:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 40 de fevereiro de 2010.
O samba e o carnaval paulistano[*1]

Francisco de Assis Santana Mestrinel (Chico Santana)

O samba é um dos gêneros da música popular brasileira mais conhecidos e difundidos em nosso país. Esse verdadeiro universo conhecido por samba teve origem nas manifestações musicais dos negros africanos que vieram para o Brasil durante o período da escravidão. Cada etnia africana trouxe uma bagagem cultural e musical, que aqui passaram a conviver e a dialogar, principalmente nas regiões que concentravam maior número de escravos (primeiramente na Bahia, depois no Rio de Janeiro e nas outras regiões como São Paulo e Minas Gerais). A cultura Bantu foi uma das mais importantes para o surgimento do samba (LOPES, 2003), que também foi influenciado pela música europeia. O termo samba inicialmente designava qualquer das manifestações musicais dos negros, geralmente associadas a presença da percussão e da coreografia da umbigada (chamada de semba).

No Rio de Janeiro do início do século XX, esse gênero se configurou, agregando elementos do choro e das batucadas de terreiro, além dos versos improvisados, mediados por uma incipiente cultura urbana. Nas casas das Tias Baianas, como a Tia Ciata, na região da Saúde, o samba nasce da efervescência cultural proporcionada pelo convívio de negros, oriundos principalmente da Bahia, em um ambiente urbano. Em sua primeira fase, o samba possuía uma rítmica bastante próxima à do maxixe, estilo de choro bastante popular desde meados do século XIX na então capital brasileira. O samba-amaxixado perdurou até o surgimento das primeiras escolas de samba cariocas, refletindo, a partir disso, toda a influência que o carnaval exerceria sobre o samba.

Na capital fluminense, um grupo de sambistas do bairro do Estácio de Sá criou, em 1928, a pioneira escola de samba, a Deixa Falar, introduzindo no carnaval um samba diferente, com temática urbana, presença marcante de instrumentos de percussão e com uma batida que se tornaria referência nacional nas décadas posteriores, rompendo com o samba-amaxixado. Além disso, a Deixa Falar lançou um formato de cortejo, que se desenvolveu nas subsequentes escolas de samba do Rio de Janeiro e de todo o Brasil, inspirado pelos ranchos carnavalescos, inaugurando uma estética que predomina até os dias atuais no carnaval brasileiro.

O carnaval é uma das principais festas do Brasil, ocupando lugar de destaque entre diversas camadas da população e da mídia. Em São Paulo, teve sua origem ligada à manifestação do entrudo, uma brincadeira na qual os foliões atiravam água e outros líquidos entre si, existente desde o século XV. Por volta de 1870, a maneira como a população divertia-se no período carnavalesco passou a apresentar mudanças decorrentes do enriquecimento proporcionado pela expansão cafeeira. Tal fato fez com que as camadas mais altas passassem a adotar um estilo de vida burguês europeu (PEREIRA DE QUEIROZ, 1973 apud SIMSON, 2007, p. 22), buscando diferenciar-se da população menos abastada, rompendo a homogeneidade presente nas manifestações culturais do período anterior. As manifestações lúdicas antigas, diante das novas formas de divertimento burguesas que surgiam, foram relegadas às regiões periféricas das cidades e se transformariam em folguedos típicos das camadas populares (PEREIRA DE QUEIROZ, 1973 apud SIMSON, 2007, p. 22).

No festejo momesco paulista, podemos diferenciar, a partir de então, os chamados grande carnaval e pequeno carnaval. O primeiro correspondia ao carnaval elitizado do luxo e do brilho, também conhecido como carnaval veneziano; o outro era aquele baseado nas tradições lúdico-religiosas portuguesas, negras e indígenas (SIMSON, 1984, p. 18). O grande carnaval englobaria os préstitos[*2] burgueses, passando pelos bailes de máscaras, indo das ruas aos salões e retornando ao ambiente externo com o desfile das grandes sociedades e o corso. O pequeno carnaval era representado pelas manifestações de rua da população mais pobre, que tinha na dança e na música os elementos centrais de suas festas, de onde surgiriam os blocos, os cordões, os ranchos e as escolas de samba, que paulatinamente agregariam também elementos do grande carnaval.

