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Artigo publicado na edição nº 42 de junho de 2010.
No agreste das mulheres
a alforria no quotidiano da escravidão feminina (Feira de Santana, 1850-1888)

Flaviane Ribeiro NASCIMENTO

'Terra de Lucas', essa é uma expressão comumente atribuída à Feira de Santana, normalmente carregada de uma conotação pejorativa, cujo simbolismo está correlacionado à rebeldia escrava personificada em Lucas Evangelista, o 'Lucas da Feira', que viveu e atormentou aquela região da Província da Bahia na primeira metade do século XIX. A escravidão em Feira de Santana é resumida à rebeldia de Lucas [*1]. Nessa narrativa, a experiência feminina do cativeiro é subjacente ao protagonismo do macho.

Na historiografia da escravidão, a experiência das mulheres é reduzida a papéis coadjuvantes no quotidiano, principalmente com relação ao estudo da resistência escrava e a busca de melhores condições, menospreza-se a dimensão política dos projetos individuais de negação à escravidão que contribuíram conjuntamente para solapar o sistema escravista, os quais refletiam, de alguma forma, os interesses de um grupo social que sofria os males da escravidão.

Nessa narrativa, o objetivo é tomar as alforrias para contar a história dessas mulheres na região de Feira de Santana, localizada numa encruzilhada de caminhos e sede de uma vigorosa feira que alimentava as demandas do interior da Província e da capital no século XIX. É um convite a se embrenhar pelas caatingas do agreste baiano escravista [*2]. Ao agreste das mulheres!

1. "pelos bons serviços que me tem prestado"

A busca pela liberdade permeou a experiência de mulheres e homens escravizadas/os quotidianamente. Essa, talvez, tenha sido a contradição maior do sistema escravista: o processo de reificação diário de seres humanos e, ao mesmo tempo, a contestação a esse processo. Se, no mundo impessoal dos negócios da escravidão, aquelas pessoas eram submetidas a transações comerciais, nas quais eram reduzidas a meros instrumentos de trabalho, as cartas de alforria demonstram que as relações entre senhor/a e escravizados/as estavam mergulhadas num emaranhando de ações complexas e delicadas, nas quais muitas vezes conscientes de seu poder de barganha, vinculadas a experiências e tradições históricas particulares e originais.

As alforrias, através de seu caráter ambivalente, evidenciam que, ao lado de uma ideologia de concessão senhorial, também foram conquistadas a partir de estratégias tecidas quotidianamente do lado escravo. Restrita ao âmbito doméstico, cabia apenas ao/à proprietário/a legislar sobre a alforria - pelo menos até 1871 quando se garantiu a cativos/as recorrer na justiça o direito à liberdade. Nesse aspecto, o/a senhor/a podia considerar o/a escravizado/a apenas como "coisa", mas eram homens e mulheres com ideias próprias, que lutaram e conseguiram pequenas ou grandes vitórias. Interessa aqui, portanto, compreender a partir das cartas de alforria como as mulheres construíram na micropolítica quotidiana estratégias para a conquista da liberdade na região de Feira de Santana, na segunda metade do século XIX.

Conforme a documentação ora analisada, as alforrias femininas superam as masculinas ao longo dos anos de 1850 a 1888. Reconhecer o significado da maioria das alforrias na região de Feira de Santana, onerosas e "gratuitas", terem sido conquistadas por mulheres e, dentre os homens, um número relativamente alto de filhos daquelas mulheres evidencia que a participação feminina pela liberdade fora efetiva. Esse fato não se contrapõe aos estudos historiográficos que têm se debruçado sobre essas fontes[*3] . É também recorrente nesses estudos que a alforria foi muito mais comum nos espaços urbanos, onde os/as cativos/as, especialmente os/as do ganho, conseguiram negociar graus maiores de autonomia se comparado ao trabalho doméstico ou da lavoura.

No entanto, na mecânica real do processo de alforriar, permeou uma interação de fatores individuais, familiares, psicológicos, demográficos, geográficos, econômicos e cronológicos, não sendo, pois, um fator isolado a determinar a frequência maior ou menor de manumissão [*4]. Esta investigação busca pensar a frequência das cartas de liberdade, situando o problema num contexto mais amplo ao buscar observar graus relativos de oportunidade e incentivo às alforrias de mulheres na região de Feira de Santana, inserindo-as na micropolítica tecida no dia a dia a partir da relação senhor/a-escravizado/a.

