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Artigo publicado na edição nº 51 de Dezembro de 2011.

EU VI, EU DISSE, O DOUTOR FOI QUEM DISSE:

A presença médica nas sentenças dos processos crime (1890–1940)

Maíra Rosin [*1]

Este excerto faz parte de uma pesquisa que está sendo desenvolvida desde 2007 através do grupo de estudos coordenado pelas professoras doutoras Maria Odila Leite da Silva Dias e Lucília Santos Siqueira, o qual ao longo destes quatro anos coletou cerca de 600 processos-crime no Arquivo do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Desenvolvi, portanto, meu projeto de mestrado a partir desse material coletado, tendo como fontes principais os processos-crime e o Código Penal de 1890. O objetivo do projeto é apontar as diferenças nas sentenças e abordagens policiais nos casos que exigiam laudos médico-legais a partir do crescimento da importância da Escola de Medicina Legal e da aplicação das teorias da Escola Positiva, que visava comprovar sinais atávicos da delinquência através de exames médicos, além de oficializar, por meio de exames corporais (exame de corpo de delito), quaisquer tipos de marcas nos corpos das vítimas de crimes na cidade de São Paulo.

Com o imenso crescimento populacional na São Paulo do começo do século cresceram também os índices de criminalidade na cidade, que resultaram na produção de centenas de processos-crime, em parte arquivados atualmente no Arquivo do Estado de São Paulo e outra grande parte no Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, onde os processos aqui citados foram consultados. É importante constar que esses processos não têm catalogação padronizada, portanto optei pelo uso do número da etiqueta afixada neles e, na falta dela, pelo nome do réu, autor do processo e ano da abertura deste.

Evolução das populações de São Paulo, do Rio de Janeiro e Brasil - 1872-1920

Anos

São Paulo

Rio de Janeiro

Brasil

B/A

D/C

 

Estado A

Cidade B

Estado C

Cidade D

 

%

%

1972

837.354

23.243

1.057.696

274.972

9.930.47

2,7

25,9

1890

1.384.753

64.934

1.399.535

522.651

14.333.915

4,6

37,3

1900

2.282.279

239.934

1.617.600

691.565

17.318.556

10,5

42,7

1920

4.592.188

579.033

2.717.244

1.157.873

30.635.605

12,6

42,6

1934

6.433.327

1.003.202

     

16

 

Fonte: SZMRECSANYI, Tamas; SILVA, Sérgio S. (Orgs.). História Econômica da Primeira República. São Paulo: Hucitec, 2002. p. 354.

Para este artigo escolhi trabalhar as diferenças entre dois processos similares, de datas distintas, e a partir deles apontar algumas diferenças e semelhanças, articulando-os também com alguns autores que trabalharam os tipos de crimes abordados, neste caso os crimes de conjunção carnal e contra a honra (Capítulo I do Código Penal de 1890 – Da Violência Carnal – “Crime contra a segurança da honra e honestidade das famílias”). Este tipo de crime foi escolhido uma vez que obrigatoriamente requeria perícia médica que o comprovasse, já que nesses casos apenas a palavra da vítima não era suficiente para atestar sua condição de deflorada, mesmo que outras testemunhas viessem a confirmar seu depoimento.

Este artigo do Código Penal defende fundamentalmente as instituições da família e do casamento – uma herança das Ordenações Filipinas, em que o crime de conjunção carnal aparece pela primeira vez, e do Código Penal do Império, tendo sido substituído pelo crime de sedução no Código Penal de 1940. Boris Fausto aponta que houve uma mudança até mesmo nas relações afetivas nesse período, e que essas mudanças podem ser vistas em algumas das diferenças colocadas para este tipo de crime no Código Penal de 1940, que coloca os crimes sexuais na categoria de “crime contra os costumes” [*2].

Luis Ferla descreve como o laudo médico-legal se caracterizou diante da sociedade para que ganhasse tal importância no universo jurídico: “O exame médico legal se constituiu em instrumento de exercício de poder. Enquanto documento escrito, legitimado pela ciência e manipulado por juízes, policiais e burocratas, ajudou a reescrever muitos destinos humanos” [*3].

