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Artigo publicado na edição nº 40 de fevereiro de 2010.
Centralidades do carnaval paulistano:
formação, explosão e negação

Rodrigo Linhares

1. O Carnaval Espetáculo: a centralidade negada

Pode-se dizer que a festa que hoje conhecemos teve como centralidade inicial, no final da década de 1960, a Avenida São João. Lá foram erguidas as arquibancadas e os palanques da primeira competição unificada de agremiações carnavalescas. Anos depois, em 1977, o desfile foi transferido para a Avenida Tiradentes. As interferências no trânsito desta via, porém – impostas pela realização das festividades –, logo tornaram precário este novo endereço. Em 1991, a centralidade dos desfiles carnavalescos transfere-se para o “sambódromo”, no Parque Anhembi, onde permanece até hoje.

Este equipamento urbano peculiar, o sambódromo, foi concebido segundo uma oposição fundamental entre, de um lado, os desfilantes – que percorrem a avenida – e, de outro, a plateia – que ocupa as arquibancadas que a ladeiam. Nas extremidades deste conjunto linear existem dois largos pátios: mais a leste, a concentração – onde permanecem organizadamente os carros alegóricos até que a escola de samba, então em desfile, venha retirá-los –; mais a oeste, a dispersão – ocupada pela escola que, terminando sua apresentação, precisa agora “desarmar-se”. Mas a separação não é apenas entre avenida e plateia, partida e chegada – ela se propaga em vários níveis. Na avenida, exemplarmente, sob a aparência de uma unidade linear movente encontramos algumas divisões: os que desfilam no chão, os que desfilam em cima dos carros e os que desfilam em lugares privilegiados na organização dos elementos cênicos do carro. Há uma espécie de hierarquia da visão organizando estas categorias segundo uma oposição entre alto e baixo – sendo que o alto é, ao mesmo tempo, o mais visível e o mais destacado do conjunto. A plateia, por seu turno, além da separação mais pronunciada que a dispõe em margens distintas da avenida, secciona-se também em blocos. Cada um deles compõe-se de uma arquibancada, de um camarote – que, ocupando o desvão entre o cimo da arquibancada e o chão, dá em grandes janelas para a avenida – e, finalmente, de uma espécie de passeio que acompanha a pista e onde estão dispostas mesas e cadeiras. Na plateia, que por sua vez também é vista, o mais alto é que tem menos destaque e somente é visível em conjunto; ao contrário, o mais recluso dos lugares – os camarotes – torna-se, através das lentes da imprensa, detalhadamente publicizado. Através destas lentes, outro público – completamente invisível e sem destaque – espalha-se ao redor do centro carnavalesco como uma plateia oculta: a audiência televisiva.

A unidade que a falsa centralidade do carnaval espetáculo promove é apenas uma unidade entre separados de antemão. Revela-se na aparência mesma do “sambódromo”: um conjunto formado por simples justaposições de unidades isoladas. Nada deve lembrar aquela porosidade áspera dos espaços de negociações, tensões e atritos, característica de carnavais mais antigos; os fluxos são disciplinados, controlados. Por todo o lugar a limpidez escorregadia, o privilégio imperial concedido ao mais abstrato dos sentidos – o olhar –, o plano analiticamente fragmentado que se entrega facilmente ao esquadrinhamento.

Na história da festa carnavalesca quais rupturas podem ser reconhecidas entre, na origem, aquela integridade centralizada e concentrada e, no ponto que estamos, suas múltiplas fragmentações?

2. Entrudo: unidade descentrada da prática festiva e unidade comunitária

Até meados do século XIX – ou um pouco mais além –, a prática festiva na cidade de São Paulo não havia ainda se desligado de seus conteúdos religiosos. Romarias, como aquelas que anualmente dirigiam-se para a Igreja de Nossa Senhora da Penha, festas de patronos de igreja e celebrações de datas importantes, como a do Divino Espírito Santo, reuniam a maior parte da população da cidade e de seus visitantes. De outro lado, as distâncias sociais também não pareciam determinar, ainda, qualquer cisão na unidade da festa – descontando-se o fato, incipiente, de que algumas das famílias mais abastadas preferissem assistir a tudo do alto de suas janelas. De qualquer modo, caso se insista em tentar aplicar, neste momento, a dualidade agente/expectador, ela terá de implicar uma ênfase, e não uma exclusividade de papéis.

