:: Página principal
:: Editorial
:: Sobre a revista Histórica
:: Publique seu texto
:: Colaboradores
:: Expediente
:: Imagens de uma época
:: Edições anteriores
:: Cadastre-se
:: Fale conosco
Artigo publicado na edição nº 45 de dezembro de 2010.
BERTHA YOUNG: um retrato da mulher do início do século XX[*1]

Jéssica Ferraz Juliano[*2]

Introdução

Um conto é significativo quando quebra seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta.[*3].

Escrito por Katherine Mansfield em 1918 e publicado pela primeira vez em 1921, “Bliss” é um de seus contos mais famosos e estudados, tanto por conta de seu enredo quanto pelo estilo da escritora – semelhante ao de Virginia Woolf, que publicou a primeira obra de Mansfield pela sua editora, Hogarth Press –, consagrado pelo uso do monólogo interior.

Nossa intenção aqui é investigar essa “explosão de energia espiritual”, mencionada por Julio Cortázar em "Alguns aspectos do conto", do livro Valise de Cronópio, que em “Bliss” se verifica por meio do sentimento de êxtase vivido num dia da vida da protagonista Bertha Young, e, junto a essa investigação, fazer uma breve análise dessa personagem.

Será utilizada para apresentação de trechos do conto a tradução feita por Ana Cristina Cesar em “Escritos da Inglaterra”, que faz parte do livro ,Crítica e Tradução (Ática, 1999).

Bertha Young é retratada como uma típica mulher inglesa, burguesa, de 30 anos, que vive no período pós-vitoriano – início do século XX –, e que, “de repente, ao dobrar uma esquina, [...] é invadida por uma sensação de êxtase – absoluto êxtase! [...]”[*4]. Essa sensação desperta em Bertha pensamentos novos, desejos libertários para uma mulher de sua época contrastados com a sua imaturidade e ingenuidade diante dos conflitos dos quais participa.

Podemos perceber no conto uma forte relação entre o momento histórico da sociedade inglesa, mais propriamente no que tange ao papel das mulheres nessa sociedade, e o próprio enredo do conto. Em tal momento histórico encontramos

[uma] sociedade patriarcal inglesa, em que a mulher era escrava do homem, escrava social e serva da burguesia. Seja da elite ou da classe média, sua vida se passava principalmente no interior da casa, onde recebia aulas de trabalhos domésticos e bordado.[*5].

Tanto que, por conta dessa posição da mulher, estabelecida pela sociedade, no conto percebemos realmente que há certa dificuldade em Bertha exprimir o que pensa e até compreender aquilo que está sentindo. Em determinado momento, após ser narrado que ela tinha tudo o que uma mulher precisava, e mesmo sabendo que faltava algo, Bertha exclama: “Eu estou ficando louca. Louca!”, pois como seria possível para uma mulher como ela, tão privilegiada, reclamar de alguma coisa?

Podemos encarar o enredo de “Bliss” como sendo, inclusive, de teor autobiográfico, pois nele existem muitos aspectos inerentes à vida pessoal de sua autora. Porém, como nosso objetivo aqui não é tratar da biografia de Mansfield, mas sim analisar a maneira como ela “guia” a protagonista, é interessante observarmos a visão de Julio Cortázar quando se trata do conto como “expressão da realidade”:

[...] se não tivermos uma idéia viva do que é o conto, teremos perdido tempo, porque um conto, em última análise, se move nesse plano do homem onde a vida e a expressão escrita dessa vida travam uma batalha fraternal, se me for permitido o termo; e o resultado dessa batalha é o próprio conto, uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada, algo assim como um tremor de água dentro de um cristal, uma fugacidade numa permanência. Só com imagens se pode transmitir essa alquimia secreta que explica a profunda ressonância que um grande conto tem em nós, e que explica também por que há tão poucos contos verdadeiramente grandes.[*6] (grifos meus).

