir dessa data que parte a nossa análise, pois os registros lançados por eles servem de fontes que nos ajudam a entender os mecanismos de doenças e práticas de saúde entre os cativos.

Lançamos mão do livro de óbitos de escravos de Santa Cruz, de 1861 a 1887, e quantificamos de 1861 a 1867, retirando os dados referentes aos nomes dos escravos, filiação, causa mortis, local, data, condição jurídica, proprietário, paramento fúnebre, e o local dos sepultamentos. Feito isso, agrupamos as causas mortis em grupos de acordo com os tipos de doenças mais comuns na época. Desta forma, tabulamos um total de 261 mortes e suas principais causas para que pudéssemos entender a regularidade das doenças no tempo e os tipos de escravos suscetíveis a elas.

Tabela 1. Óbitos de escravos da Fazenda Cruz: doenças infectoparasitárias

Fonte: Livro de óbitos de escravos da Fazenda de Santa Cruz, 1861-1867. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro[*2] .

Como se pode ver acima, as doenças infectoparasitárias causaram 150 mortes entre os escravos da Fazenda de Santa Cruz. Entre elas, a causa mais comum foi a tuberculose, que matou 64 pessoas, ou seja, 42,6%, quase a metade dos óbitos entre os escravos. Ela matou mais os escravos do sexo masculino do que os do sexo feminino, já que quando separamos esses dados entre os sexos, notamos a diferença de 26,6% para os homens e 16% para as mulheres. Há de se ressaltar que esse quadro nosológico já havia sido apontado por Karasch (2000, p. 210) como endêmico na cidade do Rio de Janeiro. Ao analisar os sepultamentos realizados pela Santa Casa, de 1833 a 1849, a autora apontou que a tuberculose matou 312 pessoas de um total de 1.146. Os dados aqui apresentados sobre a Fazenda de Santa Cruz demonstram que mesmo após o fim do tráfico, e em uma comunidade rural, a tuberculose ainda continuava a ser extremamente mortal.

É possível que as condições de vida da escravaria de Santa Cruz nos deem algumas pistas sobre o motivo da incidência da tuberculose entre os cativos. A tuberculose é transmitida pelo ar, através do bacilo de Koch, cientificamente chamado de Mycobacterium tuberculosis. O espirro de uma pessoa doente joga ao ar cerca de dois milhões de bacilos. Pela tosse, esse valor pode chegar a cerca de 3.500 partículas. Os bacilos da tuberculose podem permanecer em suspensão no ar durante horas, infectando aqueles que dele compartilham.

Caso o organismo não esteja debilitado, ele consegue deter o micro-organismo antes que o patógeno se instale, de modo que a pessoa se torne imune a novas infecções; mas se a saúde estiver frágil, ela pode desenvolver a doença em 15 dias, pois os bacilos passam a se multiplicar facilmente criando lesões (nódulos) nos pulmões que, em um estado avançado, fazem com que a tosse passe a conter pus e sangue (hemoptise). As condições sob as quais os escravos viviam contribuiu para a disseminação da tuberculose. Eles viviam em senzalas com poucas separações entre as famílias, em frente ao Paço Imperial, dispostas "em pequenos quarteirões, com pequenas travessas e jamais dali [os escravos] se afastavam" (FREITAS, 1985, p. 249).

A segunda causa mortis de maior vulto foi a que os médicos chamaram de uma forma geral por "febres" e que respondeu por 23 falecimentos, ou seja, 15,76% do total. Febres era uma forma encontrada no saber médico dos séculos XVII ao XIX para se referir aos seguintes sintomas: suor constante, calafrios, super-aquecimento corporal, náuseas e vômitos (FRANCO, 1829, p. 91). Elas podiam ser classificadas em vários tipos, e na nossa documentação encontramos febres "intermitentes", "crônicas" e "perniciosas". Pesquisas têm revelado que, na primeira metade do século XIX, as febres eram citadas como "palustres", "pútridas", "malignas", "lentas", "ardentes", "contínuas e héticas", "agudas", e "pestilentas", fazendo com que a determinação de um quadro nosológico fosse muito vago, dando a impressão de que a ocasião da morte explicava em muito o motivo do falecimento. Neste sentido, a observação direta sobre o estado do paciente diagnosticava os males de que se padecia.

