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Artigo publicado na edição nº 39 de dezembro de 2009.
O futebol rouba a cena! O “estádio-monumento” enquanto palco de tensões sociais: o caso do Pacaembu

Felipe Morelli Machado
Luciano Deppa Banchetti

Introdução

O futebol, diante do elevado destaque que possui no mundo contemporâneo, ultrapassa uma classificação mais singela do que simplesmente a de ser uma “prática esportiva”. A partir de toda uma gama de elementos que o constitui, o futebol traz à tona a representação dos mais variados aspectos da realidade. Assim, faz-se necessário um olhar cada vez mais atento para este que é um dos mais importantes instrumentos de reflexão sobre a sociedade, ou seja, para este que é, segundo Hilário Franco Júnior (2007, p. 13), um “fenômeno cultural total”.

A proposta deste artigo consiste na reflexão acerca de um dos pontos desse mosaico chamado futebol: o estádio – que para alguns é o lugar de encontro para jogar e observar o esporte e, para outros, palco para o desenvolvimento de um espetáculo emocionante. Todavia, este lugar social também apresenta, para muitos, uma atmosfera ritualística que envolve as partidas, algo que eleva o estádio à posição de um verdadeiro templo onde os torcedores se dedicam a cultuar os deuses da bola.

Quer seja como um palco de grandes espetáculos ou mesmo como um templo para a prática de uma religião que arrebata tantos fiéis, o estádio de futebol aparece no primeiro governo Vargas enquanto um importante elemento a ser utilizado com fins políticos e cívicos, ao mesmo tempo em que o jogo de bola ia ganhando cada vez mais espaço dentro do projeto de construção da “nação”. Nesse sentido, diversos autores nos remetem para o quanto se tenta forjar uma ideia de nação no seio de grupos marcados pela diversidade e, o Brasil, nesse caso, é um lugar privilegiado para refletirmos sobre isso. Desde a infância, principalmente através da escola e dos livros didáticos, e também por intermédio de outros meios, há tentativas constantes de naturalizar o que artificialmente foi – e continua sendo – construído: um espírito nacional brasileiro.

Nesta perspectiva, recorremos à ideia elucidativa trazida pela filósofa Marilena Chauí (2000, p. 12) em sua classificação da nação como “semióforo-matriz” de outros semióforos[*1], que acabam por tornar possível a visibilidade dessa instituição que em si é artificialmente criada no imaginário da população. Os semióforos historicamente foram usados para dar visibilidade a coisas não materiais como detentores de uma força simbólica muito grande. E, aqui, nos interessa pensar um desses símbolos: o monumento.

A reflexão acerca dos semióforos em seu lugar no espaço público como “locais onde toda a sociedade possa comunicar-se celebrando algo comum a todos e que conserva e assegura o sentimento de comunhão e de unidade” nos permite perceber no monumento a realização dinâmica das relações sociais, e por conta disso o projetado símbolo de poder passa por um processo de (re)significações que acabam por transformar seu – idealizado – sentido inicial. “Ainda que o patrimônio sirva para unificar cada nação, as desigualdades em sua formação e apropriação exigem estudá-lo também como espaço de luta material e simbólica entre as classes, as etnias e os grupos.” (CANCLINI, 2000, p. 193)

Assim, para que analisemos na dimensão da realidade social a relação entre o monumento público e os diferentes sentidos a ele atribuídos pelos grupos sociais, remontaremo-nos ao período marcado pelo regime autoritário varguista de 1930 e 1940 e ao monumento que em certo sentido o simbolizava: o Estádio Municipal do Pacaembu[*2].

Pacaembu: o monumento enquanto espaço de conflitos

Ainda que a construção do Estádio do Pacaembu começasse no ano de 1936, foi justamente a implantação do Estado Novo em 1937 – tendo como um de seus desdobramentos para a capital paulista a chegada do novo prefeito, Francisco Prestes Maia[*3], ao poder – que impulsionou a execução das obras. O projeto inicial só se revestiu então da grandiosidade que marcaria o novo estádio a partir de mudanças advindas da própria política adotada por Prestes Maia em relação à intervenção do poder público no espaço urbano (NEGREIROS, 1998, p. 125).