A documentação sugere que as mulheres constituíram, demograficamente, a maioria entre os cativos daquela região e que elas também foram eleitas para o trabalho na pequena agricultura, própria daquelas regiões da Província no XIX. Aspecto muito diferente do abordado pela historiografia, que confirma a maioria de mulheres alforriadas proporcionalmente aos cativos homens, mas em cujos estudos aborda uma desproporção entre os sexos: maioria masculina, preferida, e uma minoria feminina, necessária [*5]. Creio, portanto, que outras questões devem ser consideradas para o êxito feminino na conquista da liberdade. Muitas delas conseguiram construir espaços "amistosos" no senhorio a partir da condição de escrava que então vivenciavam. Ressalta-se que cerca de 13% das cartas de alforria foram justificadas, explicitamente, enquanto conquistas dos/as cativos/as pelos bons serviços que tinham prestado aos/às seus/suas respectivos/as senhores/as.

Registrada em 1880, em Feira de Santana, a carta de liberdade conferida à cabra Victoria, de 24 anos, por seu senhor Macário de Oliveira Melo, com a condição de acompanhá-lo até a sua morte, foi justificada da seguinte maneira: "[...] pelos bons serviços prestados, em remuneração aos bons serviços [...]" [*6]. Com uma justificativa não menos ousada, Anna Maria de Jesus alforriou em 1872, em Feira de Santana, Maria e Francisco "[...] pelo amor de Deus em gratificação dos bons serviços por eles prestado [...]" [*7]. Nesses escritos, os proprietários argumentaram que, em decorrência dos "bons serviços", Victoria, Maria e Francisco foram remunerados ou gratificados com a liberdade.

Na alforria de Maria Caetana, com idade de 50 anos, conferida em 1863, Joaquim Ferreira da Silva afirmou que libertava a sua "Escrava Maria Caetana cabra com idade de cinquenta anos pelo amor de Deus e pelos bons serviços que me tem prestado, e poderá depois de meu falecimento gozar de sua liberdade como se de ventre livre nascesse [...]"[*8] . Maria Caetana, certamente, havia servido Joaquim Ferreira da Silva por anos e de forma a agradá-lo, o que justificava a "concessão" de sua liberdade, que só viria a gozar após a morte do senhor. A importância atribuída às ações diárias dos/as cativos/as na aquisição da liberdade é uma marca importante nas alforrias, mesmo naquelas em que os/as escravizados/as trabalharam para pagar com dinheiro a sua liberdade.

Após reunir a quantia de quinhentos mil réis e pagar por sua liberdade - que havia sido avaliada em oitocentos mil réis por Antonia Joaquina de S'Anna - em março de 1865, Luiza crioula também tornou-se forra condicionalmente, "[...] pelos bons serviços que me tem prestado, lhe perdo-o [sic] o excedente, com a condição por fim de me acompanhar enquanto eu viva for [...]"[*9] . Com essa carta, Antonia Joaquina, além de manter Luiza presa legalmente a ela, salvaguardou sua eterna gratidão à benevolente senhora que lhe havia perdoado a quantia de trezentos mil réis.

O fato de as alforrias terem se restringido ao campo costumeiro até a década de 1870 obrigava que os/as escravizados/as tivessem bom relacionamento com seus proprietários para que pudessem, por sua parte, criar as condições para a alforria. Mostrar-se merecedor/a da liberdade foi uma estratégia largamente utilizada pelos/as escravizados/as. Negociar melhores condições de sobrevivência e, quiçá, a liberdade sob as circunstâncias do cativeiro exigiu dos/as cativos/as obediência, fidelidade, humildade, dependência e muitos bons serviços.