A partir da década de 1870, porém, esta coincidência estrita de atividades festivas para todas as camadas urbanas será rompida. Enquanto, de um lado, as festas de largo vão se consolidando como prática exclusiva de uma população menos abastada – de uma população que havia desenvolvido nas ruas, durante o seu trabalho como vendedores e biscates, o essencial de sua sociabilidade –, de outro lado, uma elite burguesa recentemente enriquecida procura isolar-se em novos modos de sociabilidade festiva: ela frequenta os teatros, engaja-se em sociedades recreativas e esportivas diversas, reúne-se em cafés.

A ruptura da unidade das práticas festivas, desdobramento necessário de uma cisão mais fundamental que se abre sobre a antiga continuidade comunitária, não se resolve, porém, com um simples abandono dos festejos pela burguesia do café. Esta burguesia passa a elaborar a ofensiva de um novo modelo de festa, um modelo que trazia em si, previamente elaboradas, pretensões verdadeiramente civilizatórias. Em compasso com outras burguesias ao redor do mundo, também na São Paulo do último quartel do século XIX, através dos primeiros desfiles das grandes sociedades, luta-se pela hegemonia carnavalesca sobre a cidade. O grande adversário a ser desalojado: o Entrudo.

2.1. Desfiles das Sociedades versus Entrudo: o projeto burguês sonhado, o estabelecimento da centralidade carnavalesca

Nas terras coloniais da Coroa Portuguesa, por mais de dois séculos, o entrudo reinou como a grande manifestação carnavalesca. Aqui, como lá, conservavam-se nesta prática as mesmas características dos carnavais medievais: o entrudo associava a glutonaria desenfreada às bebedeiras descuidadas; os excessos da mesa, por sua vez, num ambiente de licenciosidade sexual, conjugavam-se com os da cama; por fim, pautando todos os desbragamentos, cá e acolá pipocava constantemente a brincadeira selvagem e escatológica do suja, molha e xinga.

Sob aquele nível de representações carnavalescas de anulação das distâncias sociais, a brincadeira do entrudo, na verdade, desenvolvia-se segundo distâncias sociais definidas:

Dentro das casas brincavam as famílias – respeitando-se a diferenciação de nível econômico e social e utilizando-se de projéteis mais sofisticados, como as laranjas e limões-de-cheiro –, enquanto nas ruas, os negros, os pobres, os ambulantes, as prostitutas e os moleques molhavam-se e sujavam-se com polvilho, pó de barro, águas de chafarizes e de sarjetas e um ou outro limão-de-cheiro roubado das casas senhoriais. (FERREIRA, 2005, p. 30).

O que, no entanto, não desmente a existência de uma unidade compartilhada de práticas festivas, bem como, entre os lineamentos de uma sociedade muito próxima ainda de dinâmicas estamentais, a existência de uma comunidade do modo de vida.

Em inícios do século XIX, na capital do país, a recente burguesia carioca, animada com outras ideias para a festa carnavalesca – ordem, regulamentação, purificação – e esquivando-se aos costumes mais caracteristicamente portugueses, já sonha com uma nova forma de se comemorar os dias carnavalescos. E nisso ela é seguida, com um lapso de tempo maior ou menor, por outras burguesias locais – inclusive na cidade de São Paulo. Levantaram-se assim, seguidamente, sem muito sucesso, e ao longo de quase toda a primeira metade do século XIX, as tentativas mais convictas de isolamento e destruição da farra do entrudo.