Ao dizer que o conto é “uma síntese viva ao mesmo tempo que uma vida sintetizada”, entendemos que, apesar de ser um gênero com estrutura relativamente menor se comparado ao romance, nele a história a ser contada pode ser um fragmento da realidade, um episódio que marca um momento único, privilegiado, na existência da personagem[*7]. E a maneira como essa história é contada e a forma de o escritor trabalhar os seus elementos é que fará com que exista uma aproximação com o leitor. Outro excerto do estudo de Cortázar também define lindamente a grandeza de um conto ao compará-lo a uma fotografia:

[...] uma fotografia bem realizada pressupõe uma justa limitação prévia, imposta em parte pelo reduzido campo que a câmara abrange e pela forma com que o fotógrafo utiliza esteticamente essa limitação. [...] Fotógrafos da categoria de um Cartier-Bresson ou de um Brassai definem sua arte como um aparente paradoxo: a de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em par uma realidade muito mais ampla, como uma visão dinâmica que transcende espiritualmente o campo abrangido pela câmara. [...] o fotógrafo ou o contista sentem necessidade de escolher e limitar uma imagem ou um acontecimento que sejam significativos que não só valham por si mesmos, mas também sejam capazes de atuar no espectador ou no leitor como uma espécie de abertura, de fermento que projete a inteligência e a sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento visual ou literário contido na foto ou no conto.[*8].

Como afirma Cortázar, o que importa no conto é aquele momento peculiar, destacado como sendo significativo. E ele tem que ser significativo para o espectador, mesmo sendo trabalhado em um formato menor. Disso, compreende-se a necessidade de cada palavra no conto ter o seu motivo para estar lá, isto é, nada é descartado, tudo em um conto contribui para o seu efeito no espectador. Por isso, assim como o fotógrafo, o contista deve ir direto ao assunto, tanto é que em “Bliss” a narrativa já tem início na metade, no momento em que a protagonista afirma ter sido tomada por um absoluto êxtase, sem prévia apresentação das personagens, as quais vamos conhecendo de acordo com a ocorrência de suas ações na própria trama.

A personagem Bertha Young

Bertha é apresentada como uma mulher que possuía, supostamente, tudo o que precisava para ser feliz: era casada com um homem bem-sucedido, tinha um bebê adorável, sua casa era sempre visitada por amigos interessantes e possuía empregados que a serviam. Ou seja, “não deveria haver motivos para insatisfação e Bertha devia se sentir gratificada em seu papel de esposa e mãe, servindo às necessidades da família”[*9] . Isso é retratado no conto, dito pela própria protagonista:

Era verdade – ela tinha tudo. Era jovem. Harry e ela se amavam como nunca, davam-se esplendidamente bem, eram realmente bons companheiros. Ela tinha um bebê adorável. Não havia que se preocupar com dinheiro. A casa e o jardim eram absolutamente satisfatórios. E os amigos – amigos modernos, envolventes, escritores e pintores ou poetas ou pessoas interessadas em questões sociais –, exatamente os amigos que eles desejavam. E havia livros, e a música, e uma ótima costureirinha recém-descoberta, e eles iam viajar para o exterior no verão [...] (p. 314).

Porém, certo dia a felicidade pela qual Bertha é tomada é tão forte, tão intensa, que logo imaginamos que a partir daquele momento sua vida tomará outro rumo. Com esse conto, a escritora deixa claro ao leitor qual era o verdadeiro papel da mulher em sua época, como ela deveria agir, se comportar, tratar o marido, cuidar dos filhos. E esses modos nos são passados com os próprios pensamentos da personagem e também estão presentes em sua própria fala, como podemos verificar no seguinte caso:

O que fazer se aos trinta anos, de repente, ao dobrar uma esquina, você é invadida por uma sensação de êxtase – absoluto êxtase! – como se você tivesse de repente engolido o sol de fim de tarde e ele queimasse dentro do seu peito, irradiando centelhas para cada partícula, para cada extremidade do seu corpo?

Não há como explicar isso sem soar “bêbado e desordeiro”? Que idiota que é a civilização! Para que então ter um corpo se é preciso mantê-lo trancado num estojo, como um violino muito raro? (p. 310).

