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Artigo publicado na edição nº 35 de abril de 2009.
Controle social e moralidade na republicana cidade de São Paulo
Luís Antônio Francisco de Souza

O Largo da Sé começou a ficar diferente por causa das companhias mútuas, e das casas de bombons, que são umas verdadeiras roubalheiras mas que em compensação aí construíram os primeiros arranha-céus que nem chegam à metade dos últimos arranha-céus que não chegarão decerto à metade dos futuros arranha-céus. O Largo da Sé é, sem perigo de contestação, o ponto de conjunção das ruas 15 de novembro e direita que também são, sem perigo de contestação, as principais de São Paulo. De modo que as pessoas que querem fazer o célebre triângulo, seja ou por negócios e business ou para o simples e civilizado footing, passam fatalmente no Largo da Sé. Quando um estrangeiro saudoso regressa à pátria e procura o Largo da Sé, encontra no lugar a Praça da Sé. Mas é a mesma coisa. (Oswald de Andrade, 1928)

As intervenções urbanas e a grandiosidade dos edifícios públicos de São Paulo expressavam a nova face do poder dos governos republicanos. A construção de novos edifícios para abrigar os manicômios, as prisões, os mercados, os museus, os quartéis e as repartições da polícia, assim como as reformas saneadoras da cidade, denotam a força da economia cafeeira e do parque industrial. No entanto, o desenvolvimento urbano de São Paulo parecia planta de estufa:

[...] entre as melhorias realizadas havia serviços e projetos cosméticos que tornavam a vida mais agradável para os ricos nos lugares onde eles moravam e trabalhavam e que eram por eles freqüentados. As classes médias eram esmagadas por pressões inflacionárias, e as classes baixas eram relegadas aos cortiços, que proliferavam[*1].

O processo de crescimento urbano, impulsionado pela prestação de serviços por empreendedores particulares, aumentou o preço do solo. A população pobre, principalmente os ex-escravos e os imigrantes recém-chegados, passava a morar em habitações coletivas nos baixios úmidos ou nos bairros distantes da cidade. Os projetos de construção de casas e vilas baratas não davam conta da carência de habitações populares na cidade. A arquitetura popular se prestava a impor padrões de moralidade estranhos à vida comunitária das famílias operárias. As vilas operárias, casas higiênicas e vilas cidadelas, impunham uma nova organização da vida, predispondo o espaço doméstico ao olhar das autoridades públicas. As janelas davam diretamente para a rua e as ruelas e entradas eram suficientemente desguarnecidas e retilíneas para permitir a entrada de fiscais e policiais, ou para uma rápida olhadela à distância. Aparentemente, o conceito de progresso e a ideia correlata de civilização dissociavam o desenvolvimento material das condições de vida das pessoas comuns[*2].

Como política de embelezamento de determinadas áreas da cidade, as intervenções urbanas encaminhavam-se na direção de separar o comércio elegante e as habitações chiques das áreas industriais e de grande concentração de operários. As áreas centrais da cidade recebiam atenção especial por parte dos administradores públicos e vultosos recursos financeiros foram gastos no alinhamento de ruas, na construção de pontes e no saneamento de várzeas. Em pouco tempo a cidade passou a ostentar uma face urbana europeia, com elegantes edifícios públicos, casas bancárias, comerciais, estações e transporte público por bonde elétrico. O antigo cedeu espaço para o novo, conforme Oswald de Andrade:

Anunciou-se que São Paulo ia ter bondes elétricos. Os tímidos veículos puxados a burros, que cortavam a morna da cidade provinciana, iam desaparecer para sempre. Não mais veríamos, na descida da ladeira de Santo Antônio, em frente à nossa casa, o bonde descer sozinho equilibrado pelo breque do condutor. E o par de burros seguindo depois.

E mais,

Um mistério esse negócio de eletricidade. Ninguém sabia como era. Caso é que funcionava. Para isso as ruas da pequena São Paulo de 1900 enchiam-se de fios e de postes[*3].