Também usou dessa estratégia Maria Sibéria, mulata, que conseguiu, em 1860, no lugar chamado Rio Fundo, a sua alforria, ainda que condicional. Manoel José Dias tornou-a forra "Sob condição de prestar me [sic] serviços [a]té a minha morte, concedo liberdade a minha escrava Maria Sibéria, mulata, em atenção á seus bons serviços e fidelidade." [*10] Já a crioula Maria Gertrudes conquistou sua alforria "gratuitamente", porém condicional, em maio de 1865, "[...] por ter me prestado eminentes serviços além dos de seus deveres."[*11]

Nas alforrias, enfatizava-se a generosidade ou a afeição e, em contrapartida, a fidelidade e os bons serviços da parte do/a cativo/a, o que o/a tornaria elegível para a libertação[*12] . A conquista das alforrias como resultado de um processo repleto de investimentos individuais e, por vezes, coletivos, demonstra que os laços entre as /os escravizadas/os e senhores/as foi uma condição importante, porque recorrente, para a concessão da alforria.

Justificar as alforrias como uma "recompensa" aos "bons serviços", ou por ser os/as proprietários bons cristãos, que cultivavam os valores da caridade e do amor enquanto ensinamentos do 'Pai Eterno', tornariam os/as senhores/as bem vistos aos olhos escravos [*13]. "Pelo amor de Deus e pelos bons serviços" foram libertadas Maria Caetana e várias outras cativas. Luis Gonzaga da Silva e sua mulher libertaram a Cabrinha Francisca, "[...] pelo amor de Deus e por Amor que a temos [...]"[*14] , uma demonstração pública de amor a Deus e ao próximo. Em outros momentos, ficou explícita, além do altruísmo e do desapego aos bens, a necessidade de garantir a salvação ao admitir o pavoroso pecado: não amar ao próximo como a si mesmo. Admitir-se-ia, portanto, a humanidade do escravizado. Adriano de São Marcos Lima justificou a libertação de Maria Cabra como por "[...] desencargo da minha consciência [...]" [*15], um argumento que revela a necessidade moral do escravista.

As alforrias funcionaram como instrumento de controle e disciplina, posto que "prestar bons serviços" durante o período do cativeiro poderia resultar na liberdade, bem como ratificar a benevolência senhorial, ao qual se deveria eternamente a libertação. Nesse aspecto, as alforrias condicionais funcionavam muito mais eficazmente, já que o/a escravizado/a ficava sujeito/a a revogação da carta [*16], um direito salvaguardado na lei até 1871, quando, com a chamada "lei do ventre-livre" se garantiu ao/à cativo/a a liberdade uma vez consentida.

Na carta de 1869, registrada em 1885, do pardinho Salvador, filho de Benedicta, com idade de um ano, conferida condicionalmente, o proprietário não se omitiu de explicitar suas condições: "[...] cujo beneficio confiro-lhe gratuitamente sob a condição de esta reservando-me o direito de revogalo [sic] no caso de desobediência ou ingratidão [...]"[*17] , a possibilidade da revogação seria um forte reforço à ideologia paternalista e a dependência e a subordinação não se esgotariam com a "liberdade". Nesse caso, a possibilidade de revogação da liberdade de Salvador serviu para manter Benedicta obediente ao cativeiro.

É importante ressaltar que, na quase totalidade das cartas de liberdade condicionais, o pré-requisito para a efetivação da liberdade fora a prestação de serviços até a morte dos/das respectivos/as senhores/as. Tal condição estendia-se, inclusive, aos cuidados com a alma do defunto/senhor. Manoel da Paixão alforriou Vicente, crioulo, em 1856, com a condição de acompanhá-lo por toda a vida e, após sua morte, ficava ainda "[...] obrigado ao meu enterro, e meia Capela de Missa [...]", quando ficaria de fato e de direito livre da escravidão.

Essas condições, em sua maioria, foram impostas aos/às alforriados/as "gratuitamente": aproximadamente 21% das mulheres e 24,8% dos homens escravizadas/os conquistaram a liberdade sob condições que deveriam ser atendidas para que a alforria se efetivasse. Já entre as alforrias onerosas identifiquei apenas cerca de 1,5% para as cativas e 5,5% entre os cativos, o que demonstra que a maior eficácia das condições estava nas alforrias "gratuitas".

Ressaltam-se, nesse aspecto, os números relativamente altos das alforrias "gratuitas", tanto para homens quanto para mulheres: 54,8% entre as mulheres e 53,7% para os homens [*18]. Acrescenta-se a esse fato que, no contexto de cessão do tráfico atlântico e de transferência de mão de obra escrava para o sudeste cafeeiro, os/as cativos/as tornaram-se bens de valor inestimável e alforriá-los não significava, necessariamente, abrir mão desses bens, mas garantir a dependência e a subordinação desses/as escravizado/as, mesmo porque é recorrente na documentação ora analisada o seguinte padrão: as "gratuitas" exigiram condição para efetivação à posteriore.

