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Artigo publicado na edição nº 39 de dezembro de 2009.
Vigilância aos intelectuais:
entre o direito da iniciativa privada e o cerceamento a livre expressão e ao exercício da profissão

Luciana da Conceição Feltrim

Objetivando refletir sobre perseguições realizadas pela DEOPS-SP, órgão de coerção social, política e cultural que atuou anos 1950, contra dois intelectuais paulistanos, foram coletadas e analizadas como fontes primárias documentos do Fundo DEOPS-SP, que está sob guarda do Arquivo Público do Estado de São Paulo, este localizado na Zona Norte de São Paulo.

O período em questão tem suscitado novas reflexões em decorrência das contradições que a cada momento se evidenciam a partir de informações advindas de documentos existentes nos acervos recentemente disponíbilizados para consulta. As contradições aludidas expressam-se na permanência de leis de exceção em um período considerado pela historiografia como dos mais democráticos da história republicana até então.

No percurso da análise documental, percebemos que os critérios para a caracterização do que seria ato subversivo para o Estado, conforme manifesta-se nas ações dos policiais, põe-se de forma incoerente, pois, como se não bastasse manter a repressão aos integrantes do Partido Comunista, tal coerção não se restringia a seus quadros, atingindo as mais diversas pessoas com inserções sociais distintas e, por vezes, sem aproximação com o ideário do PCB. Quem eram então estes suspeitos? Até que ponto pode-se continuar afirmando que todos pertenciam ao Partido Comunista?

Encontra-se nessa documentação uma descrição pormenorizada das mobilizações políticas, sociais e culturais no estado de São Paulo, no período aqui relacionado, e na qual há fichamentos dos trabalhadores grevistas, registros de inúmeras conferências de diversos segmentos e sobre variados assuntos, documentos acerca de atos de estudantes, assim como materiais apreendidos nas residências de intelectuais da alta burguesia paulistana.

Selecionamos, da pesquisa iniciada, para a elaboração deste artigo, dois dossiês: um contra a pessoa de nome João Beline Burza[*1], que era um psiquiatra, e outro referente à apreensão de artigos de uma pessoa chamada Elias Chaves Neto, que foi diretor e orientador da Revista Brasiliense em cujo acervo, segundo a censura, foram encontrados vários artigos de cunho político-marxista[*2].

Esses dois dossiês fazem parte do tema “Comunismo” e integram a série documental Ordem Social (OS), que seguiu, neste caso, a classificação utilizada pelos funcionários da DOPS daqueles idos tempos.

A análise da estrutura interna da DOPS permitiu descortinar seus distintos setores, entre os quais destacamos as Delegacias de Ordem Política (OP) e a Delegacia de Ordem Social (OS). Sintetizando as diferenças entre ambas, à Ordem Política competia analisar os inquéritos referentes à política, à vigilância aos partidos políticos, organizar os dossiês de cada suspeito ou organização e formalizar os processos que deveriam tramitar pela burocracia pública. Já à de Ordem Social cabia organizar o policiamento das reuniões e manifestações públicas de segmentos diversificados, assim como cadastros das pessoas consideradas subversivas, ou seja, pessoas orientadas por crenças ou ideologias compreendidas como contrárias aos preceitos democráticos[*3].

Cumprindo a função de “vigilância em prol da democracia”, os agentes da DOPS passaram a acompanhar as atividades desenvolvidas por quaisquer pessoas que tivessem projeção pública, mesmo que tal projeção decorresse do reconhecimento da competência de alguém, como intelectuais, mesmo que estes estivessem voltados para seus próprios interesses profissionais.

Nessa vigilância, ideias que fossem veiculadas, comentários, altercações, eram todos registrados, particularmente caso referissem a questões políticas, e suas posições eram rapidamente associadas às que o Partido Comunista veiculava na época. O mapeamento registra principalmente que a suspeição recai sobre ideias que poderiam ser associadas a críticas ao desenvolvimento do país nos moldes subordinados e atrelados ao capital estrangeiro, ou quando se referiam aos limites da democracia, ou mesmo a problemas públicos em geral.