Essa causa mortis pode parecer vaga aos olhos de alguém do nosso século, mas muitos médicos do século XIX devem ter tido um ensino específico para diagnosticá-la e classificá-la. É o que prescreve o Dr. Francisco de Mello Franco, médico da Câmara Real e sócio da Academia de Medicina de Lisboa, que oferecera ao rei lusitano o seu Ensaio sobre as febres, em 1829. Segundo ele não era tarefa fácil diagnosticar as febres que grassavam no Rio de Janeiro. Ele mesmo reconheceu que até um médico experiente teria muita dificuldade em diagnosticar e tratar com exatidão esse mal, por isso ele mesmo resolvera escrever um estudo que servisse de manual para os seus pares. Segundo o autor, medicação mais receitada era a quina[*3]. Os jesuítas, desde os primórdios do Brasil Colônia, já haviam aprendido com os nativos a importância de tal planta e aviavam vários medicamentos com esse produto, tanto que a quina ficou conhecida, segundo Franco, como o "pó dos jesuítas". Tanto é assim que os jesuítas, quando foram expulsos da fazenda de Santa Cruz, deixaram uma botica com mais de 600 produtos medicinais: a febrífuga [*4] contra vermes, lenho de guáiaco contra a sífilis e, sobretudo, muita quina. Talvez por isso tenha sido baixa a incidência de malária (febre perniciosa) entre a escravaria de Santa Cruz, pois ela representou apenas 6 mortes, 4,8% do total.

Acreditamos que os fatores culturais possam ter influenciado de forma decisiva sobre o viver e o morrer dos escravos, da mesma forma que influenciaram as suas expectativas e estratégias de sobrevivência. Tal perspectiva proporciona-nos uma outra forma de encarar estes dados que não seja uma visão que reduza as causas ao meio ambiente ou ao fator biológico. O sistema cultural partilhado pela comunidade escrava pode esclarecer como estes indivíduos entendiam, através da observação direta da natureza, os males que os afligiam, bem como os recursos medicinais mais eficazes, como, por exemplo, o fogo. Em muitas comunidades africanas, principalmente as bantus, o fogo é o elemento principal em um núcleo familiar (SLENES, 1999, p. 238). Os africanos mantinham o costume de possuir as suas próprias fogueiras, mas, diferentemente do costume europeu, elas eram colocadas dentro das suas habitações. No sentido prático, manter sempre as brasas de uma fogueira acesas faz muito sentido, pois toda a produção de alimentos, a fabricação de utensílios e até mesmo o aquecimento do lar se tornam mais eficazes quando o fogo está sempre à mão. Além disso, a fumaça constante espanta toda sorte de insetos, inclusive os mosquitos. A pesquisa de Slenes demonstrou que esse costume africano foi encontrado também no Brasil, onde se notou o ato de manter uma pequena fogueira em cada unidade familiar. Segundo ele, na região rural do centro-sul do Brasil, os senhores concediam às famílias recém-constituídas um fogo próprio que ficava a cargo desse núcleo familiar. Desta feita, cada família cuidava da sua própria alimentação, aquecia-se e, sobretudo, diferenciava-se socialmente dos escravos que não possuíam uma família formada como um sinal de distinção tão conhecida na sua terra de origem. Entretanto, assim como na África, contrariando o senso europeu, os escravos colocavam o fogo do lado de dentro de suas habitações. Falta-nos espaço para que trabalhemos, neste texto, todos os aspectos simbólicos do fogo[*5], mas por hora, o que desejamos ressaltar é que a presença do fogo nas senzalas, em nossa concepção, servia para afastar os mosquitos de dentro das habitações, o que, por conseguinte, impediu em muito a ação da transmissão da malária. Certo é que os escravos não sabiam, assim como os médicos da época, que a doença era transmitida pelo mosquito. No entanto, esta prática cultural africana, transplantada para o Brasil, ajudou-os a impedir a morte por essa doença.

As doenças do sistema digestivo também fizeram muitos óbitos e, como veremos na Tabela 2, abaixo, a diarréia e a enterite foram as responsáveis, juntas, por mais da metade do total.

Tabela 2. Óbitos de escravos da Fazenda Cruz: doenças do Sistema Digestivo

Fonte: Livro de óbitos de escravos da Fazenda Santa Cruz, 1861-1867. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.