A construção do “estádio-monumento” era a própria síntese dos anos 1930 e 1940, que refletia a crescente valorização das atividades físicas e das práticas esportivas, além de uma política da ditadura varguista que procurava fazer de grandes manifestações cívicas seu caminho de encontro às multidões. Assim fora pensado o Pacaembu pelo poder público, porém o caminho autoritário de imposições não conseguiria controlar a dimensão simbólica, pelo menos não no que diz respeito ao significado desse estádio para os torcedores de São Paulo.

Contudo, não era só o vertiginoso aumento de um público cada vez mais apaixonado que levava os dirigentes e, principalmente, os cronistas esportivos, a reclamar do poder público acerca da construção de um novo estádio que comportasse, confortavelmente, as grandes plateias dos jogos entre as principais equipes da cidade – casos de Paulistano, Corinthians e Palestra Itália. Naquele contexto de uma São Paulo profundamente modificada em sua composição social face ao desenvolvimento industrial – responsável pelo crescimento do número de imigrantes e dos bairros operários –, havia um clamor dos diferentes segmentos da sociedade para que surgissem obras que possibilitassem a acomodação do cada vez maior e mais diversificado contingente populacional.

Quando, em novembro de 1936, ainda na administração do prefeito Fábio Prado, tinha início a obra do Pacaembu através de uma cerimônia que contou com a participação de políticos, dirigentes esportivos e ampla cobertura da imprensa, o então representante do Departamento de Cultura, Nicanor Miranda, dava uma declaração significativa quanto aos problemas que vinham sendo enfrentados pela prefeitura por conta do crescimento do município:

Há seis lustros o nosso Município acusava uma população seis vezes menor que hoje e o seu perímetro era muitas vezes mais exíguo que o atual.
Nessa época, nos gramados dos terrenos baldios situados no coração da cidade de Anchieta e nos bairros mais próximos, crianças, adolescentes e adultos dedicavam-se a práticas esportivas e, principalmente, ao futebol, o esporte mais difundido entre nós.
Mas a cidade evoluiu. Os negócios tomaram vulto. A edificação intensificou-se. Começaram a surgir os arranha-céus. [...] E as crianças, os adolescentes e os adultos foram, condenados, pouco a pouco, a ficar sem áreas livres, sem espaços verdes, imprescindíveis para as suas atividades recreativas.
A cidade cresceu e a cidade criou problemas [...]. (NEGREIROS,1998, p. 130-131).

O Estádio Municipal era o carro-chefe do poder público em suas obras de intervenção no espaço urbano. Com o “desaparecimento” de algumas áreas tidas como de recreação para os populares, pretendia-se do Pacaembu que fosse o grande centro esportivo a proporcionar o lazer aos trabalhadores de São Paulo, acomodando-os na qualidade de espectadores. Todavia, devido a problemas de ordem financeira, o empreendimento seria paralisado pela Prefeitura para ser retomado somente na administração Prestes Maia, em 1938, em que ficaria cada vez mais evidente a finalidade política do monumento que, apesar de vir a se tornar sede de muitos jogos importantes de futebol, deveria antes atender à propagação dos ideais do regime a partir de manifestações políticas que inserissem os torcedores no projeto de construção da “nação”.

As obras iniciadas no terreno de aproximadamente 76 mil metros quadrados, doado nos anos 20 pela Companhia urbanística City à Prefeitura de São Paulo, passavam então por indispensáveis ampliações, para as quais seria necessária a compra de terrenos circunvizinhos do espaço original e que também eram de propriedade da mesma empresa, que por meio disso conseguia um bom retorno financeiro de sua iniciativa. Tais espaços corresponderiam à importantes vias de acesso e à praça central, situada às portas do estádio e cujo papel não era diminuto para aquele projeto arquitetônico do governo, já que era um importante elemento cuja função “[...] já se definia: dar visibilidade ao estádio-monumento. A admiração pelo monumento remeteria à lembrança do regime que o havia construído.” (NEGREIROS, 1998, p. 139).