A formação do carnaval popular paulistano tem como base fundamental as festas de caráter religioso-profano das pequenas cidades interioranas nas quais a população pobre manifestava-se por meio de suas danças e músicas, que acabaram tornando-se parte indissociável dos festejos, como na festa de Bom Jesus de Pirapora. Os primeiros líderes de grupos carnavalescos paulistanos, em sua maioria provindos do interior do estado, ao frequentarem estas festas, absorviam elementos musicais e coreográficos que seriam manifestados no carnaval popular paulistano. Assim, a influência dos sambas rurais presentes na festa de Pirapora refletir-se-ia na música dos cordões carnavalescos paulistanos, que por sua vez influenciariam as futuras escolas de samba da capital bandeirante, atualmente as principais agremiações carnavalescas de São Paulo.

Entre os líderes sambistas criadores dos cordões destacam-se duas influências culturais determinantes identificadas por Olga Von Simson:

1. As festas de caráter religioso-profano como congada, moçambique e samba de Pirapora, vivenciadas geralmente fora da capital (principalmente Capivari, Tietê e Piracicaba), além das festas realizadas pela comunidade negra na periferia da cidade de São Paulo, como a de Treze de Maio, São Benedito e Santa Cruz.
2. Elementos contemporâneos e cosmopolitas, folguedos locais, mineiros ou cariocas, cinema, teatro de revista, bandas musicais civis e militares. (SIMSON, 2007, p. 115 e 116).

O primeiro cordão carnavalesco paulistano foi criado por Dionísio Barbosa em 1914 e chamava-se Cordão da Barra Funda (posteriormente Camisa Verde e Branco). Dionísio morou no Rio de Janeiro, onde teve contato com os ranchos carnavalescos de lá, além das bandas militares, populares no início do século XX. Assim, Dionísio resolveu criar um grupo carnavalesco em São Paulo. No entanto, o contexto cultural, social e histórico da capital paulista era bem diverso do da capital fluminense e os primeiros cordões carnavalescos paulistanos exibiriam características peculiares. Visualmente, os cordões se caracterizavam pela presença do Baliza, personagem que executava malabarismos com um bastão e abria caminho para a agremiação carnavalesca passar entre os foliões, além de defender o estandarte do grupo, o próprio estandarte, símbolo maior do cordão, e corte com rei, rainha, príncipe etc. Os elementos musicais característicos eram a batucada, responsável pela manutenção do ritmo do desfile por meio da execução de instrumentos de percussão e sopro, com destaque para o bumbo, e o chamado choro, grupo responsável pelo acompanhamento melódico e harmônico, com instrumentos de corda, cavaquinho e violão, e também de sopro, como trompete, trombone e saxofone. O ritmo interpretado pelos cordões era a chamada marcha-sambada, que mesclava elementos dos sambas rurais paulistas e da marcha.

A influência dos cordões foi determinante para as primeiras escolas de samba de São Paulo na mesma medida em que os ranchos influenciaram as escolas cariocas (MORAES, 1978). Assim, nas primeiras escolas de samba paulistanas, houve a mescla de elementos dos cordões com características musicais e coreográficas do samba carioca, que diferenciavam a escola de samba dos demais agrupamentos carnavalescos. As primeiras escolas de samba de São Paulo surgiram em meados da década de 1930. A “Primeira de São Paulo” é considerada por alguns como a pioneira, mas a primeira escola a se firmar no carnaval paulistano foi a “Lavapés”, fundada em 1937 por Madrinha Eunice e Chico Pinga, no bairro da Liberdade.

As primeiras escolas de samba paulistanas mantiveram por muitos anos diversos elementos dos cordões, como o Baliza e o estandarte. Na questão musical, embora buscassem uma aproximação com o samba carioca, a influência dos sambas rurais paulistas no ritmo dos cordões era determinante, sendo possível observar a presença do bumbo e de instrumentos de sopro nos cordões até o fim da década de 1960.