A diarréia foi apontada como a causa mortis de 12 escravos e 15 escravas, perfazendo um total de 27 pessoas, ou seja, 46,5% das 58 pessoas mortas por doenças do sistema digestivo. Com efeito, é compreensivo que em uma área rural do Rio de Janeiro haja uma doença transmitida sobretudo por vermes e parasitas intestinais. Segundo o médico Imbert, citado por Karasch (2000), era normal que se encontrasse muitos vermes presentes nos corpos dos escravos no momento das autópsias.

Dracúnculos, solitárias, lombrigas e ancilóstomos povoavam a flora intestinal dos escravos e tais doenças possuíam o seu potencial destrutivo ampliado quando havia um quadro de desnutrição. Neste caso, a doença poderia evoluir, causando, além de indisposição para o serviço, a diarréia crônica e até a morte. Um outro complicador seria o fato de essas doenças não matarem rapidamente, obrigando os escravos a carregarem esse mal por muitos anos. Eles acabavam contraindo, ao longo da vida, outras doenças, vindo a falecer, e, por conta disso, é difícil precisar as doenças parasitárias que lhes acometiam.

É possível que o ancilóstomo (Ancilostoma duodenale) fosse o causador de muitas dessas patologias. Prendendo-se às paredes do intestino, ele extrai o sangue da vítima provocando uma anemia profunda. Geralmente ele é transmitido pela água contaminada, o que não seria raro de encontrar não só nos pântanos urbanos como também nos alagados rurais. Encontramos em Santa Cruz, na década de 1860, duas pessoas que morreram de icterícia (amarelão), e cinco por hidropisia (barriga d'água). Descalços e em contato direto com a terra, os escravos eram presa fácil dos vermes, e sobre isso nada se podia fazer.

A vida na Fazenda de Santa Cruz, assim como em muitas outras áreas rurais, não era nada fácil para os escravos. O stress da escravidão, o eito e os castigos físicos contribuíam para o desenvolvimento dessas patologias, que culminavam com o falecimento. A rotina dos escravos de Santa Cruz era árdua: de segunda à sexta a alvorada era às 4h da manhã; às 5h o escravo já deveria estar vestido, pois às 5h30 ele sofreria a revista para os trabalhos diários. Ao som do tambor que demarcava o tempo de todas as atividades diárias, os escravos eram separados em esquadras de serviço, que obedeciam ao gênero e à faixa etária destes. Às 11h havia a primeira pausa para a refeição, momento em que receberiam uma ração composta de carne seca e farinha. Ao por do sol, eles recebiam a segunda etapa, constituída de arroz e feijão cozidos em gordura do gado abatido. Por volta das 18h, regressavam à Fazenda e faziam uma ceia frugal. Às 21h tinha lugar a revista do recolher; então, um a um, os escravos seriam recontados e mandados cada qual para a sua senzala.

As crianças não escapavam ao trabalho. Crianças com mais de sete anos constituíam a esquadra dos "mínimos". A eles era reservado o serviço de retirar as ervas daninhas do campo, plantar sementes e ajudar na olaria. A sua ração era à parte e consistia em etapas diárias de rapaduras. Eles participavam do "caldeirão dos pobres", uma antiga refeição ofertada pelos jesuítas aos escravos doentes, às crianças menores de sete anos, e a alguns artífices. Constituía-se basicamente de miúdos dos reses e legumes que sobravam das colheitas. Muitos pais mentiam a idade dos filhos para que as crianças não participassem desta esquadra e se alimentassem do "caldeirão", mas se fossem descobertos, a ração dessas crianças seria cortada. Sem alternativa, os pais deixavam que os filhos retornassem à labuta.

Os escravos do sexo masculino eram escolhidos segundo as suas habilidades - e separados para artífices, desempenhando tarefas de pedreiro, carpinteiro, serralheiro, estucador, pintor, músico -, inclusive os cirurgiões, os quais possuem a sua história ligada à construção de um sistema de atendimento aos escravos, criado nos tempos do Brasil Colônia.