É com o modelo das promenades parisienses na cabeça que se formularão os projetos burgueses de ocupação festiva das ruas. Através da promoção de luxuosos cortejos de carros que a burguesia paulista, como a burguesia carioca antes dela, pretende instalar a hegemonia espacial de seu projeto carnavalesco. Dispostos a impressionar pela organização e ostentação, os partidários do chamado “Grande Carnaval” fundam a grande centralidade carnavalesca. Ora, a brincadeira do entrudo realizou-se sempre em todo lugar e, portanto, “em lugar nenhum”. As guerras de farinha ao mesmo tempo em que ocorriam dentro dos sobrados, estouravam aqui, ali e acolá – em diferentes pontos das ruas e dos passeios, improvisadas e imprevistas. Festejo carnavalesco que trazia consigo marcas profundas de sua origem agrária, de brincadeira de pequenas vilas, o entrudo nunca se realizou de modo centralizado, mobilizando em grande volume pessoas, coisas e técnicas. Este não era o caso dos desfiles burgueses: já em seu planejamento – que estes festejos exigiam um cuidadoso e antecipado planejamento – era fundamental que se pensasse em um percurso que pudesse gerar grande reverberação pela cidade, que pudesse ecoar, chamar à reunião, concentrar ao seu redor, ser ele mesmo o centro.

E, no entanto, a nova forma festiva, não apenas falhou em conseguir desalojar o entrudo como pareceu mesmo acelerar e enriquecer esta forma mais antiga e popular do festejo carnavalesco. Longe de comportar-se passivamente, a plateia dos desfiles das sociedades continua a se entrudar. Mais: observa, aprende, organiza-se e, na forma de uma verdadeira barafunda de grupos carnavalescos que começa a brotar do atrito com os desfiles burgueses – sociedades, grêmios, cordões, zés-pereiras, tambores, blocos... – passa a disputar lugar na recém-criada centralidade carnavalesca.

Até alta madrugada, as ruas do centro foram theatro dos divertimentos da multidão e horas houve em que a passagem pelas ruas de S. Bento, Direita, Quinze de Novembro e Praça Antônio Prado se tornou muito difícil. Muita gente foi joguete dos encontrões de uma molecagem desenfreada e algumas moças soffreram os effeitos da má educação de um grupo de indivíduos cujos actos não puderam ser corrigidos devidamente, por se tornar isso impossível numa rua completamente cheia de povo. (O ESTADO DE SÃO PAULO, 15 fev. 1915 apud SIMSON, 1984, p. 161).

A centralidade carnavalesca paulistana se expande e explode. Saturada, guardando em seu núcleo interior uma diversidade viva e acelerada de conteúdos, sujeita já a convulsões, comoções e descontroles em massa, essa centralidade, na primeira década do novo século, não pôde evitar sua explosão em um complexo festivo multinucleado. As primeiras sub-centralidades serão formadas por iniciativa burguesa – de novo, num aparente recuo –, mas logo se alastram também entre os bairros habitados pelos trabalhadores de uma cidade que se industrializa velozmente:

Novos pontos de folia se espraiavam pelos vários bairros. Além do Brás, concentrando o carnaval mais popular dos imigrantes, observamos a realização de batalhas de confete e lança perfume na Praça da República, no Largo do Coração de Jesus e no Largo da Liberdade; eram folguedos carnavalescos reunindo as famílias elegantes residentes nesses bairros e se realizando preferencialmente no período vespertino. (SIMSON, 1984, p. 159).
[...] a partir de 1911, já vinham sendo realizados corsos na avenida Paulista e, nesse ano de 1915, com a finalização do asfaltamento do leito carroçável daquela via, grandes cortejos foram programados para a artéria chic da cidade. (SIMSON, 1984, p. 160).

