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Artigo publicado na edição nº 51 de Dezembro de 2011.

A MORAL, A POLÍTICA E ALGUMAS QUESTÕES CIENTÍFICAS PRESENTES NO HOSPITAL DO JUQUERY:

Abordagens de Pacheco e Silva (1923–1950)


Gustavo Querodia Tarelow [*1]

Introdução

Antonio Carlos Pacheco e Silva nasceu em São Paulo, capital, no dia 29 de maio de 1898, ano em que foi inaugurado o Hospício de Juquery sob a direção de Francisco Franco da Rocha, idealizador daquele hospício e figura principal do alienismo paulista do final do século XIX e das primeiras duas décadas do século XX. Ao optar pela formação médica, que se deu na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1920, Pacheco e Silva teve a sua trajetória entrelaçada à do Juquery, que naquele momento já era um manicômio de proporções grandiosas e que pretendia ser um modelo de assistência e de eficácia terapêutica em Psiquiatria. Segundo Maria Gabriela S. M. C. Marinho:

De origem familiar fortemente enraizada na plutocracia paulista, Pacheco e Silva era neto dos Barões de Itatiba, pelo ramo paterno, e dos Barões de Araras, pelo ramo materno. Filho de Pérsio Pacheco e Silva, fazendeiro e cafeicultor da região de Campinas e de Escolástica de Lacerda Pacheco e Silva, seus vínculos familiares estavam solidamente vincados na política local e nacional. Sobrinho do também médico Gabriel de Toledo Piza, embaixador do Brasil na França, seu contato com a Europa ocorreu muito cedo, ainda criança, e se estendeu ao longo de sua formação. Pacheco e Silva pôde, assim, conviver com os “esplendores” de Paris do início do século XX, nos momentos finais da “belle-époque” francesa, conforme relatos deixados por ele.[*2]

Ao assumir a direção do Juquery em 1923, sucedendo Franco da Rocha, Pacheco e Silva passou a galgar cargos e títulos que lhe conferiram um papel de destaque nos âmbitos médicos, sociais, políticos e acadêmicos até a sua morte, em 27 de maio de 1988. Tendo a sua trajetória construída em um momento em que as instituições públicas, por diversas vezes, se confundiam com a imagem de seus dirigentes, Pacheco se tornou uma figura pública influente tanto do ponto de vista da formação de novos profissionais da saúde quanto nos rumos seguidos pelas instituições em que atuou. Com uma posição ideológica sempre conservadora, imprimiu em suas publicações e conferências pontos de vista voltados à manutenção da ordem e da moral oriundas das camadas mais abastadas da sociedade de seu período.

Pacheco e Silva teve uma longa carreira médica e uma ampla atuação em vários órgãos que obtiveram repercussão em diversas camadas da sociedade brasileira e internacional. Além da direção do Juquery, entre 1923 e 1937, ele fundou, em 1926, a “Liga Paulista de Higiene Mental”, ligada à Liga Brasileira, da qual já era membro. Em 1930 se tornou diretor do Departamento de Assistência aos Psicopatas de São Paulo e em 1934 foi indicado pelo setor industrial à Assembleia Nacional Constituinte, onde defendeu diversos preceitos eugênicos [*3]; em 1932 iniciou sua carreira docente na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ministrando a disciplina de “Psiquiatria Forense”, e em 1935 foi aprovado no concurso para a Cadeira de “Clínica Psiquiátrica” da Faculdade de Medicina desta mesma Universidade, permanecendo no cargo até 1967, além de ser contratado e ministrar a aula inaugural da Escola Paulista de Medicina também em 1935.

Ligado às teorias organicistas de explicação dos distúrbios mentais, Pacheco e Silva, ao longo de sua carreira, se posicionou contrário ao uso da Psicanálise e introduziu no Brasil algumas técnicas terapêuticas peculiares, como a Malarioterapia e a Eletroconvulsoterapia no Juqueri e no Sanatório Pinel, instituição da qual foi um dos fundadores. Sua atuação chegou a níveis internacionais, fazendo intercâmbios culturais com a França, Estados Unidos, Suécia e vários países da América Latina, além de colaborar na direção da Organização Mundial de Saúde Mental.