Portanto, nota-se pelo discurso oficial que as motivações caminhavam para além dos limites esportivos. É o que afirma o assessor de Prestes Maia, Paulo Campos, na visita feita pelo prefeito de São Paulo a cerca de um mês da inauguração do Pacaembu, em entrevista para O Estado de São Paulo, em 24/03/1940:

Nesta oportunidade, com o meu objetivo absolutamente voltado para a grandiosidade da obra – que realmente encerra majestosamente, em suas entranhas de aço e de cimento armado – o segredo que influirá no corpo e no espírito da mocidade sã para formar a fibra de que se deverá revestir, os músculos, a beleza, a tempera e o carretar da futura raça brasileira [...]
Que cessem todas as lutas e, sob, as bênçãos de um único Deus, cristão, se irmanem todos os partidos, para que, com patriótico espírito, unidos, caminhem todos, quais peregrinos, em direção à meta onde se forjará, para o futuro, de maneira amiga, a pujança e a graça, a destreza e o espírito de uma nova raça – ainda mais forte!

A própria grandiosidade do monumento, visitado àquela altura pelas autoridades, saltava aos olhos de Paulo de Campos, que procurava de igual modo “engrandecer” os propósitos daquela realização, conclamando através da imprensa a unidade do país a partir do “patriótico espírito” a promover os melhoramentos da “raça”. Elementos como corpo, raça, união e patriotismo faziam parte desse pensamento tão presente nos anos 30 e 40 que permeava o discurso de boa parte de intelectuais, cronistas, representantes do Exército, entre outros.

A partir dessa lógica, planejavam-se em detalhes as festividades que acompanhariam a inauguração do Estádio Municipal, ficando a cargo da Diretoria Geral de Esportes do Estado de São Paulo a organização de diversos eventos esportivos que mobilizassem populares da capital e do interior paulista e que atraíssem a atenção de todo o país durante aquele dia que deveria repercutir não só no cenário nacional mas também por toda a América:

Como já afirmamos, estava em jogo muito mais do que uma simples inauguração de uma praça esportiva; através do esporte, São Paulo se afirmaria frente ao Brasil e ao resto da América. [...] Em última instância, assim deveria ser o país. Ou seja, no dia da sua inauguração, o Estádio do Pacaembu deveria apresentar-se como os dirigentes do Estado Novo desejavam que o Brasil fosse. (NEGREIROS, 1998, p. 148).

Deste modo, é compreensível o caráter ordeiro e disciplinado que deveria caracterizar um dos principais momentos da inauguração, o Desfile, enquanto exigência da própria Diretoria de Esportes. De acordo com o planejamento, a longa cerimônia compreenderia, entre outros elementos, a exaltação de símbolos nacionais, como bandeira e hino, saudação às autoridades (além do prefeito Prestes Maia, o interventor do estado Adhemar de Barros e o presidente do país Getúlio Vargas) e o próprio desfile em si das representações esportivas, que seria encerrado com o hasteamento das bandeiras nacional e olímpica, além de juramentos e homenagens. (NEGREIROS, 1998, p. 149-157).