Um dos dossiês que selecionamos, conforme indicado, é o de um psiquiatra, Dr. João Burza, adepto das teorias de Pavlov e diretor do Instituto Pavlov em São Paulo, além de membro da Academia de Ciência da URSS e da União Cultural Brasil-União Soviética. Burza foi e é até os dias de hoje, segundo apuramos, uma referência, principalmente por seus estudos sobre hiperatividade e acerca de distúrbio de déficit de atenção e pela sua publicação Cérebro, neurônio, sinapse: teoria do sistema[*4].

Esse profissional teve sua casa invadida e toda a sua documentação foi apreendida, constando ela de uma correspondência de diversificada espécie, documentos em russo, cartas, textos, postais, além de cartas em espanhol, cartões de visita e telefones de pessoas, entre os quais missivas de pacientes; todos analisados e seus respectivos remetentes colocados sob suspeita.

O indício de subversão era destacado pelos agentes policiais em vermelho, e com tal sinal estão grifados todos os nomes dos que enviaram a correspondência, mesmo os que eram pacientes. Além dos grifos em vermelho, em alguns trechos aparece a indicação “incriminatório”, seguida da palavra “fichar”. Nesse sentido, por exemplo, em uma das cartas, o fator “incriminatório” é a seguinte frase: “O papel social da Mulher - aparece nos países sob a forma de governo comunista um novo tipo de família”[*5].

Nessas cartas, não encontramos evidências que comprovem o envolvimento dessas pessoas com o PCB. Se algo escrito em russo foi considerado uma evidência, no total das pastas[*6] relativas a esse psiquiatra encontramos apenas algumas nessa língua.

Foram fichadas pessoas com as quais Burza mantinha contanto e apreendidas cartas de pacientes, que permanecem até hoje anexadas a seu dossiê. Um exemplo da diversidade de critérios que norteava a repressão é a correspondência entre ele e o político Pascoal Ranieiri Mazzilli. Mazzilli foi advogado e jornalista, mas se destacou no cenário nacional na década de 1950, quando se elege deputado federal por São Paulo, filiado ao Partido Social Democrata (PSD), sendo reeleito em 1954 e 1958. Em 1959, foi presidente da Câmara dos Deputados, cargo que ocupou por cinco vezes consecutivas, e nessa condição chegou a assumir a presidência por duas vezes, por curto período. Na carta abaixo, podemos observar que não apenas Mazzilli foi posto sob suspeita, como também um médico que Burza apresentava a Mazilli. Conforme diz a referida carta

Prezado amigo Dr. João Belline Burza: Recebi sua amável carta de 21 de setembro último, a qual infelizmente só agora posso responder. Nela o amigo apresenta-me o Dr. Carlos Zamot, que tive a satisfação de conhecer, iniciando, assim, a amizade que prognosticou. Desejo dizer-lhe do quanto me sensibilizaram suas palavras de louvor ás minhas atividade públicas e ao alto encargo que me foi confiado, qual o de dirigir a Nação. Agradecendo e retribuindo seus votos, deixo-lhe um abraço amigo. Ranieri Mazzilli.[*7]

Além de colocar sob suspeita pessoas que tinham proximidade com ele, cartas de amigos russos, todas devidamente analisadas, foram colocadas como comprovação de suas atividades subversivas. É comum encontrar nessa categoria os mais diversos documentos, como um comprovante do banco Lavoura de Minas Gerais S.A[*8] que informa ter recebido um “depósito no valor de cinco mil cruzeiros, a favor de: Vicente Lemonaco, entrega de João Belline Burza, Local SP 12/11/1960.”[*9]

Além das correspondências de pessoas que tinham um vínculo de amizade com o médico, foram anexadas ao dossiê as cartas de seus pacientes. Estas falam sobre seus problemas pessoais e por elas percebe-se qual era a verdadeira “militância” desse psiquiatra. Assim, neste caso:

Prezado Dr Burza, Atenciosas saudações, Seria uma indelicadeza de minha parte se não lhe enviasse algumas palavras de agradecimento pela atenção e carinho com que fui tratada pelo Sr. e seus assistentes durante o tempo em que estive internada em um “Manicômio”. Reconheço que foi a medida mais acertada que tomaram.[*10]

Encontramos relatos de pacientes com quadros de depressão que solicitam atendimento e, após, descrevem sua condição de desânimo. Uma delas tinha 20 anos, estava em gestação e salienta a impossibilidade de pagar pelos serviços. Morava em Campinas, fala de seu interesse por ele em virtude de sua fama no tratamento da moléstia que a afligia.

Uma das pacientes parece ser pré-suicida, pois suas cartas apreendidas pelos agentes do DOPS são de despedida aos seus familiares e amigos, nas quais ressalta a impossibilidade de viver, assim como fala de questões pessoais sobre seus sentimentos[*11]. As cartas não estão endereçadas ao médico, e não é possível sabermos como integram o dossiê do médico. Outro exemplo é uma carta de uma professora, também um relato de depressão, em que a paciente explicita que não sentia prazer em lecionar e nem em ficar com seus familiares.

Terminei o ano escolar bastante cansada, pois dava aula no Grupo e no Colégio. Em vez de procurar um médico ou sair durante as férias para me distrair, passei os dias deitada e com uma idéia fixa: vou morrer e farei muita falta a minha família [...] Sempre tive loucura pela minha família e agora não encontro mais prazer de estar entre os meus. Lecionar era a minha maior alegria e agora o faço com sacrifício. De modo que sinto-me desesperada. Peço-lhe a fineza de estudar com vagar o meu caso e será que uma solução para ele?[*12]

Percebe-se ainda que Burza recebia muitas demandas para interferir por pessoas com problemas burocráticos, o que nos leva a considerar que era dos mais ativos também no interior da burocracia estatal. Como secretário geral da entidade denominada União Cultural Brasil-URSS, congênere à União Cultural Brasil-EEUU, recebia solicitações as mais diversas. Nesse sentido, por exemplo, uma carta, datada de 22 de novembro de 1960, de uma imigrante da Estônia, solicita a intervenção da União Cultural Brasil-URSS para reencontrar sua filha. Informa o endereço da filha na Estônia e anexa a certidão de nascimento da moça, cujo registro foi feito no distrito da Moóca, em São Paulo.

Sirvo-me desta carta para obter de V.S um favor especial, espero que este apelo de mãe seja atendido. Trata-se do seguinte: No ano de 1939, meus filhos Orchidea com sete anos e Walter com três, seguiram em companhia de seu pai e avó para à Estônia. Infelismente não poude acompanha-los por motivo de doença, deveria seguir no próximo ano, mas com a deflagração da guerra fiquei aqui retida. Meu marido faleceu em combate servindo o exercito Russo, e, no termino da mesma providencie a vinda de meus filhos por intermédio de nossa Embaixada, nada consegui, porque quando os papéis estavam prontos nossas relações de amizade foram interrompidas, conforme V.S pode verificar sempre me interessei pela vinda dos mesmos. Em virtude de meu filho já se encontrar com lar formado, desejo de todo o coração de pelo menos ter à felicidade de pelo menos poder voltar a abraçar minha filha, que já esta separa de mim a 21 anos.[*13]

Elias Chaves Neto (1898-1981), diretor da Revista Brasiliense (RB), foi outro intelectual fichado pela DOPS naquele período. Além de ser primo de Caio Prado Jr., proprietário da editora Brasiliense, suas famílias tinham em comum diversos negócios ligados ao transporte ferroviário, ao loteamento do balneário do Guarujá e a uma exportadora de café, a Casa Prado, Chaves e Cia. Mas em seus documentos não se encontram grifos indicativos do julgamento investigativo, o que nos leva a inferir que a explicação para a inexistência de anotações incriminatórias decorre do fato de pertencer a uma família influente, além de ser empresário[*14].