Com sua influência, se aproximou da política em um momento em que a Psiquiatria passou a intervir no seio da sociedade para “prevenir” os distúrbios mentais, desenvolvendo programas de combate ao alcoolismo, de educação infantil. Sua atuação política foi vasta, chegando a ser um dos diretores da Liga Anticomunista Internacional e um dos apoiadores diretos do golpe militar de 1964. Apesar de ele ter trilhado uma longa trajetória acadêmica e institucional, no presente trabalho analisarei somente algumas de suas concepções acerca das doenças mentais tratadas no Hospital do Juquery no período em que ele dirigiu essa instituição.

Pacheco e Silva: Psiquiatria, Eugenia e a proposição de políticas públicas

Pacheco e Silva manteve ao longo de sua trajetória profissional uma postura conservadora diante de temas como a imigração, o casamento, a “higiene mental”, o homossexualismo, as religiões, entre outros. Para fazer valer as suas opiniões, galgou cargos e fundou instituições que, de alguma maneira, pudessem dar eco às suas posições diante dos temas citados acima. A ferramenta mais usada por ele para que os seus ideais fossem difundidos foi a aproximação com os setores mais abastados da sociedade, bem como a publicação de textos em revistas científicas e em jornais direcionados ao grande público, sobretudo o jornal O Estado de São Paulo.

Alinhado às concepções eugênicas, Pacheco e Silva acreditava que a eugenia era um complemento às teorias de seleção natural e evolução das espécies de Charles Darwin. Para os eugenistas era possível, em relação aos seres humanos, racionalizar esta “seleção natural” com a finalidade de promover uma sociedade mais desenvolvida, a partir de seres humanos mais sadios e com uma formação genética “superior”. Para tanto, buscava-se controlar a natalidade e eliminar os resquícios dos “degenerados”, entendendo que as mazelas da sociedade eram oriundas da hereditariedade das “raças menos desenvolvidas”[*4] .

Segundo Pacheco e Silva,

[...] a eugenia não só tem por fim a procriação em boas condições fisiológicas, como ainda estuda as causas disgenéticas ou as que podem influir direta ou indiretamente sobre o valor da espécie, dando a cada cidadão o sentimento de responsabilidade na formação da raça.[*5]

Um marco na sua atuação e no alinhamento aos ideais eugênicos correntes no período foi a fundação da Liga Paulista de Higiene Mental, uma filial da Liga Brasileira, em 1926, isto é, apenas três anos após a sua nomeação à direção do Juquery. Esta Liga promovia campanhas na tentativa de educar a população sobre os supostos riscos da mistura racial, do uso de bebidas alcoólicas, do sexo fora do casamento, da entrada de imigrantes “degenerados” no Brasil, da suposta anormalidade das práticas homossexuais, das crenças nas religiões espíritas, entre outros temas. O principal instrumento de divulgação das concepções dos psiquiatras filiados à Liga eram os “Arquivos Paulistas de Higiene Mental”. A partir de tais publicações, é possível notar que Pacheco e Silva acreditava que a educação eugênica da população poderia reduzir o número de doentes mentais entre a população paulista.

Desta maneira, a “melhoria da raça”, no caso brasileiro, não teria que passar somente pelo controle de natalidade ou pela fiscalização das “transmissões genéticas”, mas deveria estar calcada na educação da população e na ampliação da atenção sanitária a todas as camadas da sociedade. Justamente por esta razão é que os psiquiatras adotaram o nome de “Higiene Mental” para tal movimento, já que entendiam que a preservação do bem estar da mente era tão fundamental quanto a luta contra a malária ou a febre amarela, por exemplo [*6].