A preocupação com o desfile dos esportistas ficava clara já na instrução dada aos chefes responsáveis por cada representação, na qual a Diretoria de Esportes deixava bem evidente o tom disciplinador que marcaria a manifestação:

Dizendo respeito às representações, é conveniente ressaltar da necessidade da presença de todas as modalidades esportivas que cada um tenha e bem assim os seus respectivos uniformes cabendo a cada uma a iniciativa de melhor apresentação. Para maior uniformidade, porém, todos os componentes do desfile devem usar sapatos de tênis branco ou ”keds” dessa cor. As camisas serão usadas por dentro do calção e os esportistas não deverão trazer nenhuma cobertura na cabeça. O uniforme será o dos clubes [...]
Todas as representações esportivas para o desfile devem conter o maior número de esportistas, bem uniformizados, para que seja um reflexo da solenidade, que ficará gravada na história esportiva e cívica do Brasil [...].
De modo geral, cada uma formará na seguinte ordem: Chefe da representação, que deverá estar a 10 passos da representação anterior; em seguida, a 5 passos, a bandeira da representação; depois a 3 passos os diretores respectivos; e, por fim, todo o pessoal, em coluna por 4, dividido pelas modalidades esportivas, em ordem alfabética. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 1940a).

Com tamanha organização por parte das autoridades municipais e intensa divulgação por parte da imprensa, a festa de inauguração do Estádio Municipal do Pacaembu se consumaria num grande espetáculo. O “monumento aos brasileiros” era assim saudado pelo discurso do chefe da nação, Getúlio Vargas, transcrito em O Estado de São Paulo de 28 de abril de 1940:

É ainda, e sobretudo, este monumental campo de jogos desportivos uma obra de sadio patriotismo, pela sua finalidade de cultura física e educação cívica.
Agora mesmo assistimos ao desfile de dez mil atletas, em cujas evoluções, havia a precisão e a disciplina, conjugadas no simbolismo das cores nacionais. Diante desta demonstração da mocidade forte e vibrante, índice eugênico da raça, – mocidade em que confio e que me faz orgulhoso de ser brasileiro – quero dizer-vos:
Povo de S. Paulo!
Compreendestes perfeitamente que o Estádio do Pacaembu é obra vossa e para ela contribuístes com o vosso esforço e a vossa solidariedade. E compreendestes ainda que este monumento é como um marco da grandeza de São Paulo a serviço do Brasil.
Declaro, assim, inaugurado o Estádio do Pacaembu.

Enquanto o desfile de cerca de dez mil esportistas das mais diversas modalidades era motivo de orgulho para Vargas, o palco principal que o abrigava, a saber, o campo de futebol do Pacaembu, só viria mesmo a emocionar os torcedores paulistanos com os jogos de futebol realizados no dia seguinte à inauguração. No primeiro deles, o Palestra Itália – vice-campeão paulista do ano anterior – enfrentaria o Coritiba F.C., campeão do Paraná; no segundo, era a vez do Corinthians – campeão paulista de 1939 – encarar o Atlético Mineiro, também campeão em seu estado.

A partir daquelas partidas, pelo menos durante o regime estadonovista, o futebol conviveria com as manifestações políticas e comemorações cívicas promovidas pelo poder público, com destaque para os festejos do “Dia do Trabalho” – que no Rio de Janeiro também era celebrado em outro estádio de futebol, o São Januário, pertencente ao Vasco da Gama –, de forma semelhante ao que faziam os regimes nazifascistas europeus.

No que diz respeito à construção do estádio de São Januário – cuja inauguração ocorreu em 21 de abril de 1927, tornando-se o maior estádio do Brasil neste período com capacidade para cerca de 40 mil pessoas –, as motivações que levaram a esta empreitada nos permitem observá-lo como um contraponto em relação ao próprio processo de construção do estádio do Pacaembu[*4].

Ainda em 1923, o Vasco fazia sua estreia na primeira divisão da Liga Metropolitana de Desportos Terrestres e logo nesse certame conquistava o título desbancando os então grandes do Rio: Flamengo, Fluminense, Botafogo e América. O clube fundado e dirigido por imigrantes portugueses tinha seu quadro composto marcadamente por jogadores pobres que:

[...] recebiam alojamento, alimentação e “bichos” (gratificações em dinheiro) em troca de seu talento e dedicação exclusiva à bola. E foi com um time formado por três negros, um mulato e sete brancos pobres que o Vasco sobrepujou os requintados Fluminense, Flamengo, Botafogo e América [...]. (FRANZINI, 2003, p. 46).