É fato que mesmo nos casos analisados para esta comunicação os dizeres médicos mudam completamente a relação entre a ofendida e o agressor. Se no laudo o médico dissesse que a vítima possuía os seios flácidos ou que aparentemente seu defloramento não se deu ao tempo que ela declarava, ou ainda outras evidências médicas, como, por exemplo, de que a vítima não era mulher honesta, o laudo podia ser prejudicial a ela.

Para as mulheres, a virgindade era seu bem mais precioso, pois era o que garantia um bom casamento e a possibilidade de constituição familiar. Uma mulher desonrada jamais atingiria esse objetivo. Há relatos de mulheres que mantinham diversos tipos de contato sexual com seus namorados, sem jamais deixarem-se deflorar para não romper o hímen, o que lhes garantia a manutenção da honra. É o que trabalha Sueann Caulfield em seu livro Em Defesa da Honra, no qual afirma que ao serem defloradas, as meninas perdiam sua honra e, como consequência, a possibilidade de casamento com outro que não seu próprio deflorador[*4] . Muitas acusavam namorados ou outros homens com quem mantinham relação marital por seus defloramentos. Muitas mulheres grávidas denunciavam seus defloradores já perto de dar à luz, buscando assim uma forma de seus companheiros legalizarem seu casamento, única maneira de se retomar a honra que se havia perdido com o defloramento.

O estupro, como salienta José Leopoldo Ferreira Antunes, se enquadra como um outro tipo de crime, no qual a vítima não teve meio de defesa contra seu ofensor [*5]. Antunes, assim como Sueann Caulfield e Martha Abreu [*6], também coloca como equivocado o pensamento de que é a presença do hímen que garante a honestidade e a virgindade. Hoje sabemos que este pensamento é errôneo, pois nem sempre o hímen é rompido durante o defloramento. Porém, a ideia vigorava na época e era a primeira questão a ser tratada em todo laudo de defloramento: “1. Se há ruptura da membrana himenal”.

O primeiro caso aqui abordado, datado de 1893, trata do defloramento da menor Margarida Striza, 13 anos, brasileira, de constituição fraca e estatura regular, por seu pai, Cristovam Striza [*7], 50 anos, casado, roceiro, brasileiro, natural de Itapecerica. Segundo os autos do processo, Margarida fora deflorada por seu pai sob emprego de força ao levá-la para lenhar na roça onde moravam. Neste caso, apesar de constar até o fim dos autos como defloramento, sabemos que a idade da vítima e o emprego da violência caracterizam um crime de estupro, portanto foi classificado pela justiça no artigo 267 do Código Penal (defloramento) e nos artigos 273 e 274, que caracterizam o uso da força e ausência de meio de defesa da vítima, respectivamente.

O exame de corpo de delito de Margarida está incorporado às primeiras informações do processo. Suas conclusões são informadas pelo escrivão, que aponta os relatos dos médicos, sem citar seus nomes e sem que assinem o laudo validando as informações ali presentes, ou seja, funciona apenas como um informativo, como um validador da palavra da vítima por um profissional qualificado. O parecer médico atesta que Margarida está deflorada, que o defloramento não é recente e que a menor apresenta doença pós-traumática, sem especificar qual. As perguntas características no exame de defloramento também não estão apresentadas no processo de Margarida.

Todas as testemunhas, roceiros moradores do bairro da Colônia, em Santo Amaro, relatam terem tomado conhecimento dos fatos pela mãe de Margarida, que procurou um vizinho, Antonio Rodrigues da Silva, para que este pudesse ajudar a estancar a hemorragia da menina, que, segundo os relatos de todas as testemunhas, estava ensanguentada após a violência sofrida, e que o vizinho chamou o padrinho de Margarida, Miguel Rogenbach, para que tomasse ciência da história da menina. No interrogatório, o réu, Cristovam Striza, nega que tenha deflorado a filha. Diz que o culparam pelo ato, mas não sabe dizer quem o culpou nem quando foi culpado.

Novos depoimentos são solicitados, porém na presença do juiz. Novamente as testemunhas confirmam seus depoimentos anteriores, garantindo que a menor Margarida fora deflorada pelo pai através do emprego de grande violência, dadas as escoriações e traumas por ela apresentados quando foi procurar sua mãe para contar o ocorrido.

Há mais uma convocação das testemunhas para depoimento, e novamente todos afirmam o mesmo que anteriormente sobre o caso de Margarida.