Se no Rio de Janeiro o samba teve como importante matriz o maxixe, que por sua vez apresentava influências do lundu e da modinha, em São Paulo o samba rural, ou samba de bumbo, estava diretamente ligado aos batuques negros, sem tanta influência urbana como a que mediou o processo de transformação do samba carioca. Isso se explica pelo fato de a cultura urbana europeia estar mais amplamente difundida na capital fluminense em comparação com São Paulo, onde a cultura rural se fez presente por mais tempo nos folguedos populares, devido ao desenvolvimento urbano paulista posterior ao carioca. A transformação do Rio de Janeiro em capital do Império Português no início do século XIX mostrou-se determinante para a difusão da cultura urbana europeia em terras fluminenses. Já em São Paulo, a urbanização ocorre em fase posterior, na segunda metade do século XIX, devido à expansão cafeeira e ao enriquecimento da elite da capital bandeirante. Dessa diferença entre o universo urbano e rural é provável que tenha surgido a terminologia “samba-rural”, empregada por Mário de Andrade em seus estudos sobre os sambas paulistas presentes na festa de Bom Jesus de Pirapora durante a década de 1930[*3].

O samba carioca pós-Estácio se aproximou da marcha, rompendo com a rítmica amaxixada, a fim de facilitar a evolução em cortejo dos foliões. As escolas de samba cariocas agregavam elementos visuais dos ranchos à musicalidade negra presente no samba, que ganhava uma feição marchada, para tornar mais fluente o desfile dos componentes do grupo carnavalesco. O caráter marchado designa uma marcação mais constante do pulso musical, que auxiliaria no ato de caminhar e dançar simultaneamente. O maxixe era dançado em par e sua rítmica, teoricamente, não colaborava para um desfile. Um dos principais nomes do grupo de sambistas do Estácio, Ismael Silva, explica: “É que, quando eu comecei, o samba da época não dava para os grupos carnavalescos andarem na rua... O estilo não dava pra andar” (CABRAL, 1996, p. 28). Maximo e Didier, que também entrevistaram o mesmo sambista complementam: “Segundo Ismael, a necessidade que os blocos têm de cantar sua música marchando e não dançando, se deve ao samba do Estácio de Sá suas características” (MAXIMO; DIDIER, 1990, p. 118). Entretanto, os mesmos autores, bem como Sandroni (2001), apontam essa postura mais como um rompimento com a forma “amaxixada” de fazer samba do que propriamente uma questão de adequamento musical coreográfico à nova maneira de brincar o carnaval.

Já em São Paulo, a marcha-sambada também se aproximava da marcha, mas com a influência dos sambas rurais, ou samba de bumbo, com rítmica diversa do samba carioca. A presença do bumbo parece ser a característica mais marcante dessa manifestação, e o termo “samba de bumbo” torna-se emblemático. Tal terminologia engloba uma família de manifestações negras de canto, percussão e dança originária dos batuques negros cultivados em toda a América desde o início do tráfico de escravos. Segundo Manzatti, as distinções apontadas por antigos folcloristas como Rossini Tavares Lima e o próprio Mário de Andrade, com o uso de denominações distintas para as manifestações, confundem quando da identificação desse gênero como oriundo da mesma matriz africana, e os nomes “samba lenço”, “samba rural”, “samba de Pirapora”, “samba campineiro”, entre outros, designariam variações do mesmo ritmo, chamado por este autor de samba de bumbo, ou simplesmente samba paulista (MANZATTI, 2005, p. 50). Em cada região essas manifestações adquirem peculiaridades, resultando em nomes distintos, sem perder, no entanto, características comuns a todas elas, frutos de uma raiz africana. Devido a essa matriz comum do samba carioca, amaxixado e pós-Estácio, e do samba paulista é possível identificar as similaridades e diferenças entre os estilos, bem como de que maneira foram influenciados pela marcha.

Seu Nenê de Vila Matilde, importante líder carnavalesco da escola de samba homônima, explica como aprendeu com Paulo da Portela[*4], durante um show realizado na capital paulista no fim da década de 1930, as diferenças e similaridades entre o samba e a marcha:

Paulo Benjamin, ele que falou pra gente que o ritmo é um só, a marcação do surdo na marcha é um só, e daí ele marcou no teatro — o samba é assim: um dois, um dois; eu vou chamar um surdo. Primeiro a marcha, vamos ver — aí mandou marcar, tum dum, tum dum [toca ritmo de marcha ao pandeiro], e falou: — tá vendo, isso é a marcha, agora na mesma marcação que vem é o samba, tum dum, tum dum [toca ritmo de samba ao pandeiro]. Aí tá vendo [...] (Alberto Alves da Silva apud SEU NENÊ, 2000).