2.2. O projeto burguês reformulado: regulamentação/disciplinamento de formas carnavalescas, transbordamento da centralidade

O desmentido do programa burguês original não poderia simplesmente redundar no abandono da festa por esta classe. A retirada peremptória das ruas para os salões seria mesmo a contradição de uma espécie de “espírito” mundial da burguesia – de fato, um modo de vida sintetizado nos ideais desse “espírito” – que não dispensa o exercício aberto, público, da sociabilidade cotidiana. Exercitar, nas ruas e nas calçadas, nos cafés, nas cervejarias e nos carnavais, este modo aberto de sociabilidade equivalia a declarar que as ruas importantes da cidade não deveriam continuar entregues aos moleques, aos vendedores pregoeiros e às prostitutas – gente que descendia dos antigos escravos ou que havia conhecido por si mesma esta condição. Assim, a pretensão burguesa de controle da festa, tendo de se haver com a complexidade da nova situação carnavalesca, abandona seus traços mais exclusivistas e, reformada, passa a se exercer de modo mais conciliatório. Sob o filtro das concepções do modernismo artístico de então e das últimas reformulações do conceito de nacionalidade, os novos festejos que pipocavam da região de atrito criativo entre o “entrudo” e a festa burguesa passam a contar com o beneplácito geral: desde que despidos de suas feições mais agressivas, sujas e desbocadas, são agora expressões genuínas de uma rica “cultura popular nacional”.

Não é outro o sentido da famosa administração municipal de Fábio Prado que, em meados da década de 1930, pela primeira vez, organiza amplamente a realização dos folguedos carnavalescos na cidade. "O Prefeito Fábio Prado [...] previu, para os vários estratos sócio-culturais existentes em São Paulo, apresentações organizadas de todos os tipos de práticas com locais e horários previamente definidos, valorizando assim as criações carnavalescas populares” (SIMSON, 1989, p. 56-57). Em sua versão posterior e reformada, o projeto carnavalesco burguês atinge, mesmo que efemeramente, o nível de uma política oficial da cidade. As agremiações são ao mesmo tempo que fomentadas e incentivadas, também disciplinadas, regulamentadas, fiscalizadas.

Se a unidade de práticas festivas está agora perdida – como também cada vez mais a comunidade de modos de vida –, a cidade e a festa surgem no começo do século XX como centralidades potentes. Nem tanto fragmentação, mas diferenciação e encontro. A linguagem comum se enriquece sem ainda se perder. Do entrudo descentrado ao estabelecimento de uma centralidade em que diferenças se encontram, se comunicam, se enfrentam e se combatem – e daí para uma centralidade ampliada, explodida, reunião de centralidades menores.

Dos subcentros carnavalescos que se desenvolviam em São Paulo neste início de século, certamente que o Brás foi um dos mais vibrantes. Em fins da década de 1910, não apenas os foliões dos bairros adjacentes – como Mooca, Pari, Belém, Tatuapé e Penha – o frequentavam, mas gente de bairros bem mais distantes – como Lapa, Pinheiros e Pirituba – também começava a chegar. De modo significativo, “os elementos mais foliões e arrojados que participavam do corso distinto da Avenida Paulista, realizado nos mesmos dias de carnaval, tomavam o rumo do Brás para se irmanar com as famílias imigrantes” (SIMSON, 1989, p. 33). Por essa época também até mesmo os préstitos das grandes sociedades carnavalescas, nas terças-feiras, após a meia-noite, passaram a desfilar seus grandes carros no carnaval do Brás – num outro gesto igualmente significativo da nova atitude em relação aos festejos carnavalescos populares.