Podemos observar no dossiê sobre Elias Chaves Neto que o cerceamento do aparelho repressivo se estende à Revista Brasiliense (RB), pois encontram-se vários artigos apreendidos pela polícia política em seu dossiê. Nesse sentido, a iniciativa privada, isto é, a empresa é o único direito respeitado, mas não o da crítica ou o do debate sobre as questões nacionais.

A vigilância sobre esses dois sujeitos em particular feriu os preceitos institucionais da Constituição Brasileira de 1946, então vigente, no que se refere aos Direitos e às Garantias Individuais para expressar, através de publicações, suas ideias – com ressalvas, é evidente. Conforme artigo daquela Constituição,

Em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social [...] 12) É garantida a liberdade de associação para fins lícitos, nenhuma associação será compulsoriamente dissolvida senão por sentença judiciária. [...] 13) É livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade técnica e outras que a lei estabelecer, ditadas pelo interesse público. [...] 16) A casa é o asilo inviolável do indivíduo. Nela ninguém poderá penetrar, de noite, sem consentimento do morador, senão para acudir a vítimas de crimes ou desastres, nem de dia, senão nos casos e pela forma prescritos na lei. 20) Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas é assegurado o direito exclusivo de produzi-Ias. Esse direito transmitir-se-á aos seus herdeiros pelo tempo que a lei determinar.[*15]

Em 1935, Elias Neto, já graduado em direito pela Faculdade do Largo São Francisco, passa a frequentar o curso de filosofia orientado pelo professor Maugué, e nesse momento começa a interessar-se pelos textos de Marx.

Trabalha na Editora Brasiliense até 1965, integrando o núcleo central de colaboradores da revista. Entre suas publicações destacam-se os artigos que tinham como tema a política nacional, a Guerra Fria e a Revolução Cubana, assim como a publicação de um livro sobre a memória da Revolução de 1924 em São Paulo.

A Revista, entre 1955 e 1964, reuniu escritores preocupados em discutir os problemas econômicos, sociais, político e culturais, nacionais e internacionais e, embora não tivesse vínculo partidário, a maioria de seus colaboradores era declaradamente filiada ao PCB, o que possibilitava vários debates e divergências analíticas[*16]. Além disso, o PCB fez duras críticas à perspectiva editorial da revista e Luís Carlos Prestes chegou a denominar Elias Chaves Neto como reacionário, por sua defesa do valor universal da democracia. Como aponta Fernando Papaterra Limongi,

Após criticar o programa defendido pela revista, que, devido sua insistência na tese da necessidade da constituição de um mercado interno vigoroso, é tido por vinculado aos interesses dos “homens de negócio [...]. A área perigosa em que se movimentava a publicação, e suas conseqüências, são claramente apontadas no parágrafo final do artigo: “Por tudo isso achamos inadmissível a presença, entre os diretores e orientadores da Revista Brasiliense, de membros do PCB, como Elias Chaves Neto, Caio Prado Jr. e outros que ali aparecem subscrevendo aquela declaração de princípios e assinando artigos de colaboração”.[*17]

No entanto, para o SS, tal divergência não passava de manobra dos comunistas, e divulgar um debate que em muito contribuía para que se aprofundasse o entendimento sobre a realidade brasileira e abrisse caminhos para a formação de alternativas à dinâmica social e aos males nacionais era visto como ação subversiva. É nesse sentido que se percebe o quanto a alcunha comunista vigiava a livre expressão, constituindo o arcabouço acusatório que vai respaldar a ação repressiva desencadeada pelos militares alguns anos depois, além dos cerceamentos que ocorrem no período JK.