O trânsito público de veículos e de pedestres ganhou inúmeras referências na imprensa e nas discussões legislativas. Todos achavam necessária a promulgação de posturas municipais e de portarias policiais que definissem medidas sobre circulação, comércio ambulante, locais de espetáculos, quiosques e barraquinhas. A edilidade pretendeu em vários momentos obrigar que pedestres andassem em mãos diferentes e, quando parados, permanecessem nas laterais dos passeios para facilitar a locomoção e evitar a ação de criminosos[*4].

A matéria publicada no jornal A Notícia[*5] , de 15 de fevereiro de 1908, a propósito da visita de Afonso Penna à cidade, reclama da situação caótica do centro em dias de movimentação popular:

A aglomeração de povo e famílias no triângulo central foi extraordinária. Foi tão grande como nos dias de maior concorrência das festas de carnaval. E como nessas ocasiões acontece foi dificílima e até mesmo arriscadíssima a circulação em certos trechos das ruas centrais. [...] Temos notado que a polícia se contenta em dobrar ou triplicar o número de praças encarregadas de percorrer as ruas do triângulo, confundidos nas ondas de povo, sem cuidar muito de manter desembaraçada a circulação. [...] Foi o que se deu ainda anteontem à noite. Na rua Direita, por causa do coreto do Largo da Misericórdia, o povo que ali ficou parado para ouvir à musica obstruiu a circulação de tal modo que era impossível atravessar-se aquele trecho, e como aos que tinham chegado até aquele ponto dificílimo era voltar para trás, por causa dos que continuavam a vir em direção ao mesmo, aumentava-se sempre mais o perigo, ao qual se tornava preciso fugir a força de empurrões. A polícia não deve mais consentir que se estabeleçam coretos nas ruas centrais.

A polícia tinha o papel de fiscalizar o espaço público, como resumiu em seu relatório o secretário de segurança, José Cardoso de Almeida, em 1903:

Durante as grandes festas e solenidades públicas - semana santa, carnaval e romaria aos cemitérios - como nas manifestações e diversões franqueadas a toda a gente, o serviço de policiamento foi regularmente executado, correndo tudo na melhor ordem. No que toca particularmente ao carnaval, esse serviço teve os elogios unânimes da imprensa. [...] Na noite de 15, alguns jovens tresloucados quiseram perturbar a perfeita tranqüilidade que reinava nesta Capital, aproveitando-se da circunstância de estar a cidade em festa e suas ruas centrais repletas de famílias, - o que dificultara a ação enérgica da polícia, - organizaram-se em pequenos grupos e percorreram essas ruas em todos os sentidos, fazendo um alarido que logo se via, resultava mais da falta de educação do que de entusiasmo revolucionário.

A expulsão do comércio popular das áreas mais centrais da cidade reflete igualmente esta prevenção contra as aglomerações que ameaçavam a ordem. Em 27 de maio de 1907, um certo A. de Andrade solicitou autorização da Câmara Municipal para instalar e explorar uma empresa de "cinematógrafos-anúncios" nos largos do perímetro central da cidade. Mas a Comissão de Justiça da Câmara não expediu alvará porque pretendia "evitar a aglomeração de espectadores gratuitos em pontos de grande movimento, como são os largos do centro da cidade"[*6]. Os vereadores estavam particularmente interessados neste problema, conforme o discurso de José Piedade em 1918:

Ontem fui testemunha ocular de um caso que se tornou verdadeiramente escandaloso, ofensivo aos foros de civilização de que goza a nossa cidade, ao ver transitando pela principal via pública, pela rua 15 de novembro, diversos carros abertos, com indivíduos fantasiados, numa vozeria ensurdecedora, ao toque de batuque e de cornetas, anunciando espetáculos de um circo de cavalinhos [...] Toda a gente repetia estas palavras: "Vergonha para São Paulo! Não estamos num lugarejo do sertão, onde se permitia esse sistema de anúncios!" Por isso, o vereador encaminhou um projeto de lei com a seguinte disposição: "Da data da publicação desta lei em diante, ficam proibidas, nas ruas centrais da cidade, os anúncios de circos de cavalinhos e de outras quaisquer diversões, por meio de carros ou automóveis levando indivíduos fantasiados, fazendo alarido perturbador do sossego publico.[*7]