Revoltados com tamanha “ousadia” do clube cruzmaltino, os dirigentes destes grandes times fundam, em 1924, a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA), onde impediriam a entrada do Vasco da Gama alegando que o clube não possuía estádio próprio. Contudo, a verdadeira razão dessa exclusão estava presente no estatuto da nova entidade, onde ficava clara a não aceitação de elementos que não fossem “sãos e puros”. Assim, comunicava-se ao Vasco que sua inclusão só seria aceita caso o clube excluísse de seus quadros doze jogadores, que por sinal eram os negros e operários do time. O então presidente do Vasco, José Augusto Prestes, rejeitou a proposta em carta ao presidente da AMEA, Arnaldo Guinle, também presidente do Fluminense:

Estamos certos de que Vossa Excelência será o primeiro a reconhecer que seria um ato pouco digno de nossa parte sacrificar, ao desejo de filiar-se à AMEA, alguns dos que lutaram para que tivéssemos, entre outras vitórias, a do campeonato de futebol da cidade do Rio de Janeiro de 1923. São doze jogadores jovens, quase todos brasileiros, no começo de suas carreiras. Um ato público que os maculasse nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que eles com tanta galhardia cobriram de glórias. Nestes termos, sentimos ter que comunicar à Vossa Excelência que desistimos de fazer parte da AMEA. (FRANZINI, 2003, p. 47).

Diante da recusa do Vasco e sua permanência junto à Liga Metropolitana, em 1924 seriam disputados dois campeonatos cariocas, um da referida entidade e outro da AMEA. Mesmo esvaziado dos grandes clubes, o campeonato organizado pela Liga superou o da AMEA em arrecadação e público pelo fato de o Vasco já arrebanhar enorme simpatia popular.

Desta forma, não havia outra saída à AMEA senão aceitar o clube cruzmaltino em seu grupo de filiados. Desta vez, o único pedido feito foi para que o Vasco evitasse mandar seus jogos para o pequeno campo da rua Moraes e Silva, na Quinta da Boa Vista. Empenhados a responder ao desprezo dessa Associação, os dirigentes vascaínos esforçaram-se junto aos seus torcedores para arrecadar dinheiro e comprar primeiro um terreno em São Cristóvão e, depois, levantar aquele que viria a ser o maior gigante do futebol brasileiro à época. A mobilização popular foi fundamental para que este monumento fosse erguido: “Graças ao apoio popular, o clube mostrava que chegava ao círculo dos ’grandes’ para ficar [...] o então presidente vascaíno, Raul da Silva Ramos, fez questão de afirmar em seu discurso: ‘Eis o estádio que diziam faltar para nos tornarmos grandes.’” (FRANZINI, 2003, p. 48).

O “gigante da colina” – como viria a ser chamado o Vasco pela crônica esportiva – parecia se “agigantar” de forma definitiva para o futebol nacional a partir da inauguração de São Januário, um lugar público, espaço de lazer e de se fazer política[*5]. E o mais significativo para este estudo é justamente isso: um caráter popular que marcaria a sua construção para que, posteriormente, o mesmo governo Vargas procurasse fazer do Estádio mais um espaço de manifestação política do regime. A (re)significação ocorreria agora num sentido inverso ao que caracterizara o Pacaembu, mas as tensões que marcariam poder público e torcedores se dariam mais uma vez envolvendo um grande palco de festejos cívicos para a ditadura getulista e de paixão futebolística para os torcedores cariocas.

Deixando a capital federal daquele momento e voltando ao monumento paulistano, ainda que o Pacaembu se estabelecesse como um grandioso projeto arquitetônico revestido dos significados presentes no projeto político-ideológico varguista (CERETO, 2004, p. 120)[*6], o papel que se buscava atribuir àquele espaço por parte do poder público não correspondeu diretamente ao sentido que os torcedores paulistanos deram ao grandioso estádio.