Além das publicações de textos nos “Arquivos Paulistas de Higiene Mental”, os psiquiatras, encabeçados por Pacheco e Silva, realizavam campanhas em rádios, afixavam cartazes em locais públicos, panfletavam nas portas das fábricas, entre outras estratégias. Desta maneira, São Paulo passou a ter grande destaque entre os eugenistas brasileiros, por aglutinar duas características peculiares: possuir uma organização sanitária mais bem desenvolvida que o restante do país e ter em sua raiz cultural a autoimagem de uma “raça superior”, fundada pelo “espírito desbravador bandeirante”, como bem aponta André Mota:

Afirmava-se que quem chegasse em solo paulista, logo constataria as particularidades da história do Estado, corporificadas em seus habitantes, em suas cidades e sobretudo em suas instituições médicas. Os estrangeiros que aportassem em ‘terras bandeirantes’ deveriam ter as melhores impressões da organização médico-sanitária realizada pelos serviços de higiene e suas instalações. Segundo os dirigentes, não poderia ser de outro modo, pois o estágio de desenvolvimento de um país se julgava pela expansão de sua instrução pública, que era preparo do futuro da nação, e pelo rigor de seus cuidados higiênicos, pois a saúde de seus habitantes garantiria o presente e preservaria o futuro.[*7]

Vários médicos de renome faziam parte da liga paulista, entre os quais podemos citar Enjolras Vampré, Geraldo de Paula Sousa, Cantídio de Moura Campos, João Carvalhal Ribas, Paulo de Camargo, entre outros. Estes colaboraram com propostas e atuaram significativamente em prol da legitimidade deste movimento entre a sociedade e na busca pela incorporação de seus ideais entre os dirigentes políticos para que a “Higiene Mental” se tornasse uma verdadeira política pública [*8] . Todavia, Pacheco e Silva foi quem deu ao movimento paulista suas principais características, se tornando um porta-voz da liga entre os vários círculos em que participava.

Ainda a respeito das concepções eugênicas defendidas por Pacheco e Silva, é importante ressaltar que ele as defendeu de maneira fervorosa quando representou São Paulo na Assembleia Constituinte Nacional de 1934, sendo indicado ao cargo de deputado pelo setor industrial paulista. A maioria destes discursos foi compilada no Livro “Direito à Saúde”, publicado ainda em 1934. Em um de seus discursos registrados no livro citado, faz uma defesa aberta da esterilização de doentes mentais, assim como se praticava nos Estados Unidos, desde 1907:

Os que se dedicam ao estudo das questões sociais verificam que há um perigo crescente a ameaçar a sociedade moderna, o número de anormais que aumenta anualmente, os quais provocam reações anti-sociais, dificultando a vida dos seus semelhantes. A sociedade não pode assistir impassível a esse espetáculo e deve defender-se adotando medidas que impeçam a multiplicação dos grandes anormais físicos e mentais.
Se existe dificuldade em se estabelecer limites entre os casos em que a esterilização pode ou não ser aplicada, nem por isso êsses problemas devem ser descuidados, porque tocam de perto a formação racial e visam um alto objetivo, que é o de diminuir o número de infelizes inocentes que vieram ao mundo trazendo um vício de origem, única herança que, na maioria das vezes, recebem dos pais.
Impedir a perpetuação das estirpes taradas, evitar a procriação de indivíduos malsãos, cuja prole tudo leva a crer ser inferior, é incontestavelmente um grande passo na solução de problemas sociais.
Só assim poderá a sociedade, livre de parte das despesas feitas com a manutenção de tantos asilos e prisões, fazer reverter maiores somas para o progresso e para o bem da sociedade. [*9]

Outra proposta que Pacheco e Silva defendia era a obrigatoriedade do “Exame pré-nupcial”. Esta proposta se baseava na ideia de que todos os noivos que pretendiam se casar deveriam se submeter a um rigoroso exame médico para terem certificado pelo médico que os filhos, que eventualmente poderiam ter, nasceriam com uma boa saúde mental. Esta teoria se baseava na concepção de “degeneração”, que previa que indivíduos de “raças inferiores”, isto é, negros, doentes mentais, pessoas com alguma deficiência física, entre outros, não se casassem com indivíduos “sãos”, o que supostamente poderia prejudicar o futuro da espécie humana.