Nas décadas seguintes, em 1940 e 1950, o carnaval do Brás, como também o de outros bairros – aquele da Água Branca, por exemplo –, desapareceria sem que os próprios foliões soubessem exatamente das razões dessa extinção. É possível ver nesse desaparecimento, retrospectivamente, as primeiras insinuações da futura metrópole: tanto para o antigo bairro do Brás quanto para o da Água Branca, tratava-se do avanço de um processo de especialização funcional que dissolvia a antiga complexidade da vida local na nova complexidade, de feições analíticas, do todo metropolitano em expansão. Num caso, como no outro, aquela característica implicação das moradias familiares com os estabelecimentos comerciais, surgida como uma pequena unidade ao redor da estação de trem, de algumas importantes fábricas – e sob a vigilância do pároco –, foi rompida com a intensificação dos processos de integração dos bairros na futura metrópole. No Brás, a progressiva concentração industrial e comercial ao longo de terminais de importantes eixos de transporte – que faziam a ligação de São Paulo com a cidade do Rio de Janeiro e com toda a região do Vale do Paraíba – expulsou boa parte das famílias para alguns bairros mais a leste, como Tatuapé, Penha e Vila Matilde. Na Água Branca, surpreendentemente e de maneira inversa, foi justamente a chegada de mais famílias, de acordo com as feições estritamente residenciais que passariam a caracterizar aquela região, que fez dissolver a antiga vida carnavalesca do bairro.

3. Metropolização da cidade: ordenamento analítico do espaço e da festa; persistência das agremiações carnavalescas negras

O ápice da centralidade carnavalesca da cidade de São Paulo – que podemos localizar nessas duas décadas de 1930 e 1940 – coincide, portanto, com o surgimento dos primeiros processos de negação metropolitana desta centralidade e, no nível dos modos de vida, com as primeiras grandes baixas impostas à vida de bairro.

Há que se observar, porém, que as agremiações carnavalescas negras que começaram a surgir lentamente na década de 1910 – precisamente desta zona de trocas, atritos e tensões, localizada entre o “entrudo” e o carnaval oficial – conheceram o seu esplendor justamente num momento tardio, na dispersão e na fragmentação daquela centralidade carnavalesca composta por núcleos diversos e que mantinham entre si um trânsito constante. Como é possível que isso tenha ocorrido? Não apenas as formas estéticas diferenciavam relativamente os festejos dessas agremiações de outros folguedos, mas sua própria importância era sentida, na vida de bairro, de modo bem diverso:

No Carnaval Branco [isto é, no carnaval dos bairros do Brás e da Água Branca, entre outros de marcada formação imigrante europeia], os clubes que organizavam as festas de Momo encaravam o período carnavalesco como uma época excepcionalmente favorável para a obtenção de recursos financeiros, que eram usados para custear as demais atividades da agremiação pelo resto do ano. Portanto, o carnaval era valorizado pelas lideranças brancas por permitir a realização de outras atividades durante o ano, e não em si mesmo.
No Carnaval Negro [de bairros como Bela Vista, Barra Funda] o oposto ocorria. Os desfiles de Momo representavam o ponto culminante das atividades de agrupamentos surgidos em função do próprio carnaval. As atividades de lazer de meio de ano eram organizadas para gerar recursos que permitissem uma boa apresentação carnavalesca, sendo o desfile a atividade principal, catalisadora de todos os esforços dos membros dos agrupamentos negros. A capacidade de superar a desestruturação dos grupos de vizinhança dos bairros negros mais antigos que os haviam originado, criando novas formas de organização dos folguedos baseadas em filiais situadas na periferia, vem demonstrar a importância dos desfiles carnavalescos para os agrupamentos negros. (SIMSON, 1989, p. 224-225).

Há, portanto, que se considerar a ação de uma espécie de resistência étnica como importante fator de um esplendor carnavalesco das agremiações negras no momento, precisamente, em que a centralidade carnavalesca era desbastada pela emergência de uma formação metropolitana. É bem conhecido o modo como, em meados da década de quarenta, por ocasião de uma grande elevação dos aluguéis na cidade, as famílias negras que foram obrigadas a abandonar a Bela Vista por bairros distantes, de além-Tietê ou em outras regiões da cidade, continuaram a relacionar-se com o então cordão do Vai-Vai. Cedo, esta agremiação teve testada a sua capacidade de sustentar uma teia de ramificações que se dispersavam com a cidade.