Carlos Sandroni fez minuciosa análise musical da transformação musical ocorrida no samba carioca entre 1917 e 1933, quando supostamente o elemento rítmico da marcha foi incorporado à manifestação musical negra, afastando-se de elementos “amaxixados”. No livro Feitiço Decente (2001), o autor demonstra que a maior transformação ocorreu nas linhas rítmicas que caracterizavam a batida do violão, do tamborim e do cavaco, ritmo também identificado por Seu Nenê em seu depoimento. Aí percebemos que à marcação grave da marcha juntavam-se divisões sincopadas executadas no tamborim e em outros instrumentos, passando a própria marcação para o surdo, instrumento criado nesse processo de transformação do samba e de surgimento das escolas no Rio de Janeiro.

De acordo com José Geraldo Vinci de Moraes (1997, p. 118), a instável base de sustentação sócio-cultural da população negra em São Paulo a partir da segunda metade do século XX e o confronto com as outras experiências culturais dificultavam a permanência de suas manifestações regionais. Essa situação se torna mais crítica na medida em que se consolidava o modelo carioca de samba e de carnaval, amparado e mantido pela indústria fonográfica e pelo rádio, que naquele momento reproduziam o projeto da identidade cultural nacional, que se compatibilizava com o modelo do samba carioca. Assim, as manifestações regionais paulistas foram se enfraquecendo na medida em que as culturas do samba e do carnaval da capital fluminense ganhavam força, fato agravado pela rápida urbanização paulistana, que diluía essas manifestações regionais mais ligadas ao universo interiorano e rural. Embora houvesse similaridades culturais entre as manifestações negras paulistas e as cariocas, que possuíam a mesma matriz africana facilitando sua aproximação e identificação, os elementos regionais característicos de São Paulo acabaram se perdendo e foram gradativamente substituídos por elementos típicos do Rio de Janeiro.

A matriz africana supra citada refere-se principalmente às características rítmico-musicais e coreográficas do samba negro, ainda indefinido como gênero popular, diluído em manifestações diversas, cada qual com suas peculiaridades, desenvolvidas em diferentes regiões. O samba sofreria influências distintas no Rio e em São Paulo, refletindo na formação e na transformação das agremiações carnavalescas de cada cidade. O samba era a matriz negra comum às duas capitais – samba numa concepção ancestral, designando música e dança de origem negra, batuque, feito em roda com instrumentos de percussão ou apenas com a palma de mão, com a coreografia da umbigada, existente desde os tempos da escravidão. Essa musicalidade e corporeidade ancestral do samba possibilitaram a aproximação das manifestações carnavalescas negras de São Paulo e do Rio de Janeiro.

O encontrão, dado geralmente com o umbigo (semba em dialeto angolano), mas também com a perna, serviria para caracterizar esse rito de dança e batuque, e mais tarde dar-lhe o nome genérico: samba. Nos quilombos, nos engenhos, nas plantações, nas cidades, havia samba onde estava o negro, como uma inequívoca demonstração de resistência ao imperativo social (escravagista) de redução do corpo negro a uma máquina produtiva e como uma afirmação de continuidade do universo cultural africano [...] A crioulização ou mestiçamento dos costumes tornou menos ostensivos os batuques, obrigando os negros a novas táticas de preservação e de continuidade de suas manifestações culturais. Os batuques modificavam-se, ora para se incorporarem às festas populares de origem branca, ora para se adaptarem à vida urbana. As músicas e danças africanas transformavam-se, perdendo alguns elementos e adquirindo outros, em função do ambiente social. Deste modo, desde a segunda metade do século XIX, começaram a aparecer no Rio de Janeiro, sede da Corte Imperial, os traços e uma música urbana brasileira – a modinha, o maxixe, o lundu, o samba. Apesar de suas características mestiças (misto de influências africanas e européias), essa música fermentava-se realmente no seio da população negra, especialmente depois da Abolição, quando os negros passaram a buscar novos modos de comunicação adaptáveis a um quadro urbano hostil. (SODRÉ, 1979, p. 12).

Nesse texto de Muniz Sodré, extraído do livro Samba o dono do corpo, podemos observar uma sintética descrição do processo de transformação pelo qual passou o samba, desde suas origens escravas até sua transfiguração para subsistir em novas situações sociais e históricas. Se no Rio de Janeiro as influências urbanas deram novas feições ao samba, em São Paulo o contexto de transformação dos batuques negros foi outro e o samba paulista manteria características diversas das da vertente carioca até meados do século XX com o samba de bumbo. Essas diferenças “evolutivas” do samba refletem-se na criação das escolas de samba no Rio de Janeiro e em São Paulo de maneiras distintas, culminando na sobreposição das características cariocas a partir da imposição do regulamento carnavalesco do Rio no contexto paulistano em 1968. Até então, as agremiações paulistanas carnavalescas mantinham características inerentes ao universo do samba rural (ou de bumbo), cultivado nas antigas festas religiosas no interior e na capital do estado paulista.