Na abertura do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia, em 1929, Pacheco e Silva afirmou:

Com o correr dos tempos, o número crescente de doentes mentais recolhidos aos hospitais, as dificuldades cada vez maiores em que se encontrarem os poderes públicos e a iniciativa particular para assistir e tratar a essa legião de incapazes, acabarão por convencer a todos que sem medidas obrigatórias, com objetivos eugênicos, entre as quais sobressai a adoção do certificado pré-nupcial, poderão contribuir para tornar a raça mais sadia, diminuir os sofrimentos da humanidade e facilitar o progresso e o bem estar das futuras gerações. [*10]

Outra forma de “defesa e fortalecimento da raça” presente em seus discursos era a seleção racial dos imigrantes que chegavam em grande número no Brasil. Pacheco e Silva era partidário de uma corrente eugênica que acreditava que determinadas raças eram “inferiores” à ariana e que a miscigenação acarretaria no prejuízo da civilização. Desta maneira, incentivava a entrada de europeus em detrimento dos africanos, muçulmanos e japoneses, por ver nestes povos uma ameaça a “homogeneidade da população” devido às suas características culturais e religiosas, que poderiam ser perniciosas para a “raça em formação”. As justificativas para a proibição da entrada de determinados povos também se pautava por questões morais, como no caso da imigração japonesa, que segundo Pacheco e Silva era uma estratégia do governo daquele país para tomar o poder em diversas partes do mundo, entendendo que os imigrantes não passavam de “espiões do imperador”. Além disso, acreditava que este povo era violento e imoral, dado o grande número de suicídios e de violência familiar naquele país .[*11]

Pacheco criticava também o governo brasileiro, que aceitava, sem qualquer tipo de restrição, a entrada de “deficientes físicos e mentais”, de “inválidos” e de pessoas com sequelas da Primeira Guerra, o que fazia do país um “depósito de degenerados”, que para ele significava a possibilidade de superlotação dos manicômios e de instituições asilares, como vemos a seguir:

Vê-se, assim, em um país imigratório, como é o nosso, cumpre um exame atento, não só na escolha dos grupos raciais, como também na rigorosa seleção individual dos imigrantes visando beneficiar a raça em formação. Basta lembrar que nossas estatísticas acusam uma porcentagem de alienados criminosos estrangeiros duas vezes maior que a de nacionais.[*12]

e ainda:

A nossa experiência mostra que a assimilação das raças brancas do sul da Europa se faz com grande rapidez e muitas vantagens. O Dr. Paulo Azevedo Antunes um dos estudiosos desses assuntos entre nós, demonstrou, em exaustivo trabalho, a superioridade da raça ariana, concluindo: ‘[...] depreende-se, e o bom senso faz supor, que o cruzamento da raça branca com qualquer das outras duas será um prejuízo para a primeira sob o ponto de vista intelectual. Baseados nisto, quando tivermos de escolher o imigrante para o nosso país devemos procurá-lo na raça branca e evitar a todo o transe que se introduzam imigrantes pretos e amarelos’.[*13]

Outro aspecto a ser salientado no projeto de desenvolvimento nacional de Pacheco e Silva, e de toda a LPHM, é a atenção à infância como fator fundamental para a formação de uma civilização avançada e bem estruturada. Esta responsabilidade na formação era atribuída à família e à escola, que deveriam estar atentas aos preceitos higiênicos que fossem capazes de afastar as novas gerações do álcool e dos vícios em geral para formar trabalhadores sadios e adaptados. Podemos verificar estas concepções no Boletim de Higiene Mental, número 57, de maio de 1949, onde Pacheco e Silva afirma que:

Compreendeu-se que cabe aos adultos a responsabilidade do futuro da geração que surge; que uma educação racional, em um ambiente sadio, poderia reduzir a criminalidade e o desajustamento social a proporções insignificantes. Nasceu assim a higiene mental infantil.