A negociação quotidiana em prol da liberdade contribuiu ainda para a preservação da família escrava. Em família, os/as escravizados/as construíram espaços de autonomia e redes de solidariedades com a expectativa de tornarem-se livres, de libertar filhas e filhos, amores... muitos que sonhavam juntos com o dia da liberdade. Na alforria de Gracina, de 1879, lê-se que a alforria foi consentida "[...] pelo preço de seiscentos mil réis sendo quatrocentos mil réis paga a liberdade e duzentos fica a mesma libertada obrigada a pagar com o seu marido Huberto no mesmo ano."[*19] Ressalto aqui a evidência de que Gracina contaria com o marido na acumulação do pecúlio que garantiria o pagamento da sua liberdade. Além desse caso, ao longo desse texto conto a história de mães que libertaram seus filhos.

A partir das cartas de alforrias é possível observar que muitas cativas lutaram e conseguiram proteger a instituição familiar da instabilidade imposta pelo cativeiro. Trata-se de um aspecto nas cartas de alforria que, infelizmente, as poucas linhas que me restam não me permitem discutir.

2. "e mesmo já seja velha forro pelo valor de cem mil réis..."

A escravizada Ritta tornou-se liberta condicionalmente por sua senhora, Joanna Maria dos Reis, pela quantia de cem mil réis, na Capela de Bom Despacho. Com 60 anos de idade quando fora libertada em 1862, sem dúvida, Ritta trabalhou muito para auferir a alforria, a qual só alcançara já idosa. No entanto, a questão principal a ser discutida foi como Ritta e tantas outras escravizadas da região de Feira de Santana conseguiram amealhar o dinheiro necessário para resgatar a sua liberdade.

Alcançar a liberdade no agreste baiano não fora uma tarefa que prescindiu de dinheiro, ao contrário disso, aproximadamente 44,1% das mulheres, entre os homens 53,75%, pagaram por sua liberdade. Se compararmos, no entanto, o desempenho feminino com o masculino, a diferença alcança quase 50%, em números absolutos, 128 para as mulheres e 66 entre os homens. Criar meios para pagar pela carta de alforria era, pois, uma condição recorrente para a liberdade, sobretudo entre as mulheres. O caso de Rita é exemplar para pensarmos a necessidade de pagamento, a qual "mesmo já seja velha" foi obrigada a pagar por sua liberdade.

Acredita-se que discutir a possibilidade de escravizados/as acumularem pecúlio sendo estes/as propriedades de outrem estivesse intrinsecamente ligado à Lei Rio Branco, de setembro de 1871, mais conhecida como "Lei do Ventre Livre". Contudo, a despeito da autorização legal, a acumulação de pecúlio entre os/as escravizados/as aconteceu largamente antes de 1871, regulado muito mais pelo costume e pelos acordos no dia a dia que, necessariamente, por um mecanismo legal.

Em maio de 1860, Anna Cabra pagou a quantia de seiscentos e cinquenta mil réis ao senhor Luiz Jozé Pereira Borges. Em 1864, a crioula de nome Eugenia, com 29 anos de idade, pagou a Simão Ferreira da Silva a quantia de novecentos mil réis, ambas em Feira de Santana. No Limoeiro, em 1865, Antonia Parda conquistou a sua liberdade ao pagar por ela a quantia de quinhentos e cinquenta mil réis a Joanna da Incarnação [sic] Souza, sua proprietária. Todas essas mulheres, entre muitas outras, auferiram quantias, relativamente altas, para pagar por sua liberdade mesmo antes de 1871. É certo que a lei de 1971 foi mais que a libertação dos/as filhos/as das cativas e ampliou muito, ao menos teoricamente, os meios para a liberdade. No entanto, a libertação do ventre e o direito a liberdade mediante indenização era, desde antes, uma prática costumeira intensa (EISENBERG, 1989, p. 33).