No fim de 1967, alguns líderes carnavalescos paulistanos, com apoio do radialista Moraes Sarmento, conseguiram que o então prefeito paulistano Faria Lima oficializasse o carnaval de São Paulo. O desfile realizado no Vale do Anhangabaú passou a ter arquibancadas e iluminação adequadas à festa e o concurso entre os grupos deixaria a partir de então de ser organizado por jornais e estabelecimentos comerciais, passando a ser também responsabilidade do poder público. O Prefeito Faria Lima, carioca e simpatizante dos folguedos populares, encomendou a um carnavalesco carioca um regulamento para o concurso entre agremiações paulistanas que, consequentemente seguiu o modelo do carnaval da capital fluminense, que era dominado pelas escolas de samba (SIMSON, 2007, p. 216). O radialista Evaristo de Macedo, incentivador do carnaval paulistano, foi pessoalmente à sede da Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro e obteve, com o presidente dessa entidade, o regulamento carnavalesco, que seria adaptado ao carnaval paulistano[*5]. Entretanto, tal regulamentação não considerou as características paulistas dos grupos carnavalescos, que tinham origem diversa daquela das escolas de samba cariocas. O novo concurso estabeleceria no carnaval de São Paulo os padrões das escolas de samba do Rio de Janeiro, criando a urgente necessidade de adequações estruturais, estéticas, musicais e coreográficas das agremiações paulistanas ao novo modelo. A inauguração dessa nova fase marcou o fim de diversos elementos tradicionais das agremiações carnavalescas paulistanas. Em 1972, como resultado, os principais cordões, Vai-Vai, Camisa Verde-e-Branco e Fio de Ouro, acabaram se tornando escolas de samba. Assim, a figura do Baliza seria extinta, o estandarte se transformaria em bandeira, os instrumentos de sopro deixariam de figurar nas baterias, a temática livre não seria mais permitida, dando lugar ao desenvolvimento de um enredo, e a ala de baianas tornar-se-ia obrigatória. Os grupos carnavalescos de São Paulo davam início a um processo de padronização, que se mantém até os dias de hoje tendo como modelo aspectos das escolas de samba do Rio de Janeiro.

Se a oficialização do carnaval acabou por suprimir características inerentes ao carnaval paulistano, algumas agremiações se beneficiaram do fato, como a escola de samba Nenê de Vila Matilde. Essa agremiação foi criada em 1949 por um grupo de amigos da zona leste de São Paulo, liderados por Alberto Alves da Silva, posteriormente chamado de Seu Nenê da Vila Matilde. A Nenê foi pioneira na implementação de elementos cariocas em seus desfiles, já que o líder maior da agremiação tinha familiares na capital fluminense e pode ter contato com as principais escolas de lá. Seu Nenê admirava muito as agremiações cariocas e sempre buscou inspiração nelas. Assim, quando o regulamento do carnaval oficializado paulistano forçou as agremiações a adaptarem-se à nova realidade dos concursos carnavalescos, a escola de samba Nenê de Vila Matilde saiu na frente, pois já possuía diversos elementos cariocas, como ala de baianas, mestre-sala e porta-bandeira e um ritmo mais próximo do samba típico do Rio de Janeiro. Assim, a Nenê de Vila Matilde se tornou uma das principais escolas de samba paulistanas, mantendo sua força até os dias de hoje[*6].

O samba é um dos principais gêneros da música brasileira. Ao longo da história, ele se mostrou extremamente dinâmico, assim como o carnaval, relacionando-se diretamente com as transformações dessa festa. O samba sempre se adaptou a novos cenários sociais e políticos, incorporando novos instrumentos e novas linguagens, desdobrando-se em samba-canção, samba de gafieira, samba de breque, samba de terreiro, samba-enredo, samba reggae, samba rock, bossa-nova, entre muitos outros[*7], tendo como base a marcação grave no segundo tempo do compasso 2 por 4, o balanço da condução de semicolcheias e a rítmica sincopada[*8]. O samba urbano do Rio de Janeiro acabou se tornando o estilo mais representativo do gênero, dificultando a manutenção das peculiaridades regionais dos diferentes estilos de samba, como o samba rural paulista[*9]. A influência do carnaval sobre esse gênero mostrou-se determinante ao longo de sua história, refletindo todo o dinamismo que permeia essa festa e esse gênero, símbolos da cultura brasileira.

