Artigo publicado na edição nº 40 de fevereiro de 2010.
Segregação socioespacial e escolas de samba na cidade de São Paulo
Tiarajú D’Andrea
O surgimento das escolas de samba em São Paulo[*1]
O surgimento e a existência das escolas de samba são processos que estão profundamente vinculados à dinâmica territorial de produção social do espaço urbano. As primeiras escolas de samba e os cordões (que depois viriam a se transformar em escolas de samba) surgiram na região central do município ou nos subúrbios operários deste. Estes bairros, que outrora eram subúrbios, hoje são bairros consolidados do centro expandido do município, dado o crescimento da mancha urbana da cidade de São Paulo. Assim sendo, cabe destacar a fundação da Vai-Vai no bairro do Bixiga, em 1930, e do Camisa Verde e Branco na Barra Funda, em 1953. No caso da Vai-Vai, seu surgimento está vinculado ao de um time de futebol, o Cai-Cai, mas o embasamento social que alicerçou sua existência foi fundamentalmente a forte presença negra na região[*2]. Já o Camisa Verde e Branco é o desdobramento do “Grupo Carnavalesco Barra Funda”, fundado em 1914[*3], cuja base social para sua existência foram os negros que viviam e trabalhavam na região e os operários da então nascente zona industrial[*4].
Se, de fato, a estação da Barra Funda e a estrada de ferro circundante ao bairro foram fatores essenciais para o desenvolvimento econômico e o assentamento das classes populares naquela região – fato que se desdobraria na forte presença negra nas expressões culturais do bairro –, é interessante notar que, em outro canto da cidade, algo similar ocorria nas primeiras décadas do século XX. Fundada em 1949, a escola de samba Nenê de Vila Matilde surge das mãos de um grupo de sambistas que se reunia naquela parte da zona leste do município. No entanto, a existência do dito grupo e a posterior consolidação dessa escola enquanto potência carnavalesca só foram possíveis pela junção de dinâmicas sociais já presentes na região: a alta concentração de população negra; a forte presença operária e uma tradição carnavalesca expressa no famoso carnaval da Vila Esperança, cujo cerne residia na presença de mais de vinte blocos carnavalescos na região durante as primeiras décadas do século XX (URBANO, 2006). Seguramente, a existência desses blocos assegurou uma tradição carnavalesca na região que sustentou socialmente a existência de uma escola de samba tão grande e tão importante como a Nenê de Vila Matilde.
De certo, se há uma regularidade expressa no surgimento e na consolidação dessas importantes escolas de samba do município de São Paulo, ela reside na alta concentração de população negra, em particular, e de pobres em geral nos bairros de surgimento dessas escolas de samba. Partindo desse pressuposto com relação ao surgimento destas escolas de samba, mas tentando entender a dinâmica social do universo das escolas atualmente, este ensaio pretende problematizar uma questão principal: quais são, hoje em dia, os principais elementos necessários para a consolidação e a manutenção das escolas de samba nos altos escalões da competição carnavalesca de São Paulo, ou seja, o Grupo Especial e o Grupo 1?[*5] Como se verá, este ensaio entende que a localização geográfica de uma escola de samba é um quesito fundamental para a resposta da pergunta acima efetuada. A partir deste ponto do texto, problematizar-se-á o referido argumento a partir da análise da disposição geográfica de 107 entidades carnavalescas do município de São Paulo. Abaixo do mapa segue a denominação das 107 entidades mapeadas com uma numeração para localizá-las[*6].
MAPA 1: Lista das entidades carnavalescas (escolas de samba e blocos) com numeração referente à posição no mapa. [1-20] / [21-40] / [41-60] / [61-80] / [81-100] / [101-107]
O mapa acima apresenta a distribuição territorial de 107 entidades carnavalescas do município de São Paulo. Essas entidades carnavalescas, entre escolas de samba e blocos, representam os grupos concernentes aos níveis da competição carnavalesca. No mapa, há um destaque às escolas de samba dos grupos Especial e 1, aqui nomeadas grandes escolas.
Uma breve análise da distribuição das 107 entidades carnavalescas aqui apresentadas oferece um interessante panorama da dinâmica social que embasa a existência das escolas de samba.