Francisca, de nação cabra, pagou quinhentos mil réis por sua librdade na fazenda São Tiago, em julho de 1865, dos quais foram abatidos trinta mil réis "[...] que lhe damos por Esmola de nossa parte e a mais quantia para a dita Escrava ir nos dando durante a nossa vida, e ficando devendo, ficará o resto para os nossos herdeiros e por nossa morte gozará de sua liberdade como se nascesse de ventre livre."[*20]

Outro caso foi o de Anastácia crioula [*21], escrava de Izac Sabac, comerciante da vila da Feira, o qual sugere que a escravizada também pudesse morar e/ou trabalhar na praça comercial de Feira de Santana ou nos seus arredores. Anastácia pagou por sua alforria a quantia de quatrocentos mil réis ao seu proprietário, que recebeu a citada quantia em "diversas vezes", condição imposta para o gozo da liberdade, a qual se efetivou em 1866, quando o comerciante Sabac tornou-a forra.

O pagamento em "diversas vezes", ou mesmo o "ir nos dando", demonstra que as mulheres escravizadas podiam vislumbrar a libertação se conseguissem, de algum modo, auferir com regularidade pequenas quantias em dinheiro e, naquele contexto, o ganho seria uma atividade que lhes permitiria lograr sucesso. O jornal Correio da Feira, de 8 de janeiro de 1882, relata, por exemplo, a presença das fateiras [*22] - comuns em feiras livres -, sujeitas à perseguição da Câmara Municipal por fazer seu comércio nas praças públicas, uma atividade que no Brasil imperial era das "gentes de cor".

O perímetro urbano de Feira de Santana não estava muito distante das roças, dos sítios e das fazendas, tanto geograficamente quanto no que diz respeito às relações rural-urbano. E, além disso, a feira possibilitava que essas distâncias ficassem ainda menores, visto o fluxo corriqueiro para a cidade. Nesse sentido, Francisca e Anastácia, para desenvolverem atividades "de ganho", poderiam ser da cidade ou não. Desse modo, poderiam viver e trabalhar na roça e, ainda assim, vender e acumular pecúlio na cidade, inclusive, do que havia produzido autonomamente na roça.[*23]

Se a maioria das mulheres estava empregada no serviço da lavoura, como indica a documentação, sem dúvida muitas dessas mulheres também conseguiram a sua libertação, não apenas pelos bons serviços prestados, mas também através da compra viabilizada pela acumulação de pecúlio da venda de gêneros na feira. Na carta de alforria, conferida pelo capitão Afonso Pedreira de Cerqueira, em 1881, à cativa Justina, afirmou o dito capitão que recebeu "[...] de Guilhermina, africana, quinhentos mil réis q[ue] me deu para liberdade de sua filha Justina crioula de quarenta anos mais ou menos do serviço da lavoura." [*24]

Salvo Guilhermina, não encontrei outras cativas cujo ofício fora registrado nas cartas de alforria. Ao analisar esse aspecto para Salvador, Kátia Mattoso (2004, p. 94) faz uma constatação semelhante e pondera que o baixo número desses registros pode ter sido devido a uma omissão proposital. "Obrigados [os senhores] a pagar uma taxa especial sobre os escravos que exerciam profissão ou ofício, continuavam ocultando a eventual qualificação que o escravo possuía no ato da outorga da liberdade." Sendo assim, a qualificação só seria registrada se a alforria fosse consentida a preço elevado.

Além disso, quanto mais 'íntimas' e 'amistosas' a relação senhor/a- escravizado/a, mais módico poderia ser o preço estipulado pelo/a proprietário/a, bem como o seu contrário. Assim sendo, a historiografia tem considerado que, frequentemente, as alforrias tenderam a favorecer os/as escravizados/as brasileiros/as, então denominados/as crioulos/as [*25]. Trata-se de um aspecto relevante das alforrias de que por hora não é possível uma análise mais detida, mas que, sem dúvida, é muito importante para pensar o processo de libertação no agreste baiano pós-1850.

3. Considerações finais

Em uma sociedade de base patriarcal em que a coexistência do direito costumeiro e da lei, sendo preponderante o primeiro, serviu à manutenção de uma classe dominante, em meio a conflitos violentos, foi necessária a negociação cotidiana por parte do/a escravizado/a na busca de melhores condições de sobrevivência. Através do paternalismo os/as senhores/as tentaram ultrapassar a contradição da coisificação do/a escravizado/a, desarticular ações coletivas e dar estabilidade ao sistema, posto que buscavam garantir a sua aceitação por todos os membros, mas os/as escravizados/as usaram o paternalismo como arma na luta contra a escravidão.