Estes trechos correspondem ao segundo e terceiro parágrafos, respectivamente, do conto, e neles podem-se verificar as primeiras indagações de Bertha acerca de sua liberdade, de sua vontade de se expressar verdadeiramente sem parecer, talvez, uma afronta à ordem pré-estabelecida socialmente. O mesmo pode ser percebido em outros trechos, como neste em que, ao olhar-se no espelho, Bertha “mal ousava” encarar a imagem refletida, aparentemente com medo de descobrir a mulher exuberante que estava escondida dentro de si:

Estava escuro e um tanto frio na sala de jantar. Mesmo assim Bertha tirou fora o casaco: impossível suportá-lo apertado contra o corpo mais um minuto que fosse; e o ar frio bateu nos seus braços.
Mas no seu peito ainda havia aquela ardência – aquela irradiação de centelhas que queimavam. Era quase insuportável. Bertha mal ousava respirar com medo de atiçar esse fogo, e no entanto ele respirava, respirava profundamente. Mal ousava se olhar no espelho gelado – mas olhou sim, e o espelho devolveu uma mulher radiante, com lábios que sorriam, que tremiam, e olhos grandes, escuros, e um ar de escuta, de expectativa de que alguma coisa... divina acontecesse... que ela sabia que tinha de acontecer... infalivelmente. (p. 310-311).

E no trecho em que, diante da babá de sua filha, Bertha, apesar de perceber que havia algo errado naquela situação, não toma uma posição definitiva de dona da casa diante da babá:

“Ela ficou boazinha, babá?”
“Ela foi um amor a tarde toda”, murmurou a babá. “A gente foi ao parque e eu sentei e tirei ela do carrinho e apareceu um cachorro enorme e ele deitou a cabeça no meu colo e ela agarrou a orelha dele e deu um puxão, só vendo!”
Bertha queria perguntar se não era perigoso deixar um bebê agarrar a orelha de um cachorro estranho. Mas não ousava, e ficou ali, olhando, como a menininha pobre em frente da menininha rica com a boneca. (p. 311-312, grifos meus).

Neste trecho, fica muito clara a impotência de Bertha. Apesar de a babá ser sua subordinada, é ela quem estabelece a melhor forma de cuidar da filha da patroa, e esta, mesmo sabendo que naturalmente seria perigoso um bebê dar um puxão na orelha de um cachorro enorme, não ousa contestar a babá, que provavelmente seria a responsável pela criação de sua filha, visto que no início do século XX era natural que as babás, mulheres pertencentes à classe operária, fossem encarregadas de cuidar dos filhos das senhoras burguesas.

Mais adiante, ao pedir à babá que terminasse de dar comida à sua filha, aquela impõe a Bertha algumas limitações, dizendo, por exemplo, que “não é bom para ela [a criança] mudar de mãos durante a refeição”, pois isso “agita, pode perturbar o bebê” (p. 312). Ao que Bertha pensa:

Que absurdo tudo aquilo. Para que então ter um bebê se é preciso mantê-lo guardado – não num estojo como um violino muito raro – mas nos braços de outra mulher?
[...]
Muito ofendida, a babá passou o bebê para a mãe.
“Agora, não a excite depois do jantar. A senhora sabe. Depois ela me dá um trabalho!”

A posição de Bertha dentro de sua casa, assim como a sua posição acrítica num momento em que ela poderia perfeitamente se impor, ganham destaque nesse trecho. Isso demonstra uma personagem cuja realidade é totalmente limitada, e também que tamanho êxtase, essa sensação de extravasão, não servia de motivação para exteriorizar seus pensamentos, mas para perceber que havia algo nela que a perturbava, que estava prestes a ser descoberto.

Outro aspecto a se verificar é a vontade de Bertha de ser tocada. Aparentemente, a protagonista estava acostumada com o superficial, apenas com aquilo que ela via, e a sua insatisfação com relação à sua vida é perceptível desde o início do conto. Existem vários trechos que servem de exemplo para ilustrar essa relação entre o que se vê e o que se sente. E eles se fazem presentes por toda a extensão do texto: “Que idiota que é a civilização! Para que então ter um corpo se é preciso mantê-lo trancado num estojo, como um violino muito raro?” (p. 310). Esse trecho é um exemplo de sua vontade de ser tocada. Nota-se que ela compara seu corpo a um violino muito raro, algo muito precioso, que não faz sentido ter tanta beleza e atingir a todos os requisitos de perfeição se não for utilizado, tocado da maneira como algo tão raro merece ser.

Ao terminar o arranjo – duas pirâmides de brilhantes formas arredondadas – Bertha se afastou um pouco para apreciar o efeito, que lhe pareceu extraordinário. A mesa escura parecia se dissolver na penumbra e o prato de louça e a travessa azul pareciam soltos no ar. E no seu atual estado de espírito a visão era tão incrivelmente bela... (p. 311).