Num primeiro plano, pode-se observar um razoável espraiamento das entidades carnavalescas por sobre o território do município. O dito espraiamento contrasta com a considerável e conhecida concentração de equipamentos culturais nas regiões mais abastadas do município. Dessa maneira, as entidades carnavalescas tornam-se uma das expressões culturais mais democráticas e acessíveis à população paulistana, no geral, e aos moradores das periferias, em particular. Sobre o assunto discorreu a pesquisadora Isaura Botelho:
A par dos equipamentos públicos e privados existentes, uma administração que se queira eficiente tem de considerar a parceria com associações e entidades de natureza diversa que desenvolvem atividades culturais. Nesse sentido, é interessante observar, por exemplo, a distribuição das escolas de samba presentes em todas a regiões da cidade. (BOTELHO, 2004).
O referido espraiamento no território da manifestação cultural expressa nessas entidades carnavalescas, do qual se ressalta sua presença na periferia do município, contrasta de maneira determinante com a ausência dessa expressão cultural justamente nos bairros da região mais valorizada do município, o chamado quadrante sudoeste. Nessa região, incluem-se os distritos do Morumbi, de Pinheiros, de Moema, do Itaim-Bibi, de Cerqueira César, entre outros de elevado padrão social. A ausência de entidades carnavalescas nessa região contrasta também de maneira evidente com a concentrada presença de equipamentos culturais justamente nessa região. Mais interessante ainda é notar que na região onde se concentra a população mais abastada e a maior concentração de equipamentos culturais é justamente a região onde inexistem as entidades carnavalescas bem como onde não reside a população negra!
A partir da breve análise realizada da disposição de entidades carnavalescas no município, pode-se inferir então que escolas de samba e blocos carnavalescos são provavelmente os equipamentos culturais mais acessíveis e mais democráticos à maioria da população. Outra breve conclusão é a de que em bairros de alto poder aquisitivo, que também são os bairros onde é menor a presença da população negra, não existem entidades carnavalescas. No entanto, se escola de samba é uma expressão cultural que não nasce em bairros ricos, paradoxalmente ela nasce, mas não cresce em bairros pobres. Basta olhar no mapa a grande presença de escolas de samba nas periferias sul, norte e leste, mas não das denominadas grandes escolas nessas regiões. Se tentará explicar melhor esse fenômeno na sequência do texto.
Localização enquanto Estrutura de Oportunidades
Se nos primórdios dos desfiles carnavalescos a força de uma escola de samba residia na qualidade dos sambistas, no compromisso dos participantes com dita expressão cultural e na capacidade de organização coletiva, hoje em dia o panorama é bem distinto. A efetivação de um desfile carnavalesco depende de inúmeros fatores. Esses fatores, no entanto, são subsumidos fundamentalmente a três capacidades colocadas em prática por uma escola de samba: a capacidade criativa que fundamenta o fazer artístico; a capacidade organizativa de racionalização do processo de confecção do desfile em todos os seus âmbitos; a capacidade de mobilização de recursos materiais e humanos que sustentam essa organização social e possibilitam a expressão artística.
Dentro dos moldes atuais da produção do desfile carnavalesco, este ensaio sustenta que o terceiro fator, juntamente aos outros dois, é de vital importância para a existência de uma grande escola. Todavia, é de se notar que a capacidade de mobilização de recursos materiais e humanos está diretamente relacionada à localização geográfica de uma escola de samba.
A conceituação teórica que fundamenta o argumento disposto acima, de que a localização é fator fundamental para a mobilização de recursos, é dada pelos pesquisadores R. Kaztman e C. Filgueira, e diz respeito à concatenação entre estruturas sociais dispostas numa dada localidade e a possibilidade de utilização dos ativos dessa localidade. Tal dinâmica foi conceituada pelos autores como estrutura de oportunidades. Segundo os autores:
O termo “estrutura” [de oportunidades] relaciona-se ao fato de que os caminhos para o bem-estar estão estreitamente vinculados entre si, de modo que o acesso a determinados bens, serviços ou atividades fornece recursos que, por sua vez, facilitam o acesso a outras oportunidades. (KAZTMAN; FILGUEIRA, 1999, p. 9).
De fato, a capacidade organizativa de uma escola de samba possibilitará a utilização dos recursos materiais e simbólicos – espécie de capital social – existentes em sua proximidade. Uma escola de samba é uma força centrífuga que ativa a energia social do entorno. Retomando a questão do surgimento de importantes escolas de samba paulistanas, retratada no início do texto, faz-se necessário destacar que é a força social de uma determinada região que dá origem a uma escola de samba. De fato, uma grande escola deve ter pessoas criativas e talentosas que literalmente “segurem o samba”, mas a localidade deve ter uma certa riqueza social que permita à escola se manter. Essa riqueza social se expressa na qualidade dos vínculos existentes nas redes sociais (KAZTMAN; FILGUEIRA, 1999), na qualidade dos contatos que derivam em recursos materiais e simbólicos, na presença de comércios e clubes etc.