Se o incremento das associações negras desenvolve-se linearmente na primeira metade do século XX, na década de 1950 e na seguinte os cordões paulistanos conhecem sua grande crise: o descompasso entre o que já se havia acumulado em pessoas, coisas e técnicas e a precariedade dos meios de sustento material e financeiro desta acumulação. Surgidos ainda numa cidade de bairros, onde o trajeto das apresentações limitava-se a algumas paradas entre a vizinhança e, depois, pondo-se num caminho um pouco mais longo, ao comparecimento a alguns poucos centros foliões, os cordões atiraram-se dramaticamente em caminhadas cada vez maiores – em alguns dias tinham de cobrir regiões tão distantes entre si como Penha, Lapa e Parque do Ibirapuera. O que estava em jogo não era apenas a necessidade das recompensas financeiras acenadas por essas diversas organizações de lojistas e por empresários do entretenimento, mas a conquista de um espaço carnavalesco liberado recentemente pelo recuo e desaparecimento de importantes folguedos – como o corso e o desfile das grandes sociedades.

3.1. Associações negras perdem o pé: avanço da dissolução da vida de bairro

Mas a desorganização das antigas formas de reprodução da festa carnavalesca se fazia sentir não apenas na desgastante ampliação dos trajetos que seguia pela cidade o movimento de dispersão dos núcleos carnavalescos. Sob seus próprios pés, os cordões sentiam que o chão se perdia: nestas mesmas décadas, o Livro de Ouro – inicialmente, um meio fundamental de sustento dos cordões – cai em desgraça. O que se costuma dizer é que, neste momento de crise, a intensidade redobrada com que se apelou a este recurso – “passados por vários diretores de uma mesma agremiação, pelo melhor baliza, pelo primeiro destaque ou outra figura importante do desfile” (SIMSON, 1989, p. 128) – acabou por levantar suspeitas de má fé em sua utilização e, portanto, descrédito entre os doadores. Delegados de polícia de alguns destes bairros haviam mesmo proibido sua circulação. De fato, o fluxo metropolitano de pessoas, entre outros processos mais de metropolização da cidade, já desgastava os liames da antiga vizinhança. A oferta da dádiva implica não apenas um vínculo de pessoalidade, como a perspectiva de continuidade da relação no tempo – ela não se realiza fora da comunidade.

A reprodução da festa carnavalesca, nestas condições de desintegração do bairro e de dispersão dos núcleos festivos, teve de se refazer em uma nova base: uma base metropolitana. Este é o contexto social da decisão política que, em 1968, decide por uma regulamentação dos festejos, pela busca de meios de sustentá-lo financeiramente e – enfim – na metrópole dos espaços indiferenciados e analiticamente recortados, acaba por desbastá-los de suas complexidades fazendo-os cativos de um desses espaços funcionais: a falsa centralidade carnavalesca.

Haverá ainda a possibilidade de se restabelecer, na cidade e na festa, a autêntica comunicação, a centralidade e o movimento da centralidade?

Referências bibliográficas

DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo: Comentários sobre a Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
FERREIRA, Felipe. Inventando Carnavais: o surgimento do Carnaval carioca no século XIX e outras questões carnavalescas. Rio de Janeiro: UFRJ, 2005.
PEREIRA DE QUEIROZ, Maria Isaura. Carnaval Brasileiro. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SIMSON, Olga Rodrigues Von. A Burguesia se Diverte no Reinado de Momo: sessenta anos de evolução do carnaval de São Paulo (1855 – 1915), 1984. Dissertação (Mestrado)– FFLCH-USP, São Paulo, 1984.
______. Brancos e Negros no Carnaval Popular Paulistano (1914 – 1918) , 1989. Tese (Doutorado)– FFLCH-USP, São Paulo, 1989.
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Bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela FFLCH-USP. Mestre em Geografia Urbana pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia da FFLCH-USP com a dissertação: “Da Festa da Representação à Representação: apontamentos sobre a transformação do tempo-espaço carnavalesco”. O artigo aqui apresentado inspira-se nesta dissertação.