A fim de evitar a mortalidade escrava que observamos sob a administração da Imperial, em 1700, os jesuítas construíram um hospital para atender a escravaria doente. Mais tarde, em 1820, o hospital compunha-se de uma construção de dois andares com a melhor madeira de lei, com paredes amplas e altas que reservavam vinte e seis janelas no segundo pavimento e trinta e duas no térreo (FREITAS, 1985). Os doentes eram separados segundo o sexo e a faixa etária e com uma enfermaria para cada um deles. Não só os escravos eram tratados ali, mas todos os residentes da Fazenda, bem como os viajantes que, neste caso, pagariam pelo atendimento. A botica ocupava o térreo da instalação, e o inventário de 1884, reproduzido por Benedicto Freitas, demonstra a preciosidade do material à disposição dos médicos na Imperial Fazenda - que por sinal, não eram todos médicos. Até 1820, os escravos eram os próprios cirurgiões do hospital e eram mestres na arte da flebotomia (sangria). Os enfermeiros também eram escravos e os melhores entre eles eram escolhidos para serem os futuros cirurgiões [*6] .

O posto de cirurgião era almejado entre os escravos já que, no limite, significaria a fuga dos trabalhos braçais da Fazenda e a distinção entre a escravaria, ou seja, o respeito por parte dos seus. Tal função estava subordinada diretamente ao Superintendente da Fazenda, ou ao Administrador da Fazenda, estando desvinculado das ordens e ditos de qualquer capataz. Isso fazia com que os moços escravos se esmerassem no serviço de enfermagem a fim de, um dia quem sabe, galgar um dos maiores postos alcançados por um escravo. Receberia um soldo pequeno por isto, é verdade, mas certo.

Durante a sua formação, ele ficaria à mercê do hospital e seria sustentado pelo "caldeirão dos pobres" que, como vimos anteriormente, alimentava os inválidos e as crianças, sobretudo as órfãs. A formação de um escravo que desejasse trabalhar no hospital era difícil e laboriosa, e levaria anos a fio, já que a sua promoção dependia do fim da carreira do cirurgião vigente, uma vez que as vagas eram previamente estabelecidas. O primeiro escravo a ascender nesta distinção social foi o preto José Alves, que adquiriu o pomposo título de "1º cirurgião da Real Fazenda e Paço de Santa Cruz", e nesta função ficou de 1817, data da sua nomeação, até 1847.

A organização do hospital era tanta que a viajante Maria Graham, que visitou a Fazenda na década de 1820, ficou muito impressionada com o que viu. Gostou da arrumação e da limpeza das instalações. Infelizmente, o que ela disse sobre o hospital da Imperial Fazenda de Santa Cruz não poderia ser estendido ao Hospital da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro, daquele mesmo período.

Nas estantes da botica encontrava-se a quina em casca, o alcaçuz, o sene, e outras drogas, e um exemplar de uma antiga edição da Tríaga, uma panacéia sobre as enfermidades e suas curas, com forte apelo à idéia do segredo, que segundo Vera Beltrão Marques era fundamental, no pensamento jesuítico, para a obtenção do sucesso das fórmulas (MARQUES, 2003, p. 163-198). O livro trazia largas referências ao uso das raízes brasileiras e deve ter sido usado pelos cirurgiões mesmo após a expulsão da Cia. de Jesus. Em 1893, após a proclamação da República, o hospital foi ocupado pelas forças militares. Sendo mais tarde desativado, passou a abrigar uma empresa agropastoril e, por fim, foi definitivamente abandonado como instalação pública até ser demolido no início do século XX.

Após 1860, o novo superintendente da fazenda, o médico Ignácio José Garcia, cortou o "caldeirão dos pobres" sob a alegação de falta de verbas, e o hospital parece ter deixado de ser uma prioridade. Muitos doentes passaram a fugir das instalações e outros recusaram-se a nela entrar. Os trabalhadores da enfermaria sobreviviam como podiam e, por isto, eram obrigados a cultivar o seu próprio roçado, nas horas de folga; com o tempo, passaram a abandonar o hospital para irem para os seus roçados.