As escolas de samba, em geral, começam pequenas, em um determinado ponto geográfico. Aos poucos, demandas necessitam ser supridas para dar conta desse crescimento: fazem-se necessários instrumentos, som de qualidade, roupas, uma sede etc. A entidade vai crescendo e se complexificando. A metáfora aqui utilizada é a de que o ponto onde começa uma escola de samba, com seu crescimento, vai puxando, sugando, uma série de recursos do entorno. Esse entorno deve ter força social e humana e capital material para sustentar essa estrutura de gastos que se socializam a partir do espraiamento da necessidade da escola de samba. As periferias do município de São Paulo estão repletas de sambistas de qualidade. Contudo, os escassos recursos materiais dessas regiões fazem com que escolas de samba ali surgidas não consigam ultrapassar um certo tamanho, ou seja, o crescimento esbarra nas próprias condições de possibilidade do entorno imediato e não imediato. Além disso, essas escolas devem socializar uma certa riqueza concentrada com a própria população que a frequenta ou de seu entorno. Alguns exemplos disso são a prática de doar a fantasia de desfile para a comunidade e a não cobrança pecuniária nas festas da entidade. Escolas maiores e localizadas em distritos com melhores condições sociais invertem o polo da questão: cobram caro pelas fantasias de desfile e taxam as festas. Ou seja, num dado momento de sua existência, a escola de samba passa da relação dialética de ser doadora e receptora para ser apenas receptora, aumentando assim seu tamanho e poderio.
Outra dinâmica presente nos bairros pobres relaciona-se à própria proximidade entre entidades carnavalescas que disputam entre si a riqueza social de uma dada região. Muitos são os casos de escolas que “derrubaram” ou “foram derrubadas” por escolas vizinhas. Quanto maior a pobreza, menos recursos haverá para serem divididos.
Logo, para este ensaio, a localização de uma escola de samba é fator primordial para o seu sucesso. Contudo, se a riqueza ou a pobreza material de dita localização strictu senso é um fator primordial, como já apresentado, há que se entender localização também em termos de acessibilidade, como demonstra um dos maiores especialistas brasileiros em segregação socioespacial, o urbanista Flávio Villaça.
Segundo o autor, a medida da segregação socioespacial deve ser realizada levando-se em consideração avenidas e meios de transporte de massa próximos a um determinado ponto. Utilizando o argumento do autor para a finalidade deste ensaio, a já comentada força centrífuga de uma escola de samba será potencializada se sua localização permitir o acesso de sambistas de distintas zonas da cidade. A questão da acessibilidade, aliada ao capital social de uma região, pode ser uma chave explicativa para a concentração de grandes escolas na região central e centro-oeste do município, locais de maior incidência de metrô e grandes avenidas servidas de linhas de ônibus.
A partir deste ponto do texto, e considerando a atual localização das grandes escolas, tentar-se-á discutir as ditas localizações dos dois elementos que as compõem segundo este ensaio: acessibilidade, nos termos de Flávio Villaça (1998), e estrutura de oportunidades, segundo Kaztman & Filgueira (1999).
Assumindo os dois termos, escolas de samba do centro de São Paulo teriam mais condições de sobrevivência pelo fluxo de pessoas garantido pela acessibilidade e pelos recursos existentes nessa região. O exemplo clássico seria a Vai-Vai – localizada no Bixiga –, que é de certa forma universal, dado que congrega foliões dos quatro cantos da cidade, cujo deslocamento até a escola é facilitado pela oferta de transporte.
Outras escolas de samba universais são aquelas ligadas a torcidas de futebol. Pelo seu caráter intrínseco de torcida, essas escolas possuem menor ligação com uma comunidade ou bairro. Não por acaso, a Dragões da Real facilita a vida de seus sambistas-torcedores ensaiando no centro. Já Mancha Verde e Gaviões da Fiel possuem quadras no centro expandido, mas em locais próximos à Marginal Tietê, onde os terrenos são mais baratos. De certo, a questão econômica acabou aproximando as rivais. Ambas as quadras localizam-se a apenas um quilômetro uma da outra. Na mesma lógica, trilhando a opção de localização com preço acessível, mudou-se para a região a Tom Maior. E no meio das três, a pioneira da região: o Camisa Verde e Branco, escola de samba com fortes laços com o bairro, mas cuja acessibilidade permite a frequência em sua quadra de sambistas de várias regiões do município.