Neste trecho, além de parar para admirar sua “obra”, a maneira como os objetos e as frutas estão dispostos – “pirâmides de brilhantes formas arredondadas”, “o prato de louça e a travessa azul pareciam soltos no ar” – podem ser uma forma de descrever o êxtase que Bertha estava sentindo. Marvin Magalaner, em seu ensaio sobre “Bliss”, comenta inclusive que as imagens relacionadas à comida no conto são de grande relevância:

A história se apóia fortemente em imagens de comida, no ato de comer e beber e em outras sugestões de satisfação oral, como o ato de fumar. O primeiro dever de Bertha, ao entrar em casa, consiste em dar uma arrumação elegante às frutas; essa tarefa, que é muito simples, suscita nela uma reação emocional que raia o “histérico”. Em seguida, luta surdamente com Nanny para ter o direito de dar de comer a sua própria filha. O resto da história focaliza o jantar festivo, os convidados, a conversa à mesa, depois o café e cigarros no salão: em seguida o episódio da pereira e da lua batendo no jardim e a epifania final de Bertha sobre a traição de seu marido com Pearl.
Mesmo quando a trama não necessita de alusões ao ato de digerir, mascar, morder, engolir, beber etc., ao tubo digestivo, à ingestão e coisas do mesmo estilo, Bliss faz essas alusões, sempre que possível. O sorrido distante de Pearl é explicado humoristicamente por Harry como conseqüência de uma indigestão de fígado, ou “pura flatulência”, ou talvez “mal dos rins”. O leitor fica sabendo, gratuitamente, que a nova cozinheira da família Young faz “omeletes fantásticas”; a sra. Norman Knight se queixa de que os simplórios viajantes de trem a “devoraram” com os olhos, para em seguida caracterizar o episódio como “creamy”. Bertha imagina que a convidada fez “com cascas de banana aquele vestido amarelo de seda” e olha os brincos da sra. Knight como se fossem “duas minúsculas castanhas penduradas” [...].[*10]

Porém, como mencionado por Megalaner, o que mais reflete seus sentimentos é a pereira plantada em seu jardim. Ao descrever a árvore, podemos compreender que, da mesma forma como a figura do violino foi utilizada, existe uma total relação entre a imagem observada e o que a protagonista estava descobrindo acerca de si:

As janelas da sala se abriam para uma varanda que dava para o jardim. No extremo oposto, contra o muro, havia uma árvore, alta e esguia, em flor, luxuriantemente em flor, perfeita, como se apaziguada contra o céu de jade. Bertha não podia deixar de notar, mesmo a distância, que não havia na árvore nem um broto por abrir, nem uma pétala esmaecida. (p. 314).

Nesta passagem, a pereira no jardim sugere à personagem uma imagem de sua própria vida, e “insinua uma metáfora da sexualidade da protagonista, que desabrocha neste dia de primavera.” Sua mente, seu corpo e principalmente sua idade indicam que ela está em uma fase de plenitude, totalmente amadurecida e preparada para experimentar algo que fosse diferente a ela, que não fazia parte de sua realidade.

Outra passagem do conto em que podemos estabelecer essa relação entre o ver e o tocar é quando ela pede à babá que a deixe dar o jantar para sua filha, como já mencionamos anteriormente, no que aquela coloca algumas restrições, até que Bertha pensa: “Que absurdo tudo aquilo. Para que então ter um bebê se é preciso mantê-lo guardado [ou seja, sem poder estar com ele] – não num estojo como um violino muito raro – mas nos braços de outra mulher?” (p. 312). Porém, ao pegar sua filha no colo, ao estabelecer um contato físico com ela, a sensação de êxtase reaparece:

“Você é um amor – um amor!” disse beijando o seu bebê tão quentinho. “Eu gosto muito de você. Eu gosto muito de você.”
E realmente, ela amava tanto a pequena B – seu pescocinho se inclinando para frente, seus dedinhos do pé que brilhavam transparentes contra o fogo da lareira – e toda aquela sensação de êxtase voltou novamente, e novamente ela não sabia como exprimir aquilo – e o que fazer daquilo. (p. 312, grifos meus).