Nesse caso específico de vigilância e de repressão à Revista, os agentes do Estado comprovam que vários de seus integrantes não eram filiados ao PCB. Mas o problema que a colocava como subversiva, segundo eles, era a evidência de uma possível infiltração comunista. E se não havia, até o momento, nenhum indício disso, projetava-se que esta aconteceria, ou seja, haveria uma futura “infiltração comunista”; o grupo era apontado e acusado de ser susceptível à ideologia comunista, portanto competia o acompanhamento de suas ações.

Tais evidências nos levam a algumas reflexões sobre as características do Estado brasileiro, ou seja, permitem estabelecer relações entre a violência praticada por agentes dos órgãos e as políticas públicas desenvolvidas na segunda metade do século XX, particularmente na década de 1950. O que elas nos dizem sobre a natureza do Estado no Brasil? Será que é possível considerar que estamos ante a evidência de um Estado que, dadas as características do desenvolvimento histórico do país, é por natureza violento, no sentido de atribuir a qualquer mobilização social uma finalidade revolucionária, ou seja, com o intuito de uma mudança radical? Quais são as condições efetivas que levam à transformação do sistema de segurança nacional em um aparelho repressivo que considera a sociedade civil, ou seja, as expressões organizadas de segmentos sociais, seu alvo prioritário, o inimigo interno?

O período compreendido pela documentação examinada coincide com os do governo de Juscelino Kubitschek (1956 a 1961), que é apresentado pela historiografia como um dos momentos mais democráticos da história brasileira. Na bibliografia, não há praticamente nenhuma referência a esses órgãos repressores ou às suas ações de vigilância e, quando o fazem, dão a entender ao leitor que isso ocorreu apenas no governo de Eurico Gaspar Dutra. Mesmo quando abordam o segundo governo Vargas, não observamos tais referências, ou pouco falam sobre a vigência dessas leis e suas repercussões.

Observamos uma rica bibliografia que retrata o período JK, autores tais como Benevides[*18], Carone[*19], Boris Fausto[*20], entre outros[*21], os quais enfatizam o desenvolvimentismo industrial, o incentivo ao capital estrangeiro, a capacitação profissional e a criação de cursos técnicos, medidas tomadas para promover o desenvolvimento de “50 em 5 anos”[*22]. Outro dos aspectos levantados pelos historiadores foi a habilidade política de JK na combinação conciliatória de sua administração[*23].

Há uma caracterização do período como os “anos de otimismo”, pelo crescimento econômico de que o momento se constituiu no cumprimento do Programa de Metas, no crescimento do PIB com maior apoio federal para instalação da indústria automobilística[*24].

Observamos que tais estudos se pautam na lógica de que o país vivenciava uma democracia garantida por liberdades políticas e com alguns aspectos “antidemocráticos”, referindo-se à ilegalidade do (PCB), à estrutura sindical corporativa atrelada ao Estado, assim como à exclusão da participação das camadas populares nas decisões do Estado.

O que pode se dizer em favor de JK nesse campo é que seu governo tolerou as ações dos comunistas [...] não aplicando dispositivos repressivos [...] permitiu que a esquerda tivesse órgãos de imprensa [...] não aplicou de maneira sistemática a legislação antigreve [...] tolerou a formação de organismos intersindicais proibidos por lei [...][*25]

Assim, o aspecto desse engendramento leva a historiografia a considerar o período como sendo democrático, mesmo quando o consideram em sua dimensão restringida, com algumas exceções. Nesse sentido, por exemplo, o cientista político Lúcio Flavio de Almeida[*26] analisa o período do governo JK e problematiza as relações e a efetividade da democracia, fazendo um contraponto com os já citados Boris Fausto e Maria Victoria de Benevides, que defendem a democracia como especificidade daquela gestão.