O réu é julgado e preso. O laudo médico não é citado em nenhum momento como prova que atestasse o crime, ficando claro que os vários depoimentos das testemunhas tiveram grande influência na decisão final do juiz.

O segundo caso, já do ano de 1930, trata do defloramento da também menor Antonia Raposo, de 14 anos, brasileira, branca, solteira, virgem e miserável, filha de Manoel Raposo, que alega ter sido deflorada por José Gonçalves Zingra[*8] . Não há maiores informações sobre o réu.

O processo traz logo no início a informação de que existe um laudo médico. Em seguida, vemos o pedido judicial para a realização de perícia médica na vítima, e são determinados pelo juiz os médicos legistas responsáveis por sua realização. São eles os Doutores J. B. de Souza Aranha e A. de Paiva Lima. O exame de corpo delito, produzido e assinado por estes médicos nos informa que a vítima, Antonia Raposo, está sim deflorada de época que possivelmente coincide com a relatada por ela, ou seja, há cerca de um mês da realização do exame (fevereiro de 1929).

Em seguida, temos no processo a ata do júri, em que o acusado nega as acusações feitas contra ele. Não há nenhum depoimento, uma vez que as testemunhas de acusação não compareceram ao julgamento. Há a seguinte informação sobre o julgamento:

O Promotor Público, leu este o libello, os artigos do Código o grão da pena em que pelas circunstancias entendia o réo incurso e desenvolveu a accusação, analisando a prova testemunhal e pericial constantes nos autos e solicitou do Jury a condenação do réo.[*8]

Em 26 de maio de 1936 o réu é sentenciado a quatro anos e um mês de reclusão apelando imediatamente contra a sentença.

Aqui, apesar de não estar relacionado ao crime, vemos o réu utilizar do sistema médico para benefício próprio. Os Doutores Oswaldo Puissegur e Rafael da Nova, através de atestados, declaram como necessária a saída do preso da Cadeia Pública do Estado de São Paulo para tratamento de sinusite na Casa de Saúde Pedro II. O juiz determina que José seja examinado por um perito, mas ele se recusa a submeter-se ao exame. Apesar de declaração do diretor de que o preso não necessitava de tratamento algum, José G. Zingra é transferido para o hospital.

Durante o período de sua internação, seu advogado apela mais uma vez contra a sentença, anexando diversas cartas de empresas que atestam a boa índole do réu, o que é refutado com a declaração do promotor de que José Zingra já havia sido acusado anteriormente de corrupção de menores. A apelação é negada e a sentença mantida.

José Zingra é internado e em seguida transferido para a Beneficência Portuguesa, por não poder arcar com os custos da Casa de Saúde Pedro II. De lá ele foge e assim se encerra o processo.

Fica clara a diferença da presença médica nos dois casos aqui apresentados, embora em ambos exista o laudo médico, a importância deste no segundo caso é muito mais evidente e fundamental para a sentença dada ao réu, chegando até a ser citada como peça chave da acusação pelo promotor, e mesmo a pertinência do discurso médico posterior a sentença e em separado do crime em questão.

Enquanto no caso do defloramento de Margarida a série de depoimentos de vizinhos e conhecidos atesta a honra perdida da vítima, o segundo processo tem como bem apresentado desde o início o laudo médico.

Isso ocorre devido a uma mudança de mentalidade ocorrida entre o período em que se encontram os dois processos, sendo o primeiro quase imediato à publicação do Código Penal de 1890 e o segundo do final da década de 1930, às vésperas da publicação de um novo Código Penal totalmente reformulado que continha algumas das reivindicações dos médicos acerca das questões periciais. O historiador Luis Ferla aponta que a medicina legal tomou notoriedade e glória nos tribunais no final do século XIX na Europa[*9], mas foi através da escola Nina Rodrigues, e no caso dos médicos Afrânio Peixoto, Flamínio Fávero e Oscar Freire, de São Paulo, que a ideia passou a circular e a ganhar forças no Brasil. Os processos das décadas de 1920 e 1930 são os que mais recorrem ao parecer médico para atestar um crime.

Essa parceria se tornaria tão comum e necessária que o Código Penal de 1940 já menciona a participação médica em seu texto. Ela viria a ser obrigatória em diversos tipos de crimes a partir da entrada em vigor do novo Código, em 1942.