O mesmo tema do sossego e da limitação de manifestações públicas não condizentes com novos foros de civilização retornou em 16 de julho de 1921, no discurso do vereador Luiz Fonseca:

Todos que percorrem o centro da nossa cidade têm, naturalmente, assistido ao espetáculo deprimente e até - podemos dizê-lo - irritante, de um sem número de indivíduos, que transitam pelas ruas, apregoando, em altos brados, as virtudes desta ou daquela mercadoria, deste ou daquele objeto. A princípio era apenas o "homem da rodinha", que fazendo prodígios de equilíbrio sobre uma rodinha, por entre os transeuntes, anunciava a excelência de certos produtos. Depois veio essa chusma de camelots, de todos os gêneros, que proclamavam aos berros, fazendo escândalos, a superioridade de uma marca de cigarros sobre as outras, etc. Agora andam quase sempre dois desses indivíduos, grotescamente vestidos, pela rua 15 de novembro, em cada passeio. Um deles, sempre aos berros, e acompanhado de grande número de desocupados, preconiza a vantagem, a superioridade de certos cigarros, cujo papel não é colado com goma. O outro, também acompanhado de desocupados, retruca-lhe, no mesmo metal de voz, procurando demonstrar que tais cigarros são melhores do que os do seu opositor, apesar de terem o papel colado com goma. As vezes param ambos e com eles o trânsito. O duelo de palavras é então face a face, o povo se aglomera e eles conseguiram o seu fim. Há ainda a assinalar o pior de todos esses camelots, o que assobia. Quem não o conhece, quem não teve ainda os tímpanos irritados pelo assobio estridente, contínuo, sibilante, cortante, como uma navalha, desse homem?

O alarmado vereador indicava que se proibisse, nas ruas centrais da cidade, além da venda ou pregão de mercadorias, o uso de fantasias e de roupas exageradas [*8]. A administração municipal tendia a regulamentar e não a impedir o comércio ambulante. O prefeito Washington Luis propunha medidas nesse sentido. Os ambulantes deviam portar licenças "pessoais e intransmissíveis" na forma de carteiras com o respectivo retrato:

Caso o Gabinete Estadual de Identificação continue a não poder fornecer as suas carteiras, poder-se-ia exigir que os pretendentes a tais licenças fornecessem as suas fotografias, de pequeno formato, para serem rubricadas e adaptadas às atuais carteiras; ficariam faltando as impressões digitais, mas, para tal fim, isso pouco adiantaria. Igual medida seria necessária com relação aos cocheiros, sendo de notar que ela já está em prática para os chauffeurs, porque a Polícia o exige[*9].

Os moradores do bairro do Bom Retiro, em 1897, solicitavam à municipalidade melhorias urbanas:

Sendo a rua Itaboca uma das mais freqüentadas neste bairro, visto como por ela passam não só os operários que vão para a fábrica de tecidos Anhaia assim como os que trabalham na Cia. Inglesa, sua maioria é por esta rua que transitam; como V. Sa. talvez não tenham tido ocasião de verem, estes empregados saem sempre às 8 horas da noite e é por isto que viemos pedir a V. Sas. providências afim de ser colocados uns 3 lampiões em dita rua; esta rua é pequena porém todos os meses estão se construindo prédios, em pouco tempo estará cheia de edifícios[*10].

A Várzea do Carmo era uma área da cidade que estava relegada ao abandono. Às margens do rio inúmeras pessoas dispensavam suas necessidades. O rio era empregado para lavagem de roupas, os cocheiros ali tratavam de suas alimárias e lavavam seus veículos. Vez por outra, aparecia um corpo boiando. Os moleques viviam às correrias, os valentões disputavam as atenções das italianinhas, os operários brigavam, coisas surpreendentes ocorriam. O guarda fiscal Júlio Augusto da Fonseca remeteu um ofício ao presidente da Intendência Municipal, em 02/08/1890:

Levo ao vosso conhecimento que achando-me de vigia como determinastes, na Ponte do Carmo, notei que o Corpo Policial deposita o lixo do Quartel nos taludes do lado da Rua do Hospício e que as praças do mesmo Corpo, nos taludes a margem do rio ali vão trocar roupas e ficam em posição escandalosa para com o público, o que vos comunico para pedires providência a quem de direito para que cessem tais abusos, e bem assim abaixo do quiosque por onde dessem as águas das chuvas é um foco de matérias excrementícias, o que vos participo para devidos efeitos e fins conveniente[*11].