Outra perspectiva analítica, também critica, encontramos em autores como Florestan Fernandes e José Chasin. Este último questiona a possibilidade da concretização da democracia no Brasil, mesmo a liberal dos proprietários, afirmando que esta não se efetivou em razão das características do desenvolvimento capitalista brasileiro, que em sua forma hipertardia, subordinada e dependente é liderado por uma burguesia igualmente conservadora e incapaz de romper com o passado que mantém atrofiado o desenvolvimento nacional. Voltada apenas para a defesa dos interesses de segmentos de classe, assume o Estado sem perpassar pela via clássica das revoluções burguesas e o subordina a seus interesses privados, não havendo a defesa da coisa pública. A privatização do mecanismo público configura a autocracia na qual o poder centralizado subsume a participação das instituições que garantiriam a vigência da democracia, seja nos períodos ditos democráticos em que esta lógica é respaldada pela Constituição, ou nas ditaduras (Estado Novo e ditadura militar) nos quais as renovações são feitas sob a batuta dos militares, caracterizando-se assim o bonapartismo[*27].

Nessa condição, essa classe, no limiar das necessidades de promover reformas impostas pelo próprio desenvolvimento do capitalismo, mantém os enclaves autoritários vigentes nos períodos de ditaduras bonapartistas, consolidando a autocracia.

Longe ficamos do preceito que as leis são a exteriorização das vontades dos indivíduos como um corpo único, isto é, cidadãos fazendo as leis e se reconhecendo nelas. As leis coagem arbitrariamente indivíduos, porque impostas de cima para baixo e apenas vigorando conforme a lógica da dominação que expressa uma categoria social cuja potência auto-reprodutiva do capital é extremamente restringida, uma burguesia que é incapaz de exercer sua hegemonia e, com isso, incorporar e representar efetivamente os interesses das demais categorias sociais numa dinâmica própria.[*28]

Aqui nunca criou raiz a democracia liberal ou o liberalismo democrático dos proprietários, tanto que estes, ao longo de toda a história sempre têm arrematado o cinturão de ferro entre a sociedade civil e sociedade política com a dura fivela autocrática.[*29]

A questão da natureza do Estado e os limites da democracia liberal também foram colocados por Florestan Fernandes em seu livro A revolução burguesa[*30], no qual aponta a incompletude da burguesia brasileira que não consegue ser precursora das mudanças radicais possibilitadas pela ruptura com a antiga ordem dominante. Pelo contrário, suas características são as de reagir com violência e opressão a qualquer possibilidade de transformação social, resultando na convergência de uma finalidade que se resume na arregimentação de interesses egoísticos. Assim, as decisões que esta burguesia, ou pequenos segmentos dela que têm acesso ao poder, desempenha no Estado beneficiam apenas suas aspirações particulares em detrimento do bem público, definindo-se aí o caráter do Estado.

A dominação burguesa revela-se à história, então sob seus traços irredutíveis e essenciais, que explicam as “virtudes e os defeitos” e as “realizações históricas” da burguesia. A sua inflexibilidade e a sua decisão para empregar a violência institucionalizada na defesa de interesses materiais privados, de fins políticos particularistas, e sua coragem de identificar-se com formas autocráticas de autodefesa e de autoprivilegiamento.[*31]

Nossa burguesia que detém o controle do processo produtivo não se manifesta como paladina da transformação, depende dos subsídios do governo. Sem condições de reinvestir, esta põe-se historicamente inconclusa, dependente do capital internacional, em frente ao qual se coloca de forma subordinada. Principalmente naquele momento da década de 50, com a forte internacionalização da economia brasileira e quando da redefinição dos segmentos da burguesia brasileira, que estavam se associando, mudando de ramo ou lutando pelos seus interesses privatistas, os limites à participação popular nas decisões sobre a coisa pública punham-se em continuidade ao período ditatorial anterior.

Assim evidencia-se uma série de fatores que apontam para o caráter violento do Estado, o qual, como afirma Boaventura Sousa Santos, leva a termo várias formas de poder, seja pelo uso da força armada ou do cerceamento ideológico. Segundo ele,

[...] a dominação é a mais auto-reflexiva - ‘vê-se a si mesma’ como forma de poder - e também a mais amplamente difundida [...], tende a ser a forma de poder mais espalhada pelas múltiplas constelações de poder gerada na sociedade, ainda que a qualidade e o grau variem bastante.[*32]

Os registros sobre a vigilância dos agentes da DOPS comprovam a repressão às mobilizações sociais de pessoas que se articulavam em associações para concretização da democracia, assim como o cerceamento à livre expressão e ao exercício da profissão, ferindo-se, dessa forma, os preceitos constitucionais referentes aos direitos e às garantias individuais e o direito de livre exercício da profissão.