Apesar de ser bastante rara a presença de crimes de estupro entre os processos crime, é bastante interessante notar que em nenhum dos dois casos apresentados o defloramento ocorreu mediante sedução e consentimento da vítima. Em ambos os casos o crime foi cometido com emprego de violência, o que fica bastante evidente no caso de Margarida, em que a mãe declara por diversas vezes ter encontrado a menina bastante ferida e ensanguentada nas partes íntimas, e, de certa forma, no caso de Antonia, especialmente na declaração da polícia de que a menina era “virgem e miserável”.

Ambas são menores de 14 anos, o que caracteriza estupro pressuposto pela incapacidade de defesa da vítima e pela caracterização no Código Penal de 1890, onde o crime de defloramento deve ter como vítima meninas maiores de 14 anos e menores de 21.

Também é bastante raro que famílias denunciem estupros cometidos pelos pais, uma vez que a honra familiar é de extrema importância e a declaração de um caso como esses pode deixar a família manchada na sociedade.

A análise das diferenças entre a influência do laudo médico legal na sentença é essencial para a compreensão da mudança da mentalidade e de costumes da sociedade brasileira, que entendeu como necessária a presença de um parecer técnico, científico, para certificar a ocorrência de um crime.

Este tipo de laudo também está presente nos homicídios, nas agressões, entre tantos outros, além da existência daqueles que entenderam não o corpo da vítima, mas o do criminoso. Laudos que indicam porque determinado sujeito pode cometer aqueles crimes, uma herança clara do emprego das teorias lombrosianas para a realização de exames.

Considero, portanto, a pesquisa sobre a importância do crescimento da participação médica na justiça criminal fundamental para a compreensão da mudança de mentalidades e da transformação do Código Penal, além de outras condutas da sociedade paulista do início do século XX.

Referências

Fontes
- Processos Crime do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo
- Código Penal de 1890
- Código Penal de 1940

Bibliografia

ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Medicina, leis e moral: Pensamento Médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1999.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
______; ABREU, Martha. 50 anos de virgindade no Rio de Janeiro (as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular – 1890 a 1940). Caderno espaço feminino, Uberlândia - MG, v. 1/2, 1995.
FAUSTO, Boris.Crime e Cotidiano. São Paulo: Edusp, 2001.
FERLA, Luis. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo. São Paulo: Alameda, 2009.
SCREMIN, João Valerio. A influência da medicina legal em processos crimes de defloramento na cidade de Piracicaba e região (1900-1930). Histórica – Revista do Arquivo Publico do Estado de São Paulo, São Paulo, ed. 8, mar. 2006.
SZMRECSANYI, Tamas; SILVA, Sérgio S. (Orgs.). História Econômica da Primeira República. São Paulo: Hucitec, 2002.
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Graduada em História na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em 2010 e aluna do programa de mestrado em História Social na Universidade de São Paulo sob orientação da Profa. Dra. Maria Odila Leite da Silva Dias.
FAUSTO, Boris. Crime Sexual. Crime e Cotidiano. São Paulo: Edusp, 2001. p. 197.
FERLA, Luis. O exame médico legal enquanto discurso competente. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo. São Paulo: Alameda, 2009. p. 206.
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra. Moralidade, Modernidade e Nação no Rio de Janeiro (1918-1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Sexo. In: ______. Medicina, leis e moral: Pensamento Médico e comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Fundação Editora Unesp, 1999. p. 161-232.
CAULFIELD, Sueann; ABREU, Martha. 50 anos de virgindade no Rio de Janeiro (as políticas de sexualidade no discurso jurídico e popular – 1890 a 1940). Caderno espaço feminino., Uberlândia - MG, v. 1/2, 1995.
A Justiça contra Cristovam Striza - 1893. Processo A81 506G0472 – 0016 – 0 do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A Justiça contra José Gonçalvez Zingra - 1930. Processo sem catalogação do Arquivo do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
Folha 24 do processo contra José Gonçalves Zingra. Grifos meus.
FERLA, Luis. II. O universo de produção, reprodução e circulação da criminologia positivista. In: ______. Feios, sujos e malvados sob medida: a utopia médica do biodeterminismo. São Paulo: Alameda, 2009. p. 68.