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Artigo publicado na edição nº 51 de Dezembro de 2011.

EXPECTATIVA DE VIDA E MORTALIDADE
DE ESCRAVOS:

Uma análise da Freguesia do Divino Espírito Santo do Lamim – MG (1859-1888)


Luiz Fernando Veloso Nogueira[*1]

Introdução

A historiografia brasileira tem mostrado a importância da análise dos registros paroquiais enquanto fontes essenciais para a compreensão do período colonial e imperial brasileiro. Os registros paroquiais de batismos, casamentos e óbitos generalizaram-se a partir do Concílio de Trento (1545-1563) e ocupam lugar de destaque no desenvolvimento historiográfico, sobretudo na Demografia Histórica. No Brasil, a produção dos registros paroquiais assumiu algumas particularidades. Até a instituição da República, em 1889, o clero ocupou lugar de destaque na máquina burocrática do Estado Colonial e Imperial. A constituição de paróquias, a nomeação de padres, a remuneração de parte do clero, dentre outras coisas, eram funções do Estado. Em contrapartida, os padres desempenhavam uma série de papéis como simples funcionários civis. O mais destacado deles era a constituição e controle do sistema de registro de eventos demográficos. Dessa forma, era responsabilidade do clero registrar e coletar informações sobre nascimentos – formalizados por meio do batismo –, matrimônios e óbitos da população brasileira.

Para conhecer melhor os seus membros, a Igreja Católica passou a fazer uso dos registros individuais de cada católico. Além do batismo e do casamento, era preciso registrar as mortes de seus fiéis para evitar abusos, como a bigamia. Além do mais, sendo o catolicismo a religião oficial do Brasil desde a Colônia e em todo o período do Império, todos os que aqui nascessem, casassem ou morressem deveriam passar pelo registro da Paróquia, que se revestia de um caráter religioso e administrativo ao mesmo tempo. Para dar uniformidade a esses registros, a Igreja determinou o que deveria ser anotado pelo pároco em cada acontecimento. Segundo Maria Luiza Marcílio:

Para o registro dos óbitos as regras não eram tão rigorosas e iguais. Bastava registrar a data do falecimento, o nome do morto, seu estado civil. No caso de solteiros, dever-se-ia nomear os pais, ou o fato de ter sido exposto ou ser ilegítimo. No caso dos casados e dos viúvos(as), além desses dados, era necessário indicar o nome do esposo(a). Em muitas paróquias assinalava-se a naturalidade do morto, sua idade, e atividade que exerceu. Em alguns casos indicava-se a causa da morte e se o morto havia deixado testamento. As condições do enterramento vinham por vezes mencionadas: tipo e cor da mortalha ou do caixão (século XIX) e local do enterramento. Estes dados eram porém mais raros[*2].

Na maioria dos registros de óbitos de escravos entre os anos de 1859, ano de criação da Paróquia, e 1888, os sacramentos recebidos pelo falecido são constantes. Isso não nos informa se os escravos eram católicos e, sequer, se eles tinham uma religião. O que vale notar, como afirmou Iamara Viana [*3], é que o ritual católico de bem morrer era exercido pelo seu proprietário ou pelo pároco. As relações de poder existentes na sociedade escravista permitiram ao cativo, em certa medida, o direito a uma morte nos moldes católicos.

Nossa pesquisa tem como área de abrangência a Freguesia de Lamim [*4], um pequeno município do estado de Minas Gerais, com cerca de 4 mil habitantes, localizado na Zona da Mata mineira. Sua economia se baseia na agricultura de subsistência e na pequena pecuária leiteira. Sua população tem ascendência europeia, indígena e africana. A religiosidade é uma característica marcante de seus habitantes, com destaque para o catolicismo, que abrange mais de 95% da população.