O caos e a rebeldia se instalaram na Imperial Fazenda de Santa Cruz. Para persuadir os escravos a voltarem às suas obrigações, Garcia passou a fazer do açoite a regra, e quase todo dia um escravo era castigado em frente ao Paço. O castigo corporal foi tanto que o próprio D. Pedro II mandou, em 1863, que os castigos fossem abolidos em Santa Cruz. A esse estado de coisas, os escravos reagiram com insubordinação e fugas em massa. Como se pode ver, ao mandar suprimir o "caldeirão dos pobres", Garcia atingiu os escravos que mais necessitavam desse sustento: os doentes, os inválidos, os artífices, as crianças e os que trabalhavam no hospital.

Garcia, porém, tornou-se o terror dos escravos na mesma medida em que o escravo José Fernandes transformou-se no terror da Fazenda[*7]. Fernandes fugiu e embrenhou-se na mata, ao lado de tantos outros escravos fugidos. Ele supostamente teria se refugiado em um quilombo situado em Itaguaí, também chamado com jocosidade pelo povo da época de "quilombo do Garcia" (FREITAS 1985, p. 258), o mais famoso da região. O rebelde escravo Fernandes montou um bando de escravos quilombolas e passou a fustigar a Fazenda cometendo pequenos furtos, principalmente à noite. Diante dessa situação, Garcia respondeu ameaçando os escravos insubordinados, ligados a Fernandes, de mandá-los para a execução de obras longínquas, empregá-los na construção de obras na Quinta da Boa Vista e em São Cristóvão. Muitos sentiram na pele o peso da obstinação.

Voltando à questão da mortalidade escrava na década de 1860, referente aos óbitos dos escravos, estes só podem ser devidamente entendidos se controlados segundo os padrões de sexo e faixa etária. Desta forma é que podemos compreender que os escravos que morriam na Fazenda estavam em tenra idade, ou seja, eram crianças de 0 a 4 anos. Definitivamente, a morte não é democrática, ela escolhe sexo e idade.

Gráfico 1. Óbitos de escravos da Fazenda de Santa Cruz, por tuberculose, segundo o sexo e a faixa etária

De fato tais dados são dignos de nota, pois dos 64 escravos mortos, 19 morreram na faixa etária entre 0 e 4 anos, ou seja, 29,6% do total. Outro fato importante é que a desigualdade entre os gêneros pode ser verificada mesmo nessa faixa etária, pois faleceram 12 meninos contra 7 meninas, ou seja, 18,7% contra 10,9%, respectivamente. Com efeito, o momento crucial para manutenção da vida escrava deveria ter a sua fase crítica no primeiro momento da vida; vencida esta fase, a expectativa de vida aumentava sobremaneira.

Os nascidos em cativeiro que rompessem a barreira dos primeiros quatro anos teriam mais chances de chegar à idade adulta. Os dados nos revelam que dos 5 aos 16 anos apenas 4 crianças morreram de tuberculose; dos 16 aos 25, faleceram 15 escravos, ou seja, 23,4%; dos 26 aos 35 anos, morreram 13 escravos, perfazendo um total de 20,3%, sempre com uma acentuada diferença entre homens e mulheres, no qual nota-se um nítido aumento das mortes para os primeiros.

Tais fatores podem ser explicados pelo fato de que os cativos recém-nascidos estivessem mais vulneráveis ao bacilo Koch, já que não possuíam nenhum tipo de resistência, uma vez que o bacilo se aproveita da debilidade do corpo humano e, em muitos casos, da existência de outras patologias. Mas novamente as questões sociais de vida e trabalho são fundamentais para o entendimento desta questão. A desestabilização social criada pela supressão do alimento dos cativos doentes e velhos, assim como os que trabalhavam no hospital, contribuiu para a morte dos pequeninos.

A Fazenda passou, a partir de 1860, por um decréscimo do número de homens, pois muitos fugiram, foram para as roças vizinhas, foram mandados para o calabouço ou morreram, conforme os dados apresentados. Isso fez com que a produção alimentícia entrasse em declínio pela falta de mão de obra. Sem alternativa, o intendente começa a usar as mulheres nos serviços braçais dos campos, principalmente nos arrozais onde, segundo Freitas, as escravas trabalhavam o dia inteiro com água pela cintura.

Assim, um grande contingente de mulheres foi deslocado para as tarefas pesadas do eito, de modo que passou a faltar-lhes tempo e recursos para o cuidado de suas crias. Até as escravas que trabalhavam como parteiras e amas no hospital tiveram de ser deslocadas para o eito. Entregues à própria sorte, ou aos cuidados precários do hospital que passava por crise, as crianças menores sucumbiam. Por outro lado, uma outra etapa difícil da vida era dos 16 aos 25 anos, justamente o momento no qual os escravos passavam a participar com mais intensidade da labuta diária.