Havia preocupação com os focos de contágio. Em diferentes legislaturas os vereadores manifestaram interesse em a prefeitura dotar São Paulo de hospitais para o tratamento de moléstias contagiosas, de abrigos para a velhice, para a miséria e para a infância desprotegida, além de colônias escolares, distantes dos centros populosos. Em 1918, por exemplo, a Comissão de Finanças da Câmara Municipal afirmou que o combate à lepra, à tuberculose e à sífilis deveria ser

[...] um dever dos poderes públicos tão primordial como o de manter o serviço de esgotos, sem os quais é impossível compreender uma cidade. Assistir aos leprosos é uma obra de piedade e filantropia que a solidariedade social nos impõe. Tão desgraçado é o leproso, que a própria esmola não lhe é dada, mas "atirada", conforme a expressão de um de seus protetores. E os sofrimentos da moléstia o tornam mais infeliz, talvez, do que o paciente de qualquer outra enfermidade.

O controle e profilaxia da doença eram considerados problemáticos porque os doentes do Guapira "freqüentam os cafés, e cinemas da cidade, fazem as refeições em restaurantes, transportam-se em bondes e automóveis, pernoitam em hotéis, espalhando assim o pavoroso bacilo de Hansen"[*12].

O tema do controle do escarro também revela a preocupação com a moralização dos hábitos populares. Adriano Marrey Jr., em 1919, afirmou o seguinte:

A proibição de escarrar no chão constitui de há muito uma medida de profilaxia anti-tuberculose, recomendada pelos higienistas e tisiólogos, e já adotada na grande maioria dos países civilizados. [...] Entre nós, já no Rio de Janeiro está há bastante tempo em vigor uma postura municipal, obrigando os diversos estabelecimentos públicos e casas comerciais a instalarem escarradeiras higiênicas em número suficiente e dispondo sobre a proibição de escarrar no chão[*13].

Em 1911 o Secretário da Justiça e Segurança pública recomendava que os guardas auxiliassem os agentes da prefeitura na arrecadação da taxa sanitária, na proibição de jogar papeis e cascas de frutas nas áreas públicas, de coletar trapos nas praças e ruas da cidade e na fiscalização contra conspurcação de muros e monumentos. A ocupação do centro da cidade passou a privilegiar as atividades elegantes, o comércio fino, a hotelaria de alto padrão, além de atividades recreativas e culturais, como teatro, cinema e clubes dançantes. Por isso, a municipalidade procurou afastar do centro o que provocasse aglomeração popular, exalações incômodas e pessoas em trajes e condições inadequadas. Dessa forma, o matadouro municipal, as instituições de caridade, os asilos, os presídios e as oficinas foram sendo transferidos para áreas mais afastadas e isoladas da cidade, assim como os bairros operários foram circunscritos.

As autoridades urbanas trocavam correspondência sobre estabelecimentos comerciais e hoteis suspeitos de serem fachadas para lupanares ou para casas de jogos. Num ofício reservado da Secretaria de Polícia da Província de São Paulo ao presidente da Câmara Municipal, datado de 29/04/1887, o chefe de polícia assim comentava:

É sabido que um dos principais pontos de imoralidade e prostituição nesta Capital é a casa de Belisário de tal, à rua da Esperança, onde sob o dístico restaurant, acobertam-se as cenas mais hediondas da devassidão e do crime. Recolhem-se nessas casas menores desvalidas que ai vão vender a sua honra; o jogo e a bebida são freqüentes, de maneira a perturbar constantemente a ordem pública. Nestas circunstâncias, a vista do artigo 162 das Posturas Municipais e a bem da moralidade e sossego público, vou rogar a V. Sa. que se sirva de mandar cassar a licença que tem o dito Belisário, do seu restaurant, afim de que possa esta chefatura providenciar em ordem a acabar com aquele estabelecimento.