Longe de legitimar o patriarcalismo a partir do paternalismo senhorial, conceber o paternalismo como aspecto importante que mediou a relação entre senhor/a e escravizado/a, apenas admite que, em muitos casos, as relações amistosas dissimulavam relações de poder assimétricas, permeadas pelo desejo por melhores condições de vida para si e para os seus. Assim, no agreste das mulheres foram tecidos, na micropolítica quotidiana, espaços de autonomia e negação ao domínio e exploração senhorial onde as cativas forjaram estratégias possíveis que, em muitos momentos, resultaram nas suas respectivas liberdades, de filhas e filhos e de seus amores.

Referências bibliográficas

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Graduada em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana - BA (2009), atualmente mestranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, pesquisadora vinculada à linha de pesquisa "Escravidão e Invenção da Liberdade" e bolsista CAPES. E-mail para contato: flaviane_ba@yahoo.com.br.
Lucas Evangelhista, o "Lucas da Feira", foi um escravo fugido que se juntou com outros negros, criando um grupo de "bandoleiros" que atormentou a região de Feira de Santana até 1849, quando fora capturado e condenado à morte. Ver: Lima (1990).
O Agreste é uma região de transição geomorfológica entre o Recôncavo Baiano e o Sertão.
Ver: Mattoso (1972), Shwartz (1976), Belini (1988), Eisenberg (1989), Paiva (2000), Bertin (2004), Almeida (2005), entre outros.
Cf.: Russel-wood (2005, p. 59).
A hipótese que levanto acerca da demografia escrava na região de Feira de Santana é um aspecto que ainda tenho buscado mais fontes que a consubstancie, mas, de acordo com os números que tenho trabalhado, essa é uma questão que tem aparecido com frequência sob os seguintes aspectos: maioria de mulheres, mesmo que pequena, nas alforrias, nas escrituras de compra e venda, nas escrituras de doações, nas escrituras de penhor e hipoteca, e certo equilíbrio nas procurações (passadas a terceiros pelos/as senhores/as para venda). Ver: Nascimento (2009, p. 54, 58, 69, 70 e 78).
Livro 17 (ou 10). Grifo da autora. Todos as referências a “livros” e “pacotes” que faço são referentes a documentos que estão atualmente no CEDOC/UEFS (Centro de Documentação e Pesquisa da Universidade Estadual de Feira de Santana). Esses documentos ainda não estão arrumados em caixas e estantes, mas, quando da realização das pesquisas para este trabalho, os citados livros ainda estavam no Primeiro Tabelionato de Notas, no Fórum Desembargador Filinto Bastos, Feira de Santana-BA, e a identificação que uso é justamente como estão identificados, por exemplo, “Pacote ? 1885-1886” é um pacote com folhas avulças de livros.
Livro de Notas 8A. Grifo da autora.
Livro nº 9A ou 10 – 1862. Grifo da autora.
Livro nº 9A ou 10 – 1862.
Livro de Notas 8A. Grifo da autora.
Livro nº 9A ou 10 – 1862. Grifo da autora.
Cf.: Reis; Silva (1989, p. 136-137).
Ver: Paiva (2000, p. 65-91).
Livro nº 9 ou 10 – 1862.
Livro 5 A.
Cf.: Malheiro (1976, p. 132).
Pacote – 1885-1886. Grifos da autora.
Nesses números considero tanto as “gratuitas” quanto as “gratuitas”/condicionais. Vale ressaltar que os números não são exatos, mas aproximados.
Livro 17 (ou 10).
Livro de Notas nº10 ou 9A (1862). Grifo da autora.
Livro de Notas nº10 ou 9A (1862).
Ano 1, Nº 25, p. 3.
Ver: Barickman (2003, p. 104-127), Neves (1998, p. 60) e Reis; Silva (1989, p. 22-32).
Livro de Notas 1888 - Fragmento X – Darlan Cruz, 21-7-2000.
Já citei anteriormente alguns desses estudos.