Contudo, qual teria sido o impacto dessa mortalidade sobre a escravaria de Santa Cruz? Poderíamos afirmar que essa mortalidade era alta? Para tentarmos responder a essas questões, verificamos no livro de batismo da Imperial Fazenda de Santa Cruz, produzido pelo pároco do Curato de Santa Cruz, a quantidade de batismos de crianças, cruzamos os dados obtidos com os índices de óbitos de crianças com um ou menos anos de vida e com eles montamos o Gráfico 3, abaixo localizado:

Gráfico 3, Taxa de batismo e óbito infantil, por sexo e faixa etária de escravos de 0 a 4 anos

Fonte:ACMRJ: Livro de óbitos da Imperial Fazenda de Santa Cruz, 1861-1867

Como se pode ver, os anos de 1860 e 1861 devem ter sido os mais críticos para os escravos, pois uma grande incidência de tuberculose ceifou muitas vidas, sobretudo do sexo masculino. Houve 20 óbitos de meninos contra 17 nascimentos, assim como mais mortes de meninas do que nascimento de meninos, ou seja, 14 contra 10. No entanto, a partir daí, o número de nascimentos passou a crescer gradativamente até que encontramos uma alta significativa em 1866 e 1867, sinal de que ou a crise social estava sendo ultrapassada, ou o surto de tuberculose e febre havia passado. Se esses escravos ultrapassaram os 10 anos de vida, é bem provável que eles tenham chegado à fase adulta. Os escravos de Santa Cruz não possuíam, pois, uma taxa de mortalidade maior que a de nascimentos. No entanto, dos 264 escravos nascidos na Fazenda, 174 morreram de doenças infectoparasitárias, ou seja, 65,9% dos escravos não sobreviviam aos dois primeiros anos de vida.

A situação na Imperial Fazenda de Santa Cruz só voltou à calma após a assunção do comando da Imperial Fazenda pelo intendente José de Saldanha da Gama, em 1870, o qual tratou de retomar as atividades do "caldeirão dos pobres", de abolir a prática dos castigos físicos e de alforriar os escravos mais velhos e estropiados às custas da Fazenda. Por último, iniciou a reforma do antigo hospital e ainda colocou escravos e libertos para dirigirem os seus próprios trabalhos.

Para concluir, poderíamos dizer que a escravaria da Imperial Fazenda de Santa Cruz encontrou os seus próprios meios de enfrentar as intempéries da vida e as enfermidades que a afligia. Cirurgiões negros urdiam os conhecimentos adquiridos com o saber médico à prática diária voltada para o uso do que lhe era eficaz: a botica deixada pelos Jesuítas dotada de seus segredos era largamente utilizada.

A varíola, o escorbuto e o maculo, resquícios do famigerado tráfico, agora extinto, já quase não existem, e a febre amarela, o temor dos europeus, nem avizinhava-se à região. Tudo isso foi alcançado pelas práticas de cirurgiões que, quando necessário, não hesitaram em lançar mão da quina, do bezoártico, e do clister - arrolado como carga da botica da Fazenda. Ao passo que os escravos pareciam ter mantido vivas as tradições deixadas pelos jesuítas, não só concernentes à saúde mas também à organização da lida diária, uma vez desrespeitada essa tradição pelos incautos administradores, a rebelião tomou conta da Fazenda, transformando-a em um grande problema para a administração. A supressão do "caldeirão dos pobres" e o aumento dos castigos corporais, aliados aos prenúncios de deportação dos escravos para lugares longínquos, fizeram com que eles se revoltassem contra esse estado de coisas imposto por quem parecia querer quebrar os antigos laços de tradições. Infelizmente, os maiores penalizados foram os próprios escravos, haja vista o aumento da mortalidade.