No caso de João Belline Burza, nenhum dos documentos que foram confiscados demonstram seu envolvimento com o Partido Comunista (PCB) muito menos de seus amigos/pacientes/conhecidos. Já no caso de Elias Chaves Neto podemos inferir como as manifestações que contrariavam as normas das classes dominantes eram encaradas com temor. Assim os documentos analisados apontam para a inexistência da democracia no Brasil, onde os preceitos da Carta Constitucional inserem-se apenas enquanto uma falácia.

A questão que se põe, portanto não se refere simplesmente à conduta pessoal dos agentes, mas à coerção desencadeada pelo aparelho repressivo e nos remete ao que é denominado violência institucional, ou seja, àquela resultante de ações promovidas por agentes do Estado, particularmente policiais locados em um setor do Sistema de Segurança Nacional denominado Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) no Estado de São Paulo.

Referências bibliográficas

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CHASIN, José. Poder, Política e Representação (três Supostos e uma Hipótese constituinte). Revista Ensaio, São Paulo, 1985.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Globo, 2006.
LIMONGI, Fernando Papaterra. Marxismo, nacionalismo e cultura: Caio Prado Jr. e a Revista Brasiliense. Disponível em: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_05/rbcs05_02.htm. Acesso em: 23 nov. 2009.
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SOUZA, Ângela Maria de. O Brasil de Caio Prado Jr. nas páginas da Revista Brasiliense (1955-64) . Dissertação (Mestrado em História)– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, São Paulo, 2004.
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Possui graduação em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2009), Licenciatura Plena pela mesma instituição (2009). Atua como professora de história no ensino médio e fundamental II. Principal área de pesquisa: história contemporânea do Brasil, violência institucional e desenvolvimento das instituições policiais. O presente artigo foi extraído das conclusões da pesquisa de Iniciação Científica “A atuação da DOPS/SP: Evidências constitutivas do cerceamento social no período JK” vinculada ao projeto interdepartamental intitulado Violência institucional e autocracia de Estado: continuidade e rupturas na dinâmica brasileira na segunda metade do século XX, sob coordenação da Profa. Dra. Vera Lucia Vieira e da Profa. Dra. Maria Aparecida de Paula Rago.
Duas pastas contêm os documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza (OS) 1941 vol. 36 (1957–1963) e (OS) vol. 37 (1957–1963).
(OS) 1943 vol. 38. Esta pasta possui somente documentos apreendidos na casa de Elias Chaves Neto (1956–1963).
Nesse sentido ver: VALIM, Arnaldo Rabello de Aguiar; PEIXOTO, Rubens da Cruz. Resumo Histórico do DOPS. São Paulo: Secretaria de Estado dos Negócios da Segurança Pública; Departamento de Ordem Política e Social, 1953.
BURZA, João Belline. Cérebro, neurônio, sinapse: teoria do sistema funcional. São Paulo: Ícone, 1986.
Carta de Camila Ribeiro dirigida ao psiquiatra. (OS) 1941 vol.36 (1957- 1963) documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
(OS) vol. 37 (1957–1963) documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
Carta de Ranieri Mazilli a João Beline Burza. Brasília, 27 dez. 1960. (OS) 1941 vol. 36 (1957-1963) documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
Situado na praça de Ouro Fino – Minas Gerais. Documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
(OS) 1941 vol.36 (1957-1963) documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
(OS) 1941 vol.36 (1957-1963) documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
Todas as cartas estão sem a indicação do nome das pessoas, preservando-se assim a identidade dos emissores.
(OS) 1941 vol.36 (1957- 1963) documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
(OS) 1941 vol.36 (1957- 1963) documentos referentes à apreensão na casa do Dr. João Burza. Acervo Arquivo do Estado de São Paulo.