Duas grandes escolas de samba que em sua história saíram de bairros mais empobrecidos onde surgiram e assentaram suas quadras em locais de fácil acessibilidade foram Rosas de Ouro e Águia de Ouro. A primeira deixou a periferia da Brasilândia e hoje seu endereço é na Marginal Tietê, no bairro da Freguesia do Ó. Por sua vez, a Águia de Ouro saiu dos morros empobrecidos da Vila Anglo-Brasileira para construir sua quadra debaixo do Viaduto Pompeia, em frente à Avenida Francisco Matarazzo.
Entretanto, como explicar de maneira convincente a alta densidade de escolas de samba na região norte de São Paulo? Já se disse que é por causa da localização do sambódromo na zona norte. Essa explicação não se sustenta, uma vez que foi justamente a grande presença de escolas nessa região que puxou o sambódromo para o Anhembi, não o contrário. Outra explicação afirma que os migrantes do interior paulista, quando vinham para o município de São Paulo, concentravam suas residências nessa região, mais perto das saídas para o interior. Como essa população trazia o samba rural, germe do samba paulista, a zona norte do município teria sido um caldeirão efervescente de sambistas. Este ensaio assume o argumento, mas ainda acredita que é insuficiente para a explicação que se busca. Historicamente, está comprovado que bairros como o Parque Peruche, a Casa Verde e o Tucuruvi eram grandes redutos de bambas. Essa presença de fato condicionou o surgimento de escolas de samba como a Unidos do Peruche, a Morro da Casa Verde, a Império da Casa Verde, a Mocidade Alegre, a Acadêmicos do Tucuruvi e a X-9 Paulistana. O que não se explicou ainda de maneira convincente é a permanência de todas essas agremiações tão próximas geograficamente no grupo das grandes escolas. Este ensaio sustenta que a estrutura de oportunidades e os capitais material e social gerados por esses distritos de classe média e classe média baixa são fundamentais. No entanto, este ensaio acredita que a presença de redutos de sambistas e o poder aquisitivo concentrado nesses distritos não explicam em sua totalidade tal fenômeno.
Cabe destacar que, no livro Batuqueiros da Paulicéia, Osvaldinho da Cuíca e André Domingues afirmam que as escolas de samba Mocidade Alegre e Rosas de Ouro foram as que mais se estruturaram enquanto instituição a partir das boas relações que estabeleceram com a classe média paulistana, sendo essas duas as pioneiras da dita relação. Hoje, pode-se afirmar que a presença da classe média está generalizada nas grandes escolas, sendo inclusive um dos fatores de sustento delas[*7].
Para este ensaio, não existe uma maior concentração de sambistas em algumas regiões da cidade em detrimento de outras regiões e nem há uma presumível melhor qualidade de sambistas em algumas regiões. O caso exemplar é o baixo número relativo de grandes escolas localizadas na zona leste de São Paulo. Com uma população de 3 milhões e meio de habitantes e com a maior concentração de negros e pobres do município, a região por suas condições precárias não consegue firmar muitas escolas entre as grandes, dada a necessidade de capitais social e material para sustentar as escolas de samba. Localizadas em bairros pobres e longe de grandes vias de acesso, Nenê de Vila Matilde e Uirapuru da Mooca, do Grupo 1, e Leandro de Itaquera, do Grupo Especial, dobram seus esforços para se manterem vivas no meio do concorrido e enriquecido carnaval paulistano. De certo, escola de samba é questão de infraestrutura e patrimônio, questões relacionadas com espaço, localização e também com cor de pele. Já foi o tempo em que bastava samba no pé e amor à escola.
Referências bibliográficas
BOTELHO, Isaura. Os Equipamentos Culturais na Cidade de São Paulo: Um Desafio Para a Gestão Pública. Espaço e Debates – Revista de Estudos regionais e urbanos, São Paulo, n. 43/44, 2004.
CASTRO, Márcio Sampaio. Bexiga. Um Bairro Afro-Italiano. São Paulo: Annablume, 2008.
CUÍCA, Osvaldinho; DOMINGUES, André. Batuqueiros da Paulicéia. São Paulo: Editora Bracarolla, 2009.
KAZTMAN, R.; FILGUEIRA, C. Marco conceptual sobre activos, vulnerabilidad, y estructura de oportunidades. Montevideo: Cepal, 1999.
MARCOS, Plinio. Plinio Marcos em Prosa e Samba com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro. [S. l.]: Chantecler, p1974. 1 disco sonoro (LP).
URBANO, Maria Aparecida. Carnaval & Samba em Evolução na Cidade de São Paulo. São Paulo: Editora Plêiade, 2006.
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-Urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel; Fapesp; Lincoln Institute, 1998.
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