E também no trecho em que ela dá o braço a Miss Fulton:

O que é que havia no contato com aquele braço que atiçava – incendiava – o fogo do êxtase que Bertha não sabia como exprimir – e o que fazer daquilo?
Miss Fulton não olhou para ela; mas Miss Fulton raramente olhava para as pessoas. Suas pálpebras se fechavam pesadamente e aquele estranho meio sorriso ia e vinha dos seus lábios como se ela vivesse de ouvir e não de ver. (p. 316).

Neste momento fica claro que o êxtase de Bertha tomava uma proporção maior à medida que ela recebia um toque, e que ela estava se sentindo fortemente atraída por Miss Fulton, e aqui há a descoberta de seu desejo por outra mulher. Porém, logo após, ela transfere esse desejo para Harry, seu marido. O conto nos permite interpretar que o seu relacionamento com Harry não possuía uma intimidade tão profunda, apesar de ela imaginar que “eles eram tão francos um com o outro – tão bons companheiros. Nisso residia o melhor de ser moderno.” Isso nos permite observar que naquela sociedade seria muito natural que uma mulher fosse reconhecida apenas pelos seus dotes como dona de casa, pois ela vivia em função dos outros, e que Bertha, aqui, demonstra ser inocente e ignorante ao que ela julga ser a real felicidade, tanto que ela crê que tem um relacionamento verdadeiro, moderno com seu marido. No entanto, ela o deseja e imagina que naquela noite poderá ter um momento mais íntimo com o seu parceiro:

Junto com essas últimas palavras, alguma coisa de estranho e quase aterrorizante cruzou o seu pensamento. Uma coisa cega, que sorria e murmurava: “Logo essas pessoas vão partir. A casa vai ficar quieta, muito quieta. As luzes apagadas. E você e ele sozinhos, no quarto escuro, na cama quente...”
Bertha levantou-se num ímpeto da poltrona e correu para o piano.
“Que pena que ninguém toca!” falou bem alto. “Que pena que ninguém toca.” (p. 320-321).

Bertha é o instrumento que deseja fortemente o toque de seu marido. Porém, Harry é indiferente aos sentimentos de sua esposa, sendo que, segundo Adriana de Freitas Gomes (2009), “a harmonia que Bertha deseja é a satisfação do seu êxtase sexual, que nunca ocorrera” e o fato de “viver mais confortavelmente dia após dia [...] é tudo o que ela conhece ser a felicidade, que se limitava, principalmente, à sua segurança financeira”. Gomes afirma ainda que “as constantes e enfáticas afirmativas de quão feliz Bertha se sente na verdade sugerem que ela está escondendo seus verdadeiros sentimentos de si mesma”, como mencionamos anteriormente.

Porém, essa satisfação que Bertha procura é abalada quando ela descobre que seu marido e Miss Fulton são amantes. Nesse momento, esperamos que Bertha reaja de alguma forma, que ela brigue e impeça essa mulher, pela qual ela havia se sentido atraída, de continuar se relacionando com seu marido, coisa que nem ela fazia, e lutar por aquilo que ela realmente deseja. Mas não. Ao descobrir a traição, a protagonista se revela totalmente passiva, sem voz e sem força emocional para reclamar a fidelidade do seu marido. Sua falta de iniciativa e imaturidade nos fazem crer que lhe falta sabedoria para lidar com essa nova situação e, de acordo com Gomes, “possivelmente Bertha não estava incomodada por perder o marido, mas por ter agora que vivenciar uma experiência totalmente inusitada para uma pessoa acostumada e acomodada a uma vida de luxo, estável e equilibrada”. Por isso o conto termina com uma pergunta de Bertha a si mesma: “E agora, o que vai acontecer?” Não temos a resposta para essa pergunta, mas provavelmente ela não seja tão diferente da que vem sendo dada desde o início deste trabalho: seria bastante natural se Bertha simplesmente aceitasse, calada, a traição de seu marido. Porém, isso, o caráter aberto do final do conto não nos permite inferir.