(OS) 1943 vol. 38. Essa pasta possui somente documentos apreendidos na casa de Elias Chaves Neto (1956-1963). A singularidade de não haver grifos ou anotações que indiquem julgamentos dos investigadores pode ser pelo posicionamento político e teórico contido nos textos anexados, encontramos artigos publicados pela Revista Brasiliense, na íntegra, cujos temas são os problemas conjunturais do Brasil, como no artigo de Álvaro de Farias “Os Trabalhadores e a nação”.
Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de Setembro de 1946). Disponível em: http://www.investidura.com.br/biblioteca-juridica/legislacao/constituicoes/1651-constituicao-brasileira-d-1946.html. Acesso em: 23 nov. 2009.
SOUZA, Ângela Maria de. O Brasil de Caio Prado Jr. nas páginas da Revista Brasiliense (1955-64). Dissertação (Mestrado em História)– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004.
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Os estudos da historiadora Maria Victoria Benevides, que têm como perspectiva teórica a vinculação do desenvolvimento com estabilidade política partindo da abordagem liberal-democrata de estabilidade que defende que “[...] os fatos envolvidos na modernização e no desenvolvimento econômico estão associados àqueles que estabelecem a legitimidade e a tolerância política numa sociedade.” BENEVIDES Apud LIPSET, Seymour. “O Homem Político”. In: ______. O governo Kubitschek desenvolvimento econômico e estabilidade política 1956-1961. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 22.
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Assim, é comum relacionar-se o desenvolvimento econômico com estabilidade política, o que, segundo os autores, resultou em um modelo democrático.
PICOLIN, João Carlos. Metas e o Plano: Juscelino para presidente do Brasil - as estratégias de comunicação política que ajudaram a eleger JK em 1955. Dissertação (Mestrado em Comunicação Social)– Universidade Metodista de São Paulo, UMESP, São Paulo, 2002.
Nesse sentido ver: BORIS, Fausto. Historia do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1994.
Como o livro: MARANHÃO, Ricardo. O governo Juscelino Kubitschek. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 199. Destinado ao público de estudantes secundaristas.
ALMEIDA, Lúcio Flavio. O Regime Democrático no período JK: um mito a ser questionado. Revista Margem, São Paulo, n. 6, 1997.
Termo cunhado por Marx em análise sobre a natureza da dominação autocrática-burguesa durante o governo de Napoleão III na França refere-se à hegemonia de segmentos da burguesia sobre o Estado, mas de forma indireta, respaldada por militares. Assumindo o poder em nome da representação de todas as classes sociais, na prática investem na instituição de mecanismos de repressão, mantendo reprimidas as demandas sociais que não se coadunam com os interesses dos segmentos dominantes. Autores como Florestan Fernandes (2006), Martins (1977), Chasin (2000), Rago Filho (2004), entre outros, procedem à apreensão dessa categoria analítica para configurar o período de ditadura militar no Brasil, iniciada em 1964, dado o domínio indireto da burguesia nacional sob a figura dos militares, que em nome do desenvolvimento nacional construíram um aparato repressivo violento para conter as demandas populares. MARTINS, C. Estevan. Capitalismo de Estado e modelo político no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1977.
VIEIRA, V. L. Autocracia burguesa e violência institucional. Revista Projeto História, São Paulo, n. 32: “Direitos”, 2005. p. 14-15.
CHASIN, José. Poder, Política e Representação (três Supostos e uma Hipótese constituinte). Revista Ensaio, São Paulo, 1985. p. 228.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Globo, 2006.
FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Globo, 2006. p. 45.
SANTOS, Boaventura Souza. “Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática”. Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. Volume 1. São Paulo: Cortez, 2005. p. 288.