Referências bibliográficas

CABRAL, Sérgio. As escolas de samba do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Lumiar, 1996.
LOPES, Nei. Sambeabá – o samba que não se aprende na escola. Rio de Janeiro: Casa da Palavra; Folha Seca, 2003.
MANZATTI, Marcelo Simon. O samba paulista, do centro cafeeiro à periferia do centro: estudo do samba de bumbo ou samba rural paulista. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)– Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, 2005.
MAXIMO, João; DIDIER, Carlos. Noel Rosa – uma biografia. Brasília: Unb, 1990.
MESTRINEL, Francisco de Assis Santana. A Batucada da Nenê e Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de samba paulistana. Dissertação (Mestrado em Música Popular)– UNICAMP – Instituto de Artes, Campinas, 2009.
MORAES, Wilson Rodrigues de. As Escolas de Samba de São Paulo. São Paulo: Conselho Estadual de Artes e Ciências Humanas, 1978.
SANDRONI, Carlos. Feitiço Descente: Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-1933). Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2001.
SIMSON, Olga Rodrigues de Moraes Von. Carnaval em branco e negro, carnaval popular paulistano: 1914-1988. Campinas: Editora da Unicamp; São Paulo: Edusp; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2007.
______. A burguesia se diverte no reinado de momo: 60 anos de evolução do carnaval na cidade de São Paulo (1855-1915). Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais)– USP-FFLCH, 1984.
SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Codecri, 1979.
VINCI DE MORAES, José Geraldo. Sonoridades Paulistanas: final do século XIX ao início do século XX. Rio de Janeiro: Funarte, 1997.

Documentários

SEU NENÊ. Direcção: Carlos Cortez. Produção: Rui Pires. [S.l.]: [s.n.], 2001.
SAMBA à paulista - fragmentos de uma história esquecida. Direção: Gustavo Mello. São Paulo: [s. n.], 2007.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Topo
Chico Santana é mestre em música pela Unicamp, onde atuou como professor de percussão e rítmica entre 2005 e 2007. Foi bolsista Fapesp e publicou em 2009 a dissertação “A batucada da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de samba paulistana”, orientada por José Roberto Zan. Produziu com sua pesquisa um vídeo-documentário homônimo.
Foi criador do Conservatório de Música Popular de Itajaí (SC), onde atuou com professor de percussão complementar de 2007 a 2009. Exerce a função de assistente de percussão no Projeto Guri, atua e dirige diversos grupos artísticos em São Paulo e Campinas, com destaque para o grupo Tambaleio e a Bateria Alcalina.
Já se apresentou em importantes festivais, como o XX Havana Jazz Plaza (Cuba, 2002) e IPEW: International Percussion Ensemble Week (Croácia, 2004), e ministrou cursos no 10º e 11º Festivais de Música Popular de Itajaí.
Este artigo foi criado a partir da dissertação A batucada da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de samba paulistana, apresentada no programa de pós-graduação em música da Universidade Estadual de Campinas em 2009, sob orientação de José Roberto Zan, com financiamento da Fapesp.
Desfile de carros enfeitados.
Manzatti discute em seu trabalho Samba Paulista: do centro cafeeiro a periferia do centro (2005) a terminologia adotada por Mário de Andrade e aponta sua origem e adequação à denominação dos sambas paulistas analisados por Mário.
Líder carnavalesco da tradicional escola de samba carioca Portela.
Segundo depoimento do mesmo no documentário Samba à Paulista, fragmentos de uma história esquecida.
Embora no carnaval de 2009 a agremiação tenha sido rebaixada com a penúltima colocação no concurso entre as escolas.
O livro Sambeabá, de Nei Lopes, apresenta um panorama de diversos estilos de samba.
No entanto, cada estilo de samba apresenta peculiaridades.
Ver A Batucada da Nenê de Vila Matilde: formação e transformação de uma bateria de escola de samba paulistana.