Considerações finais

Com esta breve análise acerca da personagem Bertha Young, protagonista de “Bliss” – que, como dizem, é o conto “mais feminino” de Katherine Mansfield –, pudemos perceber a preocupação da autora em revelar o seu íntimo, ou o seu incômodo, por meio de uma história tão simples, tão cotidiana, mas que deveria representar a sua própria angústia assim como a de muitas leitoras que a liam naquela época, e ainda hoje, sendo que as diferenças entre os gêneros masculino e feminino estabelecidas pela sociedade ainda permanecem, se não em todos, em vários países. Levando esse argumento em consideração, é interessante verificar o que pensa Julio Cortázar acerca da escolha do tema de um conto pelo autor:

O elemento significativo do conto pareceria residir principalmente no seu tema, no fato de se escolher um acontecimento real ou fictício que possua essa misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele mesmo, de modo que um vulgar episódio doméstico, como ocorre em tantas admiráveis narrativas de uma Katherine Mansfield ou de um Sherwood Anderson, se converta no resumo implacável de uma certa condição humana, ou no símbolo candente de uma ordem social ou histórica.[*11]

Sobre isso, Cortázar ainda afirma que “o tema do qual sairá um bom conto é sempre excepcional, mas não quero dizer com isto que um tema deva ser extraordinário, fora do comum, misterioso ou insólito. Muito pelo contrário, pode tratar-se de uma história perfeitamente trivial e cotidiana”[*12] . E assim é “Bliss”: uma história ambientada num momento extremante importante para as mulheres daquela época – em que feministas lutavam por direitos iguais para homens e mulheres – que acontece em um espaço comum, extremamente cotidiano para todos nós, isto é, a própria casa da protagonista, espaço esse que deveria ser de total liberdade para Bertha e não mais uma algema para sua condição de cidadã do gênero feminino – um espaço em que ela deveria ter a total possibilidade de agir conforme sua própria vontade, sem amarras, sem julgamentos, sem ordens da própria babá com relação à sua própria filha –, em um momento que parecia ser trivial para aquela família.

Desta forma, “Bliss” deve ser considerado um conto que marca um momento histórico da mulher na sociedade tanto inglesa quanto ocidental, trabalhando com um tema que se mantém ainda atual. Julio Cortázar afirma a significância do conto ao quebrar “seus próprios limites com essa explosão de energia espiritual que ilumina bruscamente algo que vai muito além da pequena e às vezes miserável história que conta.” Em nosso conto, essa “explosão de energia” parece estar vinculada à profunda ironia presente na extrema felicidade que Bertha sentia, quando contrastada com a sua dura realidade – e posterior profunda decepção por conta da traição do marido e da dúvida, desencadeada no leitor, em relação ao seu comportamento após essa descoberta.

Como no conto a protagonista é tomada por um sentimento que vai crescendo por toda a extensão de um curto espaço de tempo, e de texto, o leitor também acaba sendo tomado pelas impressões de Bertha e, portanto, finaliza a leitura do conto imaginando: “E agora, o que vai acontecer?”

Referências bibliográficas

CESAR, Ana Cristina. “Escritos da Inglaterra”. In: ______. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999. p. 275-430.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
GOMES, Adriana de Freitas. Uma Leitura de “Bliss”, de Katherine Mansfield – “A Vida como Origem”. Disponível em: . Acesso em: 23 nov 2009.
MOISÉS, Massaud. A criação Literária: prosa I. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
Voltar
Passe o mouse sobre os textos em vermelho para visualizar suas notas de rodapé.
Topo
Trabalho orientado pelo prof. dr. André Luiz Glaser no curso de especialização em Estudos Literários.
Graduada em Letras no ano de 2008 e pós-graduada no curso de especialização em Estudos Literários, da Anhanguera Educacional - Centro Universitário Ibero-Americano, em 2010.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 153.
CESAR, Ana Cristina. “Escritos da Inglaterra”. In: ______. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999. p. 310.
GOMES, Adriana de Freitas. Uma Leitura de “Bliss”, de Katherine Mansfield – “A Vida como Origem”. Disponível em: . Acesso em: 23 nov 2009.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 150-151.
MOISÉS, Massaud. A criação Literária: prosa I. 20. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. p. 41.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 151.
GOMES, Adriana de Freitas. Uma Leitura de “Bliss”, de Katherine Mansfield – “A Vida como Origem”. Disponível em: . Acesso em: 23 nov 2009.
CESAR, Ana Cristina. “Escritos da Inglaterra”. In: ______. Crítica e Tradução. São Paulo: Ática, 1999. p. 326.
CORTÁZAR, Julio.Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 152-153.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 154.