Em 1905, foi a vez da prefeitura se queixar, num ofício dirigido ao chefe de polícia Augusto Meirelles Reis, contra um botequim situado à rua da Estação, 41, que funcionava além da hora permitida. Por solicitação do chefe de polícia, o terceiro delegado de Santa Ifigênia, em 13/09/1905, assim informou:

De há muito impõe-se a necessidade de uma providencia definitiva que ponha cobro às repetidas desordens em um botequim da rua da estação, 41, de propriedade de Manoel Feliciano Ferreira e que funciona com o pomposo titulo de "Café Cantante". Já muito conhecido da polícia, esse botequim é freqüentado por desordeiros incorrigíveis e indivíduos de má nota que ali fazem o centro das suas façanhas, dando enorme trabalho à autoridade da circunscrição. Ainda ontem, deu-se ali mais uma grave ocorrência, sendo preso em flagrante um indivíduo que disparou um tiro de revólver contra um outro que o ferira, arremessando-lhe uma garrafa à cabeça e evadindo-se em seguida; por esta delegacia está correndo o respectivo inquérito. Em tais condições, solicito a V. Excia. a bem da ordem pública para que seja cassada, com urgência, a licença do referido botequim[*14].

Não obstante a enérgica denúncia do delegado, o prefeito Antônio Prado, em 20/09/1905, apenas cassou a licença especial de funcionamento do botequim após o horário regular do comércio. Este tipo de comércio seria constantemente criticado pela Câmara Municipal. O vereador Luiz Fonseca, de forma mais radical, condenava a renovação de licenças de funcionamento de cabarés ou restaurantes-cabarés por causa dos efeitos perversos que estes provocavam na "mocidade". Dizia que o bar do Teatro Municipal não passava de um cabaré disfarçado, onde "começam as libações noturnas. As mundanas ali se reúnem para fazer a sua coleta de rapazes"[*15]. A fama do bar chegou à ficção. Madame Pommery, de Hilário Tácito, diz o seguinte: "Agora, o que se precisa lembrar é a graciosa transformação do bar do Municipal em feira de amores caros, ou antecâmara dos vários paraísos [...]."[*16] Na cidade, a vida elegante dos cafés-dançantes mantinha interfaces com a vida taciturna dos albergues e presídios. Afinal Silvio Floreal diria que os "vícios crescem e avolumam-se: dilatam o seu império, na razão direta da civilização"[*17].

As novas modalidades de diversões elegantes e a intensificação da vida noturna abriam espaço para a sociabilidade mais frouxa da Bèlle Époque? Sílvio Floreal, em suas rondas, afirmava que logo ao cair da noite, na esplanada do Municipal, onde os lampiões "espalhavam os seus brilhos", tanto homens como mulheres peregrinavam aos "cabarés e casas do vício", em busca de uma taça de champagne ou da embriaguez de um jazz-band:

De um tempo a esta parte, a vida noturna recrudesceu consideravelmente. Uma chusma de caras novas, vindas de toda a parte, transita aí por estes desfiladeiros da volúpia dando ar da sua falida graça. Multiplicaram-se também os alcouces, onde se acoitam as vendedoras de frisson, com um menu variado e esquisito, apto a satisfazer as mais extremadas exigências gustativas do "Coronel" mais sorna que tiver a patetice de por lá aparecer. Nesses labirintos, por onde o vício torcicola, silvando lascívia, espalhando orgasmos na faina animal de contaminar e arruinar corpos, com o ímã saboroso, sutilmente chula, da brejeirice, o tipo mais cotado pelas galantes panteras da luxúria dessas furnas iluminadas a giorno é sempre o novo rico [...] que elas exploram suavemente, com a esperteza dos cinco mundos que trazem na bossa.[*18]

O embelezamento urbano do centro de São Paulo permitiu a exposição pública da vida privada. Assistir à apresentação da Banda de Música da Força Pública no Largo do Palácio, participar de convescotes amenos sob a ramagem das árvores do Jardim da Luz, ouvir uma ópera no Teatro Municipal ou simplesmente fazer o triângulo, eram expressões da bipartição do espaço urbano, cujos efeitos percebemos ainda hoje: deleite e exclusão. Para o grupo social que se beneficiou da grandeza do café e da indústria nascente, Oswald de Andrade dizia que o mundo é um belo passatempo.