Para estes agentes, o Pacaembu seria entendido e utilizado fundamentalmente como um grande palco do futebol paulista e brasileiro e não como espaço de comemorações cívicas e manifestações políticas. Esta (re)significação pode ser percebida nos próprios depoimentos de dois importantes torcedores que vivenciaram as mudanças trazidas pela inauguração do estádio para a vida esportiva paulistana e brasileira: o corinthiano Chico Mendes e o palestrino Paulo Schiesari.

Nas lembranças desses agentes estão, entre outros momentos, os festejos da própria inauguração. Contudo, a construção da memória, ainda que mencione outros esportes, se assenta principalmente em torno dos jogos de futebol. Nas palavras de Chico Mendes, define-se um Pacaembu cuja importância é indissociável ao jogo de bola:

[O Pacaembu] foi muito importante. Tanto que o Corinthians jogou... jogou Palmeiras e... o Corinthians jogou contra um time do Paraná. O Palmeiras jogou na preliminar e o Corinthians jogou no jogo de... Foi lindo, foi uma festa muito bonita. O Pacaembu fez muito pelo esporte também. Lá o nosso prefeito que fez... o Prado... como é que é?... O Fábio Prado, depois veio o Prestes, que também ajudou bastante. Foi muito linda. Inclusive, o ginásio teve grandes jogos de basquete, de boxe, tinham grandes realizações de boxe. Os argentinos vinham aí e lutavam que nem... vinham uns da Europa também que lutavam bem. (Eu estive na inauguração) Foi muito bonito. O Pacaembu deu uma nova vida ao futebol de São Paulo. Assim com depois o próprio... lá o do São Paulo e o Maracanã também. O Pacaembu tinha uma coisa: era aconchegante. O Pacaembu foi feito de um jeito que você está na geral, no pior lugar da geral, você enxerga bem. O Pacaembu foi bem feito. Foi bem programado, porque... ele é gostoso.

Esta visão de Chico Mendes encontra correspondência nas palavras do torcedor do Palestra Itália, Paulo Schiesari. Procurando destacar a importância do estádio como um símbolo do futebol paulista e brasileiro, o palestrino nos traz uma memória que se constrói numa narrativa provocativa ao arquirrival:

[O Pacaembu] foi muito importante, muito. Quis o destino que o 1º clube a ganhar uma partida no Pacaembu fosse o Palmeiras. Jogou contra o Atlético do Paraná, numa preliminar do Corinthians. O 1º time que jogou e ganhou no Pacaembu foi o Palmeiras. Até isso o Palmeiras tem para a sua história. [...] [A inauguração] foi uma festa. Mas os detalhes eu não me lembro. Nesse dia eu não fui.[*7]

Apesar da ampla cobertura da imprensa e mesmo dos muitos comentários que devem ter acompanhado o cotidiano da cidade por conta da inauguração do Estádio Municipal, o palestrino não se recorda de outra coisa deste momento senão o triunfo do seu time do coração. Nesse aspecto, o sentimento cívico, nacionalista, da ideologia do Estado Novo foi sobrepujado pelo clubístico, que é, antes de tudo, comunitário.

Portanto, a análise deste monumento público tão significativo à vida esportiva do país demonstra que tais projeções arquitetônicas – ainda que, em sua materialidade, correspondam a valores, ideais e visão de mundo dos grupos dominantes – trazem em si a vivência social dos grupos que fazem uso destes espaços, e lhes conferem um novo papel nas relações sociais e no espaço urbano. Logo, é também no campo do simbólico que os monumentos se configuram como espaço de conflitos, de tensões que extrapolam a partir das (re)significações que os diferentes grupos sociais atribuem à relação estabelecida com estas construções. E como dissemos no início, o futebol, principalmente no Brasil, é um espaço privilegiado para observarmos tal dinâmica, como o pesquisador Francisco Carlos T. da Silva nos esclarece:

O país do futebol, portanto, é fruto de uma trajetória social complexa e multifacetada, em que conflitos presentes na sua gestação dos anos 10 e 20 são incorporados ao sucesso vertiginoso que os anos 30 lhe reservam. Envolvendo pobres, intelectuais, governos, mercados e, principalmente, torcedores, o futebol constituiu-se em um momento único de identificação popular, nacional e de grupo – mais forte, entre nós, que os partidos políticos, as religiões ou mesmo as escolas de samba, as outras histórias de paixões. (SILVA, 2006, p. 31).

Referências bibliográficas

CHAUÍ, Marilena. Brasil: mito fundador e sociedade autoritária. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000. p. 5-29.
CANCLINI, N. Garcia. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2000.
CERETO, Marcos Paulo. Arquitetura de massas: o caso dos estádios brasileiros. 2004. Dissertação (Mestrado em Arquitetura)– PROPAR, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2004. p. 82-100.
COSTA, Mauricio da Silva Drumond. Os gramados do Catete: futebol e política na Era Vargas (1930-1945). In: SANTOS, Ricardo Pinto dos ; SILVA, Francisco C. T. da (Orgs.). Memória social dos esportes – futebol e política: a construção de uma identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. p.107-132.
FRANCO Jr., Hilário. A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.
FRANZINI, Fábio. Corações na ponta da chuteira: capítulos iniciais da história do futebol brasileiro (1919-1938). Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 33-50.
NEGREIROS, Plínio José Labriola de. A Nação entra em campo: futebol nos anos 30 e 40. 1998. Tese (Doutorado em História)– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 1998.
O ESTADO DE SÃO PAULO. São Paulo: [s.n.], 9 abr. 1940.
SILVA, Francisco C. T. da. Futebol uma paixão coletiva. In: SANTOS, Ricardo Pinto dos; SILVA, Francisco C. T. da (Orgs.). Memória social dos esportes – futebol e política: a construção de uma identidade nacional. Rio de Janeiro: Mauad, 2006.
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Mestrando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e bolsista CNPq. Sua pesquisa é voltada para o futebol, mais especificamente à participação da seleção brasileira em Copas.
Mestrando em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e bolsista CNPq. Sua pesquisa é voltada para o futebol, mais especificamente à participação da seleção brasileira em Copas.
De acordo com Chauí, a noção de semióforo remete à palavra de origem grega que vem da junção de duas outras expressões: semion, que significa “sinal”, “signo”, era utilizada para se referir a vestígios, provas – positivas ou negativas – de uma investigação; e phoros, que significa “trazer para frente”, “expor”, “pegar”, este último no sentido de “brotar”, como utilizamos para nos referir a uma planta.
Atualmente denominado Estádio Paulo Machado de Carvalho, homenagem ao jornalista e chefe da delegação brasileira de futebol bicampeã nos mundiais de 1958 e 1962.
A posse de Prestes Maia se daria por indicação do então interventor de Vargas em São Paulo, Adhemar de Barros, que ficou no cargo de 1938 a 1941.
Interessante perceber que o Estádio não assume nenhuma dimensão personalista, já que oficialmente é denominado Estádio Vasco da Gama; outros exemplos se constituem da mesma forma, demonstrando a participação da coletividade clubista na construção do estádio tal como o Camp nou do Barcelona.
Definição utilizada por Clara Malhano e Hamilton Botelho Malhano em importante estudo arquitetônico sobre o Estádio de São Januário.
Em seu estudo sobre a arquitetura dos estádios brasileiros, o autor compara o projeto do Pacaembu ao do estádio olímpico de Nuremberg, que classifica como “proposta nazista de Nuremberg”.
Depoimentos orais colhidos por Plínio Negreiros (NEGREIROS, 1998, p. 75).