As condições sociais, sobretudo dos escravos, estavam amplamente relacionadas à manutenção da saúde. Entretanto, a manutenção desta passa pelas ações decisórias daqueles que, em última instância, possuíam o direito de vida e morte sobre a escravaria. Tais questões nos fazem pensar como a saúde pública, ainda hoje, está ligada em muitos casos a medidas políticas implementadas que nem sempre atendem a demanda daqueles que dela mais necessitam. Ao terminar este artigo, sou tomado de assalto pela impressão de que temos um monte de doutores Garcia por aí.

Referências

Arquivos:

Fazenda Nacional de Santa Cruz, Cx. 507; Códice 1122 v. 19. Arquivo Nacional.
Livro de óbitos de escravos do Curato de Santa Cruz, 1861-1867. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
Livro de batismo de escravos do Curato de Santa Cruz, 1861-1867. Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro.
FREITAS, Benedicto de. História de Santa Cruz. Vol. I. Era Jesuítica (1567-1759). Rio de Janeiro: Edições do autor, 1985.
______, História de Santa Cruz. Vol II. Vice-reis e reinado (1760-1821). Rio de Janeiro: Edições do autor, 1985.
_______, História de Santa Cruz. Vol III. Império (1822-1889).), Rio de Janeiro: Edições do autor, 1985.

Livros e Periódicos:

CALAINHO, Daniela Buono. Jesuítas e medicina no Brasil colonial. Tempo: revista do Departamento de História da UFF, Rio de Janeiro, v. 10, n. 19, p. 61-75, 2005.
CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras. 1996
ENGEMANN, Carlos. Os Servos de Santo Inácio a Serviço do Imperador. 2000. Dissertação (Mestrado em História) - UFRJ, Rio de Janeiro, 2002
FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar: cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro: Vício de Leitura, 2002.
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
KIPLE, Kenneth F. The African exchange: toward a biological history of black people. Durham: Duke University Press, 1988.
PIMENTA, T. S. Barbeiros-sangradores e curandeiros no Brasil (1808-1828). História, Ciências, Saúde - Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 1998.
PÔRTO, Ângela. A assistência médica aos escravos no Rio de Janeiro: o tratamento homeopático. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa,1988. Papéis Avulsos, 7.
SLENES, Robert W. Na Senzala Uma Flor: as esperanças e as recordações na formação da família escrava. Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1999.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Topo
O autor é mestre em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e doutorando em História das Ciências e da Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz, onde desenvolve ,sob a orientação da Profa. Dra. Angela Porto, a tese: Práticas de saúde e sociabilidade escrava na Imperial Fazenda Santa Cruz, da segunda metade do século XIX.
Apesar de não ter elegido o elemento escravo como foco central de sua análise, Freitas descreve o cotidiano rural do Rio de Janeiro desde os tempos jesuíticos, traçando um panorama rico em contrastes que descrevem o trabalho no eito, o suposto paternalismo do senhor benevolente - bem ao estilo da análise da época -, o cotidiano, a habitação escrava, o castigo e a rebeldia.
Agradeço a Daniele Salgueiro por ter colhido esses dados
Como se sabe, a quina é uma planta largamente encontrada na América do Sul, da qual se produz o alcalóide quinino que possui propriedades analgésicas e antitérmicas e que, nesse caso, serve para combater a malária.
Febrífuga é uma pequena planta espinhosa da família das ramnáceas encontradas no Uruguai, Paraguai, Argentina e sul do Brasil. Cf. REISSEK, S.; MARTIUS, C. F. R. Flora Brasiliensis 11. p. 100.
Para um estudo mais aprofundando sobre as questões relacionadas ao fogo, veja o excepcional trabalho de Robert Slenes, Na Senzala uma flor (particularmente o capítulo 4), de quem me aproprio para a construção dessa reflexão.
A equipe era formada por dois cirurgiões, um ajudante, dois barbeiros-sangradores, dois cozinheiros, um enfermeiro e duas atendentes. Cada enfermo era internado segundo uma guia, confeccionada pelos enfermeiros, que continha a data da entrada, o local, o medicamento ministrado e o diagnóstico. Os doentes particulares pagavam uma diária de 1$600. Esse valor parece ser um pouco alto, mas, se Freitas estiver correto, deveria suprir as despesas com os demais escravos que eram custeados pelo próprio Estado, já que lhes pertenciam.Cf. FREITAS, op. cit., p. 234.
Fazenda Nacional de Santa Cruz, Cx. 507. Arquivo Nacional.