Referências bibliográficas

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FLOREAL, Sylvio. Ronda da Meia-noite. Vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo: Tipografia Cupolo, 1925.
FONSECA, Guido. A prostituição em São Paulo. São Paulo: Resenha universitária, 1982.
MORSE, Richard. Economia manchesteriana e sociologia paulista. In: A volta de McLuhanaíma. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
PINTO, Maria Inez Machado Borges. Cotidiano e Sobrevivência. A vida do trabalhador pobre na cidade de São Paulo. São Paulo: Edusp, 1994.
RAGO, Luiza Margareth. Do cabaré ao lar. A utopia da cidade disciplinar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
ROLNIK, Raquel. Cada um no seu lugar. São Paulo, geografia do poder. Dissertação (Mestrado)- FAU-USP, São Paulo, 1981.
SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo, 1822-1940. São Paulo: Annablume, 1999.
SCHMIDT, Afonso. São Paulo dos meus amores. São Paulo: Clube do livro, 1954.
TÁCITO, Hilário. Madame Pommery. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992.
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Doutor em Sociologia. Professor Doutor da Universidade Estadual Paulista (Unesp, campus de Marília).
MORSE, Richard. Economia manchesteriana e sociologia paulista. In: A volta de McLuhanaíma. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 136.
Para um relato detalhado desse processo, ver Rolnik, 1981 p. 54; Rago, 1985; Cunha, 1986 e Salla, 1999.
Oswald de Andrade. Um homem sem profissão. Sob as ordens de mamãe. São Paulo: Globo; Secretaria da Cultura de São Paulo, 1990. p. 46-47.
Em 22/03/1912, professores da Escola Modelo Caetano de Campos e do Jardim da Infância reclamavam das condições de insegurança na praça da República e pediam a suspensão do tráfego de veículos, exceto dos bondes, nas horas de entrada e saída de alunos. Seis dias depois, o terceiro delegado auxiliar, Arthur Rudge Ramos, responsável pela regulamentação do trânsito de veículos, afirmou que "raríssimos têm sido os desastres naquele ponto, e, segundo creio, apenas aí se verificou o atropelamento de um aluno, por um bond da Light, isto há cerca de dois anos". A Light & Power sujeitou seu regulamento para o tráfego de bondes à polícia. Rudge Ramos, em 21/03/1912, disse que "grande número de encontros entre bonds e outros veículos são ocasionados por culpa de motorneiros, chauffeurs e cocheiros, quase sempre por excesso de velocidade". Coleção Papéis Avulsos do Arquivo Histórico Municipal "Washington Luís", 1912.
Os manuscritos, incluindo jornais, aqui citados foram pesquisados nos acervos do Arquivo do Estado de São Paulo (AESP) e do Arquivo Histórico Municipal "Washington Luís" (AHM).
Coleção Papéis Avulsos do AHM, 1908, p. 2.055.
Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1918, p. 20-21. (AHM).
Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1921, p. 277. (AHM).
Relatório do Prefeito de São Paulo, 1916. (AHM).
Coleção Papéis Avulsos do AHM, 1897, p. 982.
Coleção Papéis Avulsos do AHM, 1890, p. 588.
Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1918, p. 317. (AHM).
Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1919, p. 28. (AHM).
Latas "Polícia", 1887 e 1905 (AESP).
Atas da Câmara Municipal de São Paulo, 1924, pg. 1038. (AHM).
TÁCITO, Hilário. Madame Pommery. Campinas: Editora da Unicamp; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992. p. 117.
FLOREAL, Sylvio. Ronda da Meia-noite. Vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo: Tipografia Cupolo, 1925. p. 19.
FLOREAL, Sylvio. Ronda da Meia-noite. Vícios, misérias e esplendores da cidade de São Paulo. São Paulo: Tipografia Cupolo, 1925. p. 18-24