Além de olhar para o futuro, a Higiene Mental também tinha como foco a saúde dos trabalhadores, sobretudo os das grandes cidades, que apresentavam inúmeros “problemas de adaptação” tanto às maquinas que operavam quanto à realidade social em que estavam inseridos. Para Pacheco e Silva, esta inadaptação era responsável pela baixa produtividade, pelos vícios em geral e pelos inúmeros casos de distúrbios mentais, que superlotavam os manicômios. Assim, a atenção ao proletariado não era somente um fator importante para a regeneração moral do país, mas um verdadeiro projeto de desenvolvimento econômico, pautado por uma relação mais “sadia” entre o trabalhador e o mercado.

Havia, desta forma, uma tentativa de normatização das relações de trabalho, buscando uma boa relação entre os trabalhadores e entre estes e os patrões, reduzindo e explicando as lutas de classes pelo discurso psiquiátrico da “inadaptação”. As greves e movimentos de contestação eram atribuídos à “influência das massas por personalidades psicopáticas”.

Outra forma de normatização dos trabalhadores se originava no combate aos, já citados, “venenos sociais”. As intervenções nas fábricas e no seio da sociedade precisavam de legitimidade e, para isso, o campo discursivo foi composto em duas frentes: aos operários a campanha era baseada nos prejuízos à saúde e à família que o álcool e os demais vícios geravam; aos patrões a fala era direcionada no sentido de apontar os efeitos diretos que estes “venenos” tinham sobre a produtividade de seus funcionários. Justamente por isso, as portas das fábricas foram abertas e a Higiene Mental acolhida pela elite paulista. Como porta-voz deste movimento, Pacheco e Silva foi reconhecido pela classe patronal, sendo indicado por ela para representar São Paulo na Assembleia Nacional Constituinte de 1934. Além disso, foi vice-presidente do Instituto de Organização Racional do Trabalho (IDORT) e um dos diretores da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP).

Tendo em vista a suposta ignorância da população em relação a estes “venenos” é que os higienistas passam a divulgar seus pressupostos. Assim, entre os trabalhadores procurava-se criar a consciência de que a embriaguez era responsável por inúmeros acidentes de trabalho e que era o germe da destruição da família. Um bom exemplo a ser citado é a recomendação que foi feita aos “chauffers” no Boletim de Higiene Mental número 35, de julho de 1947:

Cada um de nós, no momento de ingerir um trago, deverá recordar que vamos pôr em risco a nossa saúde, a nossa vida, o nosso carro e os nossos passageiros, para não falar nos transeuntes. Se por acaso acontece um desastre e a nossa carta é cassada, a nossa profissão fica prejudicada, segue-se a falta de trabalho, freqüentemente a prisão e grandes prejuízos pecuniários, pois seremos forçados a despender todas as nossas economias, contrairemos dívidas e perderemos nosso crédito; as nossas esposas e filhos ficarão na miséria. Vale o álcool tantos sacrifícios? Por certo que não.

Além da luta contra os entorpecentes, os psiquiatras buscavam criar uma educação sexual, elegendo como alvo a ser combatido a sífilis, que apresentava números elevados de contágio entre todas as camadas sociais. Do ponto de vista clínico, esta era uma preocupação antiga da Psiquiatria, visto que, se não tratada adequadamente, podia gerar graves distúrbios nervosos como a “Paralisia Geral Progressiva”. Neste sentido, a família era entendida como a base da organização social e por isso deveria ser preservada para garantir a manutenção da ordem de toda a hierarquia política. A mulher se constituía como elemento de fundamental importância já que, no cuidado do lar, deveria zelar pela manutenção do casamento e pela educação dos filhos, dentro dos preceitos higiênicos, para formar a geração “forte e sadia” de amanhã [*14].