Doenças e mortalidade da população escrava

Um dos primeiros trabalhos sobre a temática da saúde e das doenças que ceifavam a vida dos cativos foi a obra de Karasch [*5]. A autora explica que os cativos morriam devido a uma correlação complexa entre descaso físico, maus tratos, dieta inadequada e doença. A falta de alimentação, roupas e moradias apropriadas, em combinação com os castigos, enfraqueciam-nos e preparavam-nos para serem liquidados por vírus, bacilos, bactérias e parasitas que floresciam na população densa do rio urbano. As ações intencionais ou não dos senhores contribuíam diretamente para o impacto de doenças específicas ou criavam indiretamente as condições nas quais uma moléstia contagiosa poderia se espalhar rapidamente pela população escrava.

Gorender, em Escravismo Colonial [*6], afirma que é necessário levar em conta as condições cotidianas da vida para entender o tratamento dispensado aos cativos, tais como: quantidade e qualidade da alimentação, vestuário, habitação, duração da jornada laboral e outras condições de trabalho, nesse caso, os tipos e a frequência dos castigos impostos aos escravos.

Na mesma linha de pensamento dos autores aqui apresentados, Schwartz, em seu trabalho sobre a temática na Bahia[*7] , demonstrou que as condições de insalubridade, a subnutrição e a falta de assistência médica afetavam um grande segmento da população livre, mas sem dúvida o cativeiro criava certas condições especiais de mortalidade.

Nos dois livros de óbitos [*8] pesquisados, encontramos 139 registros de escravos ou de filhos de escravos, de um total de 638 registros. Um número relativamente pequeno de falecimentos de cativos, se pensarmos nas duras condições de vida do cativeiro. Isso pode ser explicado ao se fazer uma análise demográfica da população escrava da Freguesia. Em 1831 [*9] , 628 pessoas eram escravas. Já em 1866[*10] , a população cativa caiu para 358 indivíduos e, em 1872 [*11] , não passava de 324. Certamente, o fim do tráfico internacional de escravos em 1851 contribuiu para essa queda.

Um fator que dificulta um maior entendimento da mortalidade escrava em Lamim é a ausência da causa da morte nos registros. Dos 139 óbitos de escravos, 55 não trazem a causa do falecimento. Entre os que a trazem, entretanto, há, na maioria, imprecisão quanto ao que provocou a morte do indivíduo, conforme nos mostra a tabela abaixo:

Hidropsia

14

Moléstia ou enfermidade

43

Morte súbita (de repente)

6

Hemorragia interna

1

Defluço

1

Queimadura

1

Congestão

2

Tumores nas coxas

1

Dilatação no coração

1

Picada de cobra

1

Febre

7

Indigestão

1

Mal de Lázaro

1

Cólera

2

Coqueluche

2

Fonte: Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903).

Como podemos observar, mais da metade dos registros apontam “moléstia” ou “enfermidade” como causas das mortes, impossibilitando-nos, de fato, de sabermos que tipo de doenças acometiam os escravos. Até onde fomos com nossa pesquisa, pudemos constatar que não havia médicos na Freguesia de Lamim. Isso explicaria a limitação ou a ausência da causa mortis nas anotações feitas pelo pároco, que se limitava a registrar as doenças mais comuns e fáceis de serem identificadas, ou simplesmente não as registrava.

Outro fato que nos chamou a atenção foi o sepultamento de escravos dentro da igreja. Era comum, no período analisado, que pessoas ricas e com destacada relevância social fossem enterradas no interior das igrejas. Pessoas simples, forros e escravos, normalmente, eram sepultados em cemitérios que rodeavam as igrejas. De modo geral, eram os cemitérios e não as igrejas os lugares onde preferencialmente eram depositados os corpos dos escravos, constatando um reflexo da posição ocupada por eles dentro da sociedade, uma vez que os enterros dentro das igrejas eram feitos, muitas vezes, em troca de concessões financeiras a ela, por meio de doações. Em Lamim, 27 escravos foram enterrados na Matriz, demonstrando uma preocupação dos senhores com um enterro aos moldes católicos para alguns escravos selecionados. Esse fato nos sugere uma demarcação social, que poderia funcionar como instrumento de controle, mas indica também o respeito e o prestígio que alguns escravos adquiriam ao longo de suas vidas.

Mortalidade e expectativa de vida

Aos 21 dias do mês de Maio de 1871, nesta freguesia do Espírito Santo do Lamim, faleceu Miguel, de nação, de idade 90 anos, escravo de Francisco Pinto de Morais, desta mesma freguesia, foi encomendado e sepultado o seu corpo no adro desta matriz, do que para constar, fiz este assento. O vigário Antônio José Neto.[*12]

O registro acima retrata uma rara exceção para os padrões do período. Viver 90 anos extrapolava muito a expectativa de vida da época, ainda mais quando se tratava de um escravo, cujo tempo de vida, em média, era menor do que o do homem livre.

Ao analisar dados de diversas fontes, Schwartz [*13] mostrou que no Brasil do último quarto do século XIX a expectativa de vida dos escravos, ao nascer, variava em torno de 19 anos. O espanto que esse número pode causar ao leitor de hoje só não é maior quando se sabe que a expectativa de vida de um brasileiro não escravo era de apenas 27 anos em 1879. Nos Estados Unidos, a expectativa de vida dos escravos, por volta de 1850, era de 35 anos e meio, apenas 12% menor do que a da população total e muito superior à de um brasileiro médio. As condições de vida, no século XIX, eram ruins para todos e muito piores para os escravos.

Dos 139 registros de óbitos de escravos da Freguesia de Lamim, 120 deles trazem a idade do falecido. A partir desses registros, fizemos agrupamentos por idade de falecimento, conforme a tabela a seguir:

IDADE

FALECIMENTOS

PERCENTUAL

Menos de 1 ano

22

18,40%

1 a 5 anos

26

21,70%

6 a 10 anos

3

2,50%

11 a 15 anos

3

2,50%

16 a 20 anos

8

6,70%

21 a 30 anos

11

9,10%

31 a 40 anos

15

12,50%

41 a 50 anos

11

9,10%

51 a 60 anos

11

9,10%

61 anos ou mais

10

8,40%

TOTAL

120

100,00%

Fonte: Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903)

Como nos mostra a tabela, a maior incidência de morte ocorre sobre o grupo de crianças entre 0 e 5 anos, correspondendo a 40% das mortes de escravos. Essa alta taxa de mortalidade infantil ocorreu em todo o Império, ganhando força após a Lei do Ventre Livre, pois, além das péssimas condições de vida, cresceu o descaso pelos recém-nascidos. A ajuda financeira prevista pela lei aos fazendeiros, para estes arcarem com as despesas da criação dos ingênuos, jamais foi fornecida.

No que se refere à mortalidade geral de escravos, com base na média de idade de falecimento obtida por meio dos registros de óbitos, concluímos que a expectativa de vida de um escravo, na Freguesia de Lamim, era de 25 anos, um pouco maior que a encontrada por Schwartz, que girava em torno de 19 anos.

Considerações finais

Sabemos que o número de óbitos analisados neste trabalho, devido ao seu caráter reduzido, não pode servir como uma referência para outros pesquisadores que se propõem a estudar o assunto, nem foi essa a nossa pretensão. Nosso objetivo foi procurar esclarecer, na medida do possível, como ocorreu a mortalidade escrava no município de Lamim. Certamente aconteceram falecimentos de cativos que acabaram não sendo registrados pelos párocos do período, pois não era raro que escravos fossem enterrados nas próprias fazendas, às vezes sem qualquer comunicação ou registro por parte de seus senhores.

Pudemos constatar que houve sim, apesar das limitações impostas pela escravidão, uma apropriação dos escravos de Lamim pelos recursos que, segundo a tradição católica da época, garantiriam um bom encaminhamento da alma, demonstrando que o universo escravo sofreu uma grande influência do catolicismo. Além disso, não podemos esquecer que o acesso aos recursos do “bem morrer” era muitas vezes oneroso, tornando-se, frequentemente, inacessível e pouco atraente aos escravos.

Por possuir somente uma paróquia e ter um território pequeno, acreditamos que os resultados encontrados para Lamim são válidos, visto que o pároco tinha o controle sobre todos os registros eclesiásticos da freguesia e poderia circular com maior rapidez entre os distritos e as fazendas, além de ter um contato mais próximo com seus fiéis. Acreditamos também que os dados referentes à mortalidade escrava e a expectativa de vida dos mesmos, encontrados em Lamim, são bastante semelhantes a diversas outras freguesias mineiras, pois estas, em geral, também possuíam apenas uma paróquia, com pequeno território, atividades econômicas e população (escrava e livre) semelhantes.

É preciso que os historiadores da escravidão intensifiquem o diálogo com outras áreas do conhecimento, com destaque para os estudos relacionados às doenças e à medicina em geral, e assim avancem nas pesquisas relacionadas à saúde da população negra, tornando possível que novas faces do universo da escravidão sejam analisadas por meio das experiências de mortalidade e enfermidade.

Referências Bibliográficas

GORENDER, Jacob. Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia.das Letras, 2000. KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. Varia História, Belo Horizonte, n. 31, p. 13-20, jan. 2004.
NASCIMENTO, Washington Santos. Padrões e Tendências das Enfermidades e Causas Mortais entre os escravos e libertos na Região Sudoeste da Bahia (1867-1887). In: ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA: PODER, CULTURA E DIVERSIDADE, 3., 2006, Caetité; Vitória da Conquista, Bahia. Anais..., v. 1. Vitória da Conquista, BA: Eureka, 2006.
NOGUEIRA, Luiz Fernando Veloso. Ouro e Fé: as origens do município de Lamim – MG. História e-História, Campinas, v.1, p. 1-4, 2010.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
VENÂNCIO, Renato Pinto. Pobreza carioca: uma sondagem nos registros de óbitos de fins do século XVIII. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA QUANTITATIVA E SERIAL, 2., 2001, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte, 2001.
VIANA, Iamara da Silva. Morte de escravos, forros e livres na Vassouras oitocentista: uma análise comparativa ,1840-1870. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA, 13., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpuh, 2008.

Fontes manuscritas

Museu e Arquivo Antônio Perdigão. Conselheiro Lafaiete. Relação dos escravos do Districto do Lamim – 1866
Paróquia do Divino Espírito Santo de Lamim-MG. Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903)

Fontes digitalizadas

Lista Nominativa do Districto do Lamim - 1831 – disponível em: www.poplin.cedeplar.ufmg.br
Recenseamentos Gerais do Brasil Império – 1872 – Biblioteca do IBGE
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Mestrando em História pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP). Professor de História no ensino fundamental e médio da SEE/MG. E-mail: nogueira.lamim@hotmail.com.
MARCÍLIO, Maria Luiza. Os registros paroquiais e a História do Brasil. Varia História, Belo Horizonte: UFMG, n. 31, p. 13-20, jan. 2004.
VIANA, Iamara da Silva. Morte de escravos, forros e livres na Vassouras oitocentista: uma análise comparativa ,1840-1870. In: ENCONTRO DE HISTÓRIA, 13., 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Anpuh, 2008.
Mais informações a respeito do município, ver NOGUEIRA, Luiz Fernando Veloso. Ouro e Fé: as origens do município de Lamim – MG. História e-História, Campinas, v. 1, p. 1-4, 2010.
KARASCH, Mary. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
GORENDER, Jacob. Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1978.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
Paróquia do Divino Espírito Santo de Lamim-MG. Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883) e Livro de Óbitos n° 2 (1877-1903).
Ver Lista Nominativa do Districto do Lamim de 1831 – disponível em: www.poplin.cedeplar.ufmg.br.
Museu e Arquivo Antônio Perdigão. Conselheiro Lafaiete. Relação dos escravos do Districto do Lamim.
Recenseamentos Gerais do Brasil Império – 1872 – Biblioteca do IBGE.
Livro de Óbitos n° 1 (1859-1883). Registro n° 251.
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835). São Paulo: Companhia das Letras, 1988. p. 303.