Finalmente, para concluir a linha de raciocínio de Pacheco e Silva sobre a formação de um país desenvolvido, vale citar a crítica religiosa que desenvolveu, direcionando seus discursos contra os credos afro-brasileiros. São vários os textos publicados por este psiquiatra condenando as práticas espíritas, como a Umbanda e o Candomblé, considerando-as fomentadoras de “paranoias coletivas”, comprovadas na prática psiquiátrica:

[...] proliferam em todos os cantos, numerosos centros espíritas, atraindo um número imenso de pobres criaturas, incultas e crédulas, que se deixam facilmente arrastar pelas mais absurdas idéias, persuadidas de que no espiritismo podem encontrar soluções felizes [...] O que mais surpreende é o fato de pessoas de certa categoria social, de instrução secundária e até superior, participarem dessas atividades perniciosas e condenáveis. [*15]

Conclusão

Inserido em um amplo movimento, chamado de Higiene Mental, Antonio Carlos Pacheco e Silva deixou registradas as concepções de um psiquiatra plenamente consciente de que vivia em um momento de grandes transformações, tanto no âmbito político quanto científico e social. Por isso buscou contribuir para a solução dos problemas latentes da sociedade em que estava inserido, apregoando um modelo de sociedade extremamente conservador.

Pacheco e Silva militou politicamente até os últimos anos de sua vida, na década de 1980, acompanhando as transformações de sua especialidade médica e das relações sociais que se seguiram em âmbito mundial, mantendo-se convicto de certos pontos de vista defendidos no início de sua carreira. Após presenciar o extremismo de alguns preceitos eugênicos na Alemanha e Estados Unidos, a ideia de inferioridade racial perdeu sua força na psiquiatria brasileira a partir de meados da década de 1950.

Assim, fruto de seu tempo, Antonio Carlos Pacheco e Silva explicitou em sua obra o anseio de consolidar uma identidade nacional ligada à legitimação do Estado brasileiro, para que desta maneira o país pudesse se inserir no rol das nações mais desenvolvidas do mundo. Do ponto de vista científico, aliou pesquisa, moral e desenvolvimento nacional para contribuir para a consolidação da Psiquiatria como uma verdadeira especialidade médica e, mais que isso, uma ciência fundamental para o progresso da civilização.

Finalmente, suas concepções moralistas, organicistas e “higiênicas” não se prenderam ao campo das ideias, transformando-se em políticas públicas, artigo constitucional (artigo 138 da Constituição de 1934) e alcançando prestígio entre os industriais, intervindo de maneira direta na vida do operariado. Suas ideias foram reformuladas ao longo do tempo, porém o legado de seus ideais “higiênicos” se mostram atuais, como vemos nos testes psicológicos, na seleção profissional, entre outras medidas, o que torna a análise dos discursos de Pacheco e Silva, e de todo o movimento de higiene mental, atual e de suma importância para a compreensão dos alcances da psiquiatria e da própria organização social a qual estamos submetidos.

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Mestrando em História Social pela FFLCH-USP sob a orientação da Profª. Drª. Maria Amélia M. Dantes. É pesquisador no Museu Histórico da Faculdade de Medicina da USP e professor de História do Colégio Integrado Americano. E-mail: tarelow@usp.br.
MARINHO, M. G. S. M. C. Intelectuais e saber médico. História da Psiquiatria e das Práticas Médicas no “Fundo Pacheco e Silva”. In: Centenário Simão Mathias: Documentos, métodos e identidade da história da ciência. São Paulo: PUC, 2008. p. 216.
Pacheco e Silva compilou vários de seus discursos na Constituinte no livro Direito à Saúde, editado em 1934 e que será analisado neste trabalho.
A discussão historiográfica sobre a Eugenia é ampla e há obras de extrema qualidade. Para um bom entendimento sobre o tema, ver MOTA, A. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
PACHECO E SILVA, A. C. Direito à saúde (documentos de atividade parlamentar). São Paulo: [s.n.], 1934. p. 76.
Para uma análise mais completa deste processo e da constituição da Psiquiatria Social, ver MACHADO, R. et al. Danação da norma: a medicina social e a constituição da psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
MOTA, A. Quem é bom já nasce feito: sanitarismo e eugenia no Brasil